Advocacia pública

Resistência à PEC 82 revela aversão a gestão séria e eficiente

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27 de maio de 2014, 17h48

Instituições públicas são estruturas orgânicas responsáveis por funções que a Constituição reputa relevantes socialmente e, por esse motivo, confere-lhes independência técnica e autonomia, justamente por considerar o processo histórico de qualificação funcional dos seus membros e de formação dos preceitos ético-profissionais que regem a atuação de cada um.

Não por outro motivo, há poucos dias atrás, Comissão Especial da Câmara dos Deputados aprovou, à unanimidade, substitutivo do deputado Lelo Coimbra (PMDB/ES) à PEC 82 de 2007. Esse projeto de emenda constitucional dispõe sobre a autonomia orçamentária, administrativa, financeira e técnica, para uma das funções essenciais à Justiça: a Advocacia Pública.

Perdido por quase sete anos nos escaninhos do Congresso Nacional, essa proposta ressurgiu no momento em que a sociedade brasileira retomou as ruas para exigir reformas estruturantes da política e da administração pública brasileiras.

Em setembro do ano passado, todos os ramos dessa carreira na União, nos estados, no Distrito Federal e nos municípios se mobilizaram em grande e prestigiado ato público que lotou o auditório Petrônio Portela por todo o dia e contou com o apoio de lideranças parlamentares importantes e com a Ordem dos Advogados do Brasil.

O resgate desse assunto possui razões, que seriam óbvias, não fosse a falta de informação sobre o sentido de sistema de Justiça no país. Esse sistema, que é composto pelo Poder Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública e Advocacias pública e privada.

A advocacia é função essencial e indispensável à Justiça, sendo os seus membros, por esse motivo, invioláveis por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei, diz o artigo 133 da Constituição Federal. É, portanto, gênero do qual a Advocacia Pública (artigos 131 e 132 do mesmo Texto) é espécie. Constitui-se em importante instrumento de defesa não só dos cidadãos, entre si ou contra o Estado, mas deste também, para garantir os princípios fundamentais da república, o cumprimento das leis, a defesa e a reparação do patrimônio público, inclusive contra a avaliação muitas vezes equivocada de quem enxerga a gestão pública e suas dificuldades de fora, enfim, a viabilidade das políticas públicas definidas, planejadas e executadas pelos legítimos representantes do povo.

Não é por outra razão que o Provimento 114/06 do Conselho Federal da OAB, que dispõe sobre a Advocacia Pública, no artigo 5, disciplina que “é dever do advogado público a independência técnica, exercendo suas atividades de acordo com suas convicções profissionais em estrita observância aos princípios constitucionais da administração pública”.

Essa independência é garantida tanto na Constituição como nas leis e no regulamento da profissão, porque qualquer advogado, privado ou público, é instrumento e garantia da dialética na construção das verdades jurídicas, segundo as opções do seu tempo. No entanto, antes de estar subordinado a seu representado, está, acima de tudo, submetido às leis que regulamentam e estabelecem as condicionantes e limites legais de sua atuação.

Esses limites, que servem para proteger o exercício da profissão, correlacionam-se com as prerrogativas profissionais necessárias a uma atuação independente, porque justamente essa independência é que permite a capacidade de inovação de uma empresa, no planejamento tributário, por exemplo, ou do governo, na definição de novas linhas de atuação para a satisfação do seu povo.

Mas esse raciocínio não pode servir ao absurdo de fugir ao fato de que a vontade do Estado se submete ao ordenamento jurídico, que reconhece e protege tanto os direitos individuais primários e seus derivados, como em especial o interesse público. Assim, os advogados públicos, como os privados, não podem servir de instrumentos para acobertar desvios das mais variadas ordens.

Advogados não são cúmplices. Salvo os casos de dolo ou fraude, âmbito de responsabilização das demais carreiras jurídicas, não é possível criminalizar o exercício da profissão, esquecendo que as funções consultivas e judiciais dos advogados encontram limites apenas nas cláusulas constitucionais permanentes e naquelas voltadas a externar os princípios fundamentais como o da constituição do país na forma de Estado Democrático de Direito, que tem como fundamentos a soberania, no plano externo, e a cidadania, a dignidade humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político, no plano interno.

