Veicular entrevista de menor de 16 anos sem a autorização dos pais viola dispositivos do Estatuto da Criança e do Adolescente, ainda que tenha havido tentativa de preservar sua identidade. Além disso, há ofensa ao artigo 3º do Código Civil, uma vez que o jovem é tido como absolutamente incapaz de exercer pessoalmente seus atos. Assim, constatado abuso no direito de informar, nos termos do artigo 187 do mesmo Código, é cabível indenização por danos morais.
O entendimento levou a 10ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul a manter integralmente os termos da sentença que condenou o jornal Zero Hora (Grupo RBS), solidariamente com mais dois réus, a indenizar em danos morais uma menor que estava internada numa instituição para tratamento da drogadição no interior do Estado. A jovem e seus pais serão reparados, ao todo, em R$ 27 mil — valor também mantido pelo colegiado.
Os magistrados das duas instâncias da Justiça estadual concordaram que, além da falta de autorização dos pais, as matérias trouxeram dados suficientes para identificar a jovem, indicando idade, cidade e procedimentos — que acabaram chocando a comunidade. Tais dados podem caracterizar desvalorização e discriminação no seio da sociedade em que vive, de pequena densidade populacional.
"Ainda que louvável o propósito do veículo de imprensa, que abordou um grave drama social que migrou dos grandes centros urbanos para comunidades rurais, tal se deu sem os devidos cuidados, expondo uma pessoa sem discernimento completo a uma situação prejudicial à sua própria recuperação. Isso é suficiente ao reconhecimento do dano moral, que se tem por presumido", afirmou o relator do caso na corte, desembargador Jorge Alberto Schreiner Pestana. O acórdão foi lavrado na sessão do dia 20 de fevereiro.
O caso
O jornal Pioneiro, que circula em Caxias do Sul, publicou uma série de matérias com a chamada "Crack — Epidemia do Interior", nos dias 15 de 16 de março de 2009. Em ambas, foi dado destaque ao depoimento de uma jovem de 14 anos, dependente química, que estava internada para tratamento de desintoxicação numa comunidade terapêutica localizada no município de São Marcos. Parte deste material foi reproduzido pelo jornal "Zero Hora", também pertencente ao Grupo RBS de comunicação.
Apesar dos cuidados editoriais para preservar a identidade da entrevistada, tal providência não foi suficiente, já que a sociedade de São Marcos logo ficou sabendo a autoria das revelações chocantes trazidas nas matérias veiculadas. É que a instituição terapêutica foi logo identificada.
Diante da repercussão do fatos, a menor e seus pais ajuizaram ação indenizatória contra a RBS, a comunidade terapêutica e sua diretora, que concedeu autorização para a reportagem. Alegaram que as rés, ao permitirem a entrevista e divulgarem seu conteúdo, cometeram atos que afrontam os artigos 15, 17 e 18 do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90) e 3º do Código Civil. Este último diz que os menores de 16 anos são incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil.
A sentença
O juiz de Direito Daniel Henrique Dummer, da 1ª Vara Cível da Comarca de Caxias do Sul, afirmou que as reportagens auxiliam outros jovens, pais e educadores na prevenção do uso de drogas, sendo relevante a motivação as inspiraram. Contudo, entendeu que a empresa de comunicação se mostrou profundamente negligente quando expôs a jovem sem a autorização dos pais da menor.
"Friso que o negócio celebrado por incapaz é nulo (artigo 166, I, do CCB), e que na forma do artigo 1.634 cabe ao pai a guarda e representação dos filhos", afirmou, agregando com os dispositivos do ECA que asseguram à criança e ao adolescente a inviolabilidade de sua dignidade. O objetivo destes é afastar qualquer exposição vexatória ou constrangedora, devendo ser observados pelos pais, comunidade e imprensa.
O magistrado lembrou que, embora a menor não responda por prática de ato infracional, não se pode perder de vista que a matéria mostrou que esta oferecia e negociava droga com outras pessoas da comunidade, em plena atividade de tráfico de entorpecentes.
"Diante de tudo isso, a ausência de autorização para a entrevista leva à caracterização da fonte do dever de indenizar, impedindo a análise por parte da adolescente e de seus pais da adequação e pertinência da entrevista, das possíveis decorrências desta, bem como da segregação social que poderia redundar", concluiu o juiz, dando parcial procedência à ação indenizatória.
Assim, ele condenou a RBS, solidariamente com a comunidade terapêutica e sua diretora, a pagar R$ 15 mil a menor e R$ 6 mil a cada um dos pais, a título de reparação moral. A diretora e sua instituição arcaram com um terço do valor estipulado pela Justiça.
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