Direito Comparado

Direito de apagar dados e a decisão do tribunal europeu no caso Google (Parte 2)

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Junior

    é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP) com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

28 de maio de 2014, 8h01

Spacca
O Tribunal de Justiça da União Europeia, no dia 13 de maio de 2014, proferiu a histórica decisão de reconhecer a existência de um direito a apagar dados pessoais na internet, o que se denomina em inglês de right to erasure. Diferentemente do que se tem afirmado em alguns textos jornalísticos e jurídicos, mais do que admitir a existência de um direito a ser esquecido (right to be forgotten, embora seja mais popular a expressão “direito ao esquecimento”), o tribunal europeu foi além e passou admitir o senhorio da pessoa sobre seus dados disponíveis na rede. Senhorio não absoluto é verdade, porque dependente de uma causa fundada para se obter a eliminação das informações pessoais de um motor de busca. Ainda assim, trata-se de um novo direito, com grandes possibilidades de realização e sem uma extensão delimitada objetivamente.

Na última coluna, iniciou-se o exame dos fundamentos do caso Google Spain v AEPD and Mario Costeja González, além de se ter exposto a história do espanhol Mario Costeja González, que peticionou ao Google e ao jornal catalã La Vanguardia para que fossem apagados registros na internet sobre a hasta pública de imóveis de sua propriedade em uma execução fazendária. A relevância da matéria fez com que o órgão judiciário espanhol — Audiência Nacional — suscitasse a apreciação prévia do Tribunal de Justiça da União Europeia.

O histórico acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia concluiu que a atividade dos motores de busca enquadra-se no conceito de “tratamento de dados”, tal como previsto na Diretiva 95/46, de 24 de outubro de 1995, e que o Google, nessa qualidade, é responsável por assegurar que suas ações não subtraiam as pessoas de um nível mínimo de proteção à vida privada. O tribunal europeu também afastou a tese de que o Google espanhol não se poderia responsabilizar pela operação da matriz norte-americana. O fato de haver uma filial em Espanha, destinada à captação de publicidade, implica a corresponsabilidade da matriz e da sucursal, na medida em que esta última propicia ganhos financeiros que mantém a primeira.

Em outro capítulo do acórdão, reconheceu-se expressamente o direito a apagar dados. É neste ponto que se retomará a análise do acórdão.

Conforme os juízes do caso Google Espanha decidiram, no ordenamento europeu, existe um direito de oposição, de natureza condicionada, ao modo como se opera o tratamento de dados pessoais, cujo fundamento é o artigo14 da Diretiva 95/46:

“Artigo 14.Direito de oposição da pessoa em causa
Os Estados-membros reconhecerão à pessoa em causa o direito de:

a) Pelo menos nos casos referidos nas alíneas e) e f) do artigo 7º, se opor em qualquer altura, por razões preponderantes e legítimas relacionadas com a sua situação particular, a que os dados que lhe digam respeito sejam objeto de tratamento, salvo disposição em contrário do direito nacional. Em caso de oposição justificada, o tratamento efetuado pelo responsável deixa de poder incidir sobre esses dados;

b) Se opor, a seu pedido e gratuitamente, ao tratamento dos dados pessoais que lhe digam respeito previsto pelo responsável pelo tratamento para efeitos de mala direta; ou ser informada antes de os dados pessoais serem comunicados pela primeira vez a terceiros para fins de mala direta ou utilizados por conta de terceiros, e de lhe ser expressamente facultado o direito de se opor, sem despesas, a tais comunicações ou utilizações.

Os Estados-membros tomarão as medidas necessárias para garantir que as pessoas em causa tenham conhecimento do direito referido no primeiro parágrafo da alínea b).”

Segundo o Tribunal de Justiça da União Europeia, o direito de oposição operacionaliza-se desse modo: a) a pessoa requer ao ente responsável pelo tratamento dos dados a sua alteração ou supressão; b) o pedido deve ser examinado, observando-se se há fundamento e causa para ser atendido; c) se o responsável pelo tratamento não der sequência ao requerimento, a pessoa poderá levar o conflito à autoridade administrativa (no caso espanhol, a agência de proteção de dados) ou aos tribunais judiciários, a fim de que se avalie a procedência da pretensão e que tomem as medidas adequadas.

As autoridades administrativas locais, nos termos do artigo 28, incisos 3 e 4, da Diretiva 95/46, segundo o acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia, são competentes para investigar o pedido de oposição e para adotar medidas como “o bloqueio, o apagamento ou a destruição de dados, ou proibir temporária ou definitivamente esse tratamento”.

Em síntese, para a corte europeia, o right to erasure não é absoluto. Ele deve ser apreciado levando-se em conta “um justo equilíbrio, designadamente, entre esse interesse e os direitos fundamentais dessa pessoa nos termos dos artigos 7° e 8° da Carta”. O tribunal europeu, no entanto, reconhece que, “regra geral, os direitos da pessoa em causa protegidos por esses artigos prevalecem também sobre o referido interesse dos internautas, este equilíbrio pode, todavia, depender, em determinados casos particulares, da natureza da informação em questão e da sua sensibilidade para a vida privada da pessoa em causa, bem como do interesse do público em dispor dessa informação, que pode variar, designadamente, em função do papel desempenhado por essa pessoa na vida pública”.

O equilíbrio almejado pelo tribunal europeu teria os seguintes parâmetros: a) natureza da informação divulgada na rede; b) o caráter sensível dessa informação para a vida privada da pessoa atingida; c) o interesse público em se divulgar a informação, que será variável a depender da posição do indivíduo na vida pública.