O campo de responsabilização por imperícia, imprudência ou negligência recai no plano disciplinar, com exclusividade, às respectivas corregedorias, no plano interno da estruturação orgânica da carreira, e à Ordem dos Advogados do Brasil, como órgão geral de controle disciplinar dos profissionais da advocacia, que só assim têm assegurada a sua independência e inviolabilidade constitucional.

A ideia de institucionalização constitucional da Advocacia Pública se fez primeiro para proteger a independência dos seus membros, cujo ingresso nos quadros se dá de forma isonômica e meritória através do concurso público de provas e títulos, com a participação do OAB em todas as suas fases. Em segundo, para evitar que a atuação dos advogados públicos ficasse sufocada pela confusão do sentido de interesse público, que não mais se confunde com a soma de interesses individuais nem com a existência de um interesse próprio do Estado e muito menos com o dos governantes.

Segundo o professor Diogo de Figueiredo Moreira Neto, “realmente, se o conceito de interesse público expressasse a soma dos interesses individuais, a existência do Estado seria um mal necessário, apenas tolerado como instrumento de cooperação impositiva para realizá-los. Se fosse um interesse próprio do Estado, neste caso não se identificaria com o da sociedade e representaria a negativa do princípio republicano. Finalmente, se o interesse público se identificasse com o dos governantes, neste caso o Estado não passaria de um instrumento de opressão, negando-se o princípio democrático”. (Curso de Direito Administrativo, 16ª Ed. Forense, 2014, p. 272)

Por outro lado, a atuação independente tem guarida para assegurar a competência técnico-interpretativa de quem advoga para os entes públicos, está próximo dos seus problemas de gestão e trabalha, no atual contexto, em voltas com conceitos indeterminados imbricados em todo o ordenamento jurídico, desde o mais tênue regulamento até o texto Constitucional.

A divergência interpretativa, teórica ou fática gera perplexidade natural do espaço de discussão jurídica na atualidade e deve ser solucionada dentro do próprio sistema jurídico, através dos seus atores: membros do Ministério Público, defensores públicos, advogados de grandes corporações, associações civis e das unidades federadas (União, estados, Distrito Federal e municípios). Não havendo convergência, entra em cena o magistrado, para solucionar o que então se denomina litígio.

Interessante pensar, contudo, que o ordenamento jurídico assegurou ampla autonomia institucional expressa ao poder Judiciário, ao Ministério Público e à Defensoria Pública, esta que será reforçada ainda mais com a promulgação da PEC 04/2014, que lhe amplia devidamente a capacidade operacional para atender os hipossuficientes e as prerrogativas dos seus defensores. Os grandes escritórios de advocacia que representam interesses das grandes corporações e associações têm naturalmente estruturas compatíveis com as obrigações assumidas perante seus clientes, porque possuem liberdade para cobrar valores compatíveis com as responsabilidades dos serviços assumidos.

Justamente o braço de orientação jurídica e representação judicial dos entes públicos fica à mercê do sucateamento, da descontinuidade dos serviços (vejam que três sedes de PGEs no último ano foram interditadas em 2013; na Paraíba, por mais de quatro meses), da falta de programas de qualificação e atualização permanente e, o pior, da ingerência política sobre a atuação técnica e da ameaça de criminalização da divergência jurídica defendida pelos advogados públicos.

Essa última pauta é tão incômoda que o Conselho Federal da OAB aprovou, por unanimidade, no último dia 19/05, o ingresso da ordem como assistente em processos que intencionam criminalizar advogados. Entre os pedidos acolhidos, o plenário apreciou, extrapauta, requerimento da ANAPE de assistência da ordem nos autos de processo de controle externo do Tribunal de Contas da União que reitera uma prática que nada mais representa do que a intimidação do advogado público através da co-responsabilização do parecerista por eventuais faltas dos gestores públicos, a pretexto do banalizado e subjetivo “erro grosseiro”.

Essa posição do Conselho Federal protege a advocacia como gênero essencial à Justiça, que não pode ser diminuído funcionalmente como pretendem agentes responsáveis por atividades de controle externo ou tão essenciais quanto os membros da advocacia, a exemplo dos membros do Ministério Público.

Esse quadro não contribui para a concretização das reformas fundamentais para conferir um novo norte político, econômico e cultural como desejam e necessitam os brasileiros, porque as fontes legítimas de divergência são indispensáveis para estimular, com o mínimo de segurança jurídica, a capacidade criativa de uma sociedade e fortalecer e promover o progresso econômico de um país.

