Iluminação pública

Contribuição é incompatível com serviço público indivisível

Autor

3 de março de 2014, 8h05

Atrelar um tributo a uma relação de consumo essencial foi uma ideia não imaginada ou não exequível pelos mais gananciosos senhores feudais da época da Idade Média.

A “talha” era uma espécie de tributo pago ao nobre que era retirada de uma parte da produção do servo. Mas, em tempos de feudalismo, era muito difícil cobrar isso com penalidades de corte no fornecimento de água ou de comida.

Atualmente, depois de mais de 500 anos, o Estado brasileiro, desprezando a existência da execução fiscal, permite a cobrança ilegal de um tributo sob a ameaça de corte de energia elétrica na casa do cidadão brasileiro.

Trata-se de um tributo municipal denominado Cosip (Contribuição para Custeio do Serviço de Iluminação Pública), antiga taxa de iluminação pública.

Em 2002, depois de a Justiça brasileira ter derrubado, por diversas vezes, a antiga Taxa de Iluminação Pública, uma marcha de prefeitos rumou para Brasília na tentativa de encontrar uma nova forma para cobrar o tributo da população sem que a Justiça atrapalhasse.

A solução foi dada pela Emenda Constitucional nº 39/2002, que inseriu na Constituição Federal o art. 149-A:

Art. 149-A Os Municípios e o Distrito Federal poderão instituir contribuição, na forma das respectivas leis, para o custeio do serviço de iluminação pública, observado o disposto no art. 150, I e III.

Parágrafo único. É facultada a cobrança da contribuição a que se refere o caput, na fatura de consumo de energia elétrica

A estratégia foi transformar isso em contribuição (ao invés de taxa) e embutir na relação de consumo entre companhia de energia elétrica e consumidor, uma relação jurídica tributária.

O leitor pode verificar isso em sua fatura mensal de energia elétrica, em que a Cosip vem discriminada com um valor, mas a cobrança é feita em um único código de barras, sendo que os credores são diferentes.

Com efeito, os municípios “pegam carona” nas consequências pelo não pagamento da energia elétrica, ou seja, ou paga a Cosip ou terá sua energia cortada.

Vale dizer que isso é totalmente ilícito, já que para a cobrança forçada de tributos existe uma via adequada legalmente instituída: a ação de execução fiscal.

Além disso, por se tratar de um serviço prestado a todos indistintamente, a iluminação pública era para ser custeada pelos nossos impostos.

Além de toda essa abusividade, ainda existe o equívoco no valor cobrado na Cosip, que é proporcional a conta de energia paga pelo consumo interno residencial, o que nada tem a ver com a iluminação das ruas, que é usufruída igualmente por todos, demonstrando assim, o múltiplo grau de ilegalidade da situação.

Assim, não tem lógica nenhuma alguém pagar mais pela iluminação pública só por que gastou mais energia em sua residência.

Diante disso, em meu papel de Defensor Público do Estado de Alagoas, ingressei com uma ação civil pública contra à CEAL (atual Eletrobrás Alagoas) em 2007, contestando essa forma de cobrança da Cosip.

A liminar favorável em 1ª instância foi proferida em 2008, sendo confirmada pelo 2ª Câmara do TJ-AL, tendo efeito em todo o Estado de Alagoas.

A revolta dos prefeitos alagoanos contra a minha pessoa foi mostrada na TV em diversas reuniões.

As lamentações dos prefeitos, no meu entender, totalmente improcedentes, baseavam-se em argumentos de que a ação civil pública iria deixar as ruas sem energia, quando, em verdade, o dinheiro de nossos impostos é que deveriam servir para isso.

Queriam justificar uma ilegalidade ao abrigo de uma suposta falta de dinheiro para iluminar os postes.

A partir daí, o leitor já pode imaginar o sensacionalismo usado como forma de ludibriar a população: o Defensor quer ajudar os criminosos com as escuridões. Nossa !!!!

Além disso, a ilegalidade ainda conta com o uso da mídia custeada por nossos impostos.

O amigo leitor pode notar isso, ao perceber que, após esse caso, as prefeituras passaram a fazer “campanhas de conscientização”, com o fim de passar para a população a ideia de que a contribuição é o meio adequado para se custear a iluminação pública das cidades, quando, em verdade, o meio mais adequado seria pela via dos demais impostos pagos normalmente pela população.

A natureza jurídica da contribuição é incompatível com serviço público indivisível que é a iluminação pública.

Além disso, não tinha lógica alguma o discurso de que o dinheiro pago na COSIP serve para pagar a iluminação de sua rua, já que a iluminação pública não é só para sua casa e nem para você, serve para todos.

Mas, nesse contexto, havia outra barreira a superar.

Diante do artigo 149-A da Constituição, que diz que é facultada a cobrança da Cosip na fatura de consumo de energia elétrica, não se pode dizer que as contas devem vir em um único código de barras, pois o que se permite é que elas venham na mesma fatura.

É que a interpretação dos dispositivos constitucionais deve ser favorável aos contribuintes e não mais ao Estado, pois, a dignidade da pessoa humana deve ser levada em consideração em todas as análises e interpretações constitucionais. Isso também pode ser verificado na posição topográfica que os direitos fundamentais passaram a ocupar após a Constituição de 1988, pois, em constituições anteriores, as normas que regiam a formação do Estado estavam situadas no início da Constituição e as normas de direitos fundamentais ao final.

Hoje, as normas de direitos fundamentais estão situadas no início do texto e os princípios constitucionais adquiriram força normativa, o que traduz um importante vetor de interpretação do panorama jurídico pós 88.

Ou seja, a interpretação do artigo 149-A deve ser favorável ao indivíduo e não ao Estado.

Assim, o meu pedido na ação civil pública trouxe a ideia de cobrar a energia elétrica e a Cosip em códigos de barras separados, o que de forma alguma desrespeita a norma do artigo 149-A da Constituição Federal.

Vale afirmar que o pedido recebeu pareceres favoráveis do Ministério Público em 1ª e 2ª instâncias, bem como decisões judiciais igualmente favoráveis na 7ª Vara Cível de Maceió e na 2ª Câmara do TJ-AL.

Infelizmente, após muita batalha, os prefeitos conseguiram êxito em suspender a liminar até o trânsito em julgado da ação, por meio de outro recurso denominado “Pedido de Suspensão dos Efeitos da Liminar”.

Tal recurso foi criado pela Lei 8.437/1992 com o intuito de beneficiar o Poder Público em muitas hipóteses, pois, como reza o artigo 4º, compete ao presidente do tribunal, ao qual couber o conhecimento do respectivo recurso, suspender a execução da liminar nas ações movidas contra o Poder Público, para evitar grave lesão à economia pública.

Mas no mérito, tenho fé de que essa arbitrariedade está com os dias contados.

Aos contribuintes, creio que somente resta ingressar com ações individuais, seja no sentido de excluir a Cosip da fatura de energia, seja no sentido de proibir o corte, tendo em vista a inclusão ilegal de valores que nada tem a ver com a relação de consumo.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!