Direito a ser esquecido
No capítulo final do acórdão do caso Google Spain v AEPD and Mario Costeja González, o tribunal europeu respondeu a esta questão: é lícito que uma pessoa exija do operador do motor de busca a supressão “da lista de resultados, exibida na sequência de uma pesquisa efetuada a partir do nome dessa pessoa, as ligações a páginas web publicadas legalmente por terceiros e que contenham informações verdadeiras sobre ela, com o fundamento de que essas informações são suscetíveis de a prejudicar ou de que deseja que sejam ‘esquecidas’ decorrido algum tempo”? Houve, neste ponto, uma divisão de opiniões entre as partes envolvidas no processo:

a) Google Spain, Google Inc., os Governos grego, austríaco e polonês, além dos representantes da Comissão Europeia manifestaram-se pela resposta negativa a esse quesito.

A matriz e a sucursal do Google, os poloneses e a Comissão Europeia entenderam que a Diretiva 95/46 só autoriza ao indivíduo a requerer uma mudança no tratamento dos dados se houver incompatibilidade direta com dispositivo da norma comunitária ou “por razões preponderantes e legítimas relacionadas com a sua situação particular, e não pelo simples motivo de que entendem que esse tratamento é suscetível de as prejudicar ou de que desejam que os dados objeto do referido tratamento caiam no esquecimento. Os Governos grego e austríaco “consideram que a pessoa em causa se deve dirigir ao editor do sítio web em questão”.

b) O requerente Mario Costeja González e os Governos espanhol e italiano defenderam que o direito de oposição à indexação dos dados pessoais por um motor de busca é lícito “quando a difusão desses dados por intermédio desse motor” possa ser prejudicial ao indivíduo e “quando os seus direitos fundamentais à proteção dos referidos dados e ao respeito pela vida privada, que englobam o ‘direito a ser esquecido’, prevaleçam sobre os interesses legítimos do operador do referido motor e sobre o interesse geral da liberdade de informação”.

O Tribunal de Justiça da União Europeu definiu que o direito de oposição será exercitável quando os dados (i) foram inexatos; (ii) inadequados; (iii) impertinentes ou (iv) excessivos. Essa qualificação deverá considerar os seguintes fatores: (a) atualização do tratamento de dados ou (b) conservação dos dados por tempo superior ao necessário, “a menos que a sua conservação se imponha para finalidades históricas, estatísticas ou científicas”.

O elemento temporal ganhou enorme relevo na fundamentação do acórdão, pois se anotou que “mesmo um tratamento inicialmente lícito de dados exatos se pode tornar, com o tempo, incompatível com esta diretiva, quando esses dados já não sejam necessários atendendo às finalidades para que foram recolhidos ou tratados”. O caso do espanhol Mario Costeja González seria um exemplo dessa inadequação superveniente, pois os dados sobre a hasta pública deixaram de ser adequados com o passar do tempo.

Na colisão entre o interesse econômico da empresa que opera o motor de busca e o direito fundamental da pessoa que pretende apagar os dados, deve prevalecer este último. Idêntico resultado ocorrerá na hipótese de colisão entre o “direito de apagar dados pessoais” e o interesse do público em “encontrar a referida informação durante uma pesquisa sobre o nome dessa pessoa”. A única ressalva admitida pelo tribunal europeu recairia sobre a hipótese de “se afigurar que, por razões especiais como, por exemplo, o papel desempenhado por essa pessoa na vida pública, a ingerência nos seus direitos fundamentais é justificada pelo interesse preponderante do referido público em ter acesso à informação em questão em virtude dessa inclusão”.

O tribunal, em conclusão, afirmou que não mais fazia sentido manter a informação sobre a hasta pública de imóvel de Mario Costeja González, passados 16 anos e sem que houvesse mais razão que justificasse a mantença desses dados na rede. Desse modo, o requerente tem direito a que o órgão jurisdicional espanhol aprecie o direito da pessoa interessada em “exigir a supressão das referidas ligações dessa lista de resultados”.

Tribunal de Justiça da União Europeia
Por uma questão de espaço, a próxima coluna continuará o exame da decisão Google Spain v AEPD and Mario Costeja González. É importante, no entanto, deixar algumas informações que contextualizam a solução do tribunal europeu:

1. O parecer do procurador-geral do Tribunal de Justiça Niilo Jääskinen, apresentado em junho de 2013, foi no sentido da inexistência, no marco jurídico europeu, de um direito geral a ser esquecido. Essa possibilidade de restrição ao livre trânsito de informações poderia ser possível, mas em estrita referência às normas de Direito europeu. No caso de Mario Costeja González, porém, observados seus elementos descritivos, não se teria como deferir sua pretensão. A leitura da íntegra do acórdão revela que a argumentação do procurador-geral foi solenemente esquecida, com o perdão do trocadilho infame.

2. A participação no julgamento de tantos representantes dos estados que integram a União Europeia, para não se falar dos agentes indicados pela Comissão Europeia, é reveladora de que havia um interesse político no julgamento. Para além da óbvia importância política do caso, esse interesse pode ser assim qualificado por força de litígios entre a Europa e o Google em alguns setores, como os direitos autorais e a proteção do conteúdo elaborado por jornais e editoras europeus, que se ressentem do não pagamento pelo acesso a essas informações pelos usuários do motor de busca.

3. Diferentemente do que havia até o julgamento do caso Google Spain v AEPD and Mario Costeja González, é possível hoje admitir que, no âmbito europeu, há uma tendência em favor do direito a ser esquecido, que se alastra agora pela prerrogativa de se postular a eliminação de dados pessoais disponíveis na internet.

Autores

  • é advogado da União, professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

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