Não queremos dizer que as reformas de estado, administrativas e previdenciárias das últimas décadas não tenham sido importantes. Queremos apenas enfatizar que não foram suficientes. E a insatisfação da população e a crise de legitimidade das instituições públicas estão aí para dizer.

Atendo-nos às reformas administrativas, todos os modelos de gestão devem ser relativizados e conjugados para permitir o maior aproveitamento de governança pública. O professor Carlos Ari Sundfeld menciona, com muita propriedade, que a incorporação da eficiência administrativa não é nada simples como imaginaram os idealizadores da reforma da década de 90. “A existência mesma do direito público seria impossível se não houvesse fiscalização sobre o que fazem os gestores públicos; disso ninguém duvida… O direito trabalha antecipando-se às condutas e, para dar segurança aos sujeitos regulados, costuma definir qual é o modo que faz lícita a ação deles. O que os reformadores estão nos dizendo é que o modo não terá relevância se não for positiva a consequência dessa ação. Com a reforma administrativa, está em curso, portanto, a passagem de um direito público de modos para um direito público de resultados”. (Desempenho ou Legalidade? Auditoria operacional e de gestão pública em cinco países, Ed. Fórum, 2008, p. 19).

Essa transição do direito público de modos para o direito público de resultados, no Brasil, carece de instituições de controle eficientes. Não é só isso. Esse controle é excessivamente repressivo, pouco dialógico e não conta com quadros técnicos bem estruturados, posicionados e capazes de fazer valer a atividade preventiva. Por óbvio que sem se imiscuir no campo das escolhas políticas, mas sim das soluções. Até para dar a guarida institucional que as políticas públicas merecem, no caso da Advocacia Pública, como um elemento importante de segurança jurídica.

Num breve mergulho histórico, podemos constatar que, depois de superadas as diversas fases dos modelos de gestão pública, a começar pelo burocrático e suas disfunções da ordem de controle, tipos de agentes, fluxo de informação, processos de elaboração de políticas públicas e método de enfrentamento analítico dos problemas, é preciso agora reconhecer que as etapas das reformas administrativas, no Brasil, nas décadas de 60, 70, 80 e 90, desconsideraram o que importa na atualidade, ou seja, que um governo não é legítimo só pela obediência à forma como alcança a sua posição e os resultados, mas sobretudo pelo que faz ou é capaz de realizar para os seus governados com a participação direta ou indireta destes nos processos decisórios e de planejamento, orçamento e gestão.

Ora, as reformas de Estado refletiram no Brasil um sentimento antiburocrático consolidado durante todo o curso da segunda metade do século XX fundado no modelo gerencial cujas vertentes eram a crise fiscal, a crise interventiva e a crise burocrática.

Nos anos 90, com a intensificação das críticas ao ideário neoliberal, baseadas em experiências fracassadas de ajuste estrutural, optou-se, a partir do primeiro mandato do então presidente Fernando Henrique Cardoso, pela substituição das palavras “‘redução do Estado” e “transferência de suas funções” em favor da expressão “reforma dos institutos legais e estatais”.

Mas a aplicação no setor público de ferramentas do setor privado, bem como a disseminação da cultura do empreendedorismo, fundamentada nos esforços individuais e na garantia de controle, eficiência e competitividade, conseguiu barrar apenas aspectos relativos a elementos da irresponsabilidade e crise fiscais e confirmar a revisão de funções, papeis e mecanismos de funcionamento do Estado, sem solucionar diretamente aspectos culturais e fundamentais de uma verdadeira reforma administrativa.

A despeito da recuperação da poupança pública, da superação da crise fiscal, da redefinição das formas sociais interventivas e da administração pública gerencial, não houve, na realidade, a concretização de requisitos elementares da nova gestão pública, a exemplo da efetiva descentralização e delegação de autoridade, redução de níveis hierárquicos, controle e estímulo de resultados e muito menos a garantia de qualidade dos serviços públicos. A flexibilização da gestão e de processos vingou mais como retórica para o combate severo a instrumentos eficazes de responsabilização do que como algo mais amplo e concreto que representasse uma transformação cultural na administração pública.

Por exemplo, a legítima preocupação com a redução da folha de pagamento e do próprio Estado foi encoberta por reformas legais e estatais focadas prioritariamente no aspecto financeiro em detrimento da reformulação de práticas e políticas de gestão de pessoas que efetivamente conferissem relevância no que tange à profissionalização e ao desenvolvimento de recursos humanos.

Esse quadro ocasionou a perda de legitimidade das instituições públicas, ambiente propício à quebra dos acordos e suas consequências indesejáveis capazes de produzir a instabilidade que nem a Copa do Mundo perdoa.

O Brasil está entre os países mais corruptos, com base em dados de percepção de abusos de poder, acordos clandestinos, superfaturamentos e subornos nos setores públicos. Nesse contexto, eventuais resistências de governos à PEC 82, que denominamos de a PEC da probidade, podem revelar a própria falta de qualidade dos gestores das fileiras da resistência e a aversão a uma gestão séria, reta, eficiente, antes de tudo, democrática e republicana.

Tudo isso é ainda fruto da baixa governança pública e conseguintemente da eficácia das leis brasileiras, que favorece a corrupção, gera redução do escore de eficiência e assim impacta de forma geral sobre indicadores sociais importantes, com destaque para a educação, saúde, segurança e justiça.

Segundo estudo publicado na revista PPP, número 41, do Ipea, do ponto de vista do combate à corrupção, o país deve considerar pelo menos três fatores: (I) ambiente burocrático/organizacional; (II) qualidade da participação popular; (III) convergência entre leis e demandas sociais. E o Brasil anda mal em todos esses aspectos.

Embora alguns defendam que a corrupção seja uma fórmula necessária de promoção do progresso, porque ela tende a aumentar o investimento público, nada mais malévolo do que a constatação de que simultaneamente ela deteriora a qualidade da política e os retornos sociais com maior ineficiência, porque, se a corrupção dobra, ainda que em um estado tecnicamente eficiente, ela resulta na redução grave do bem-estar e segurança da população.

Então, chegamos ao ponto em que defendemos os fundamentos da nova gestão pública, que combate diretamente a fragmentação da implementação e controle de políticas públicas, para que passem a ser coordenadas e integradas, na forma de conexão entre os atores públicos, sobretudo a sociedade.

A falta de controle no Brasil é situação que reflete a dificuldade de se obter responsabilização nas burocracias públicas estatais. Agravando um pouco mais o quadro, tem-se que o controle social, em um modelo de decisão democrática, ocorre baseado na ampliação do conceito de soberania popular. Precisamente pelo fato de que a burocracia estatal presta serviços aos cidadãos e são estes que deveriam ter a melhor informação sobre seu desempenho. Contudo são quase que completamente alijados dos processos de gestão e governança públicas.

Portanto, o Brasil, a despeito das propagadas reformas de Estado e administrativas entabuladas ao longo de mais de cinco décadas, não conseguiu levar a sério um modelo de governança articulada por um conjunto de atores e instituições que vão além do governo.

O momento é de compreender a necessidade de interdependência de relacionamentos entre as instituições públicas envolvidas em uma ação coletiva e que a base da ação governamental não está na autoridade e no poder para governar, mas na capacidade do Estado de coordenar e dirigir os diversos atores e instituições envolvidos nas ações e políticas públicas.

Sem isso, prevalece a apropriação privada dos espaços públicos. O sentimento de que alguém é eleito para dominar o poder, e não para servir o povo que o elegeu e obedecer às leis que o próprio Estado produz como medida de segurança para a ordem jurídica, social, econômica, tributária, orçamentária e financeira.

A solução para contornar essa realidade seria melhorar a consciência democrática e assim o modelo de gestão pública, as instituições públicas e as atividades cívicas.

Sem o reconhecimento de uma rede de atores que possuam autonomia, mas que também compartilhem responsabilidades na solução de problemas, o Brasil está condenado a conviver eternamente com o fracasso no enfrentamento das grandes questões que lhe desafiam.

É nesse sentido que a Advocacia Pública caminha como instituição pública permanente responsável pelas atribuições constitucionais de assessoria e consultoria jurídicas e de representação judicial das unidades federadas, com a iminência de inclusão da PEC 82/2007 na Ordem do Dia do Plenário da Câmara dos Deputados.

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