Laicidade e cooperação

Leia palestra de Gilmar Mendes sobre a relação do Estado com as religiões

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27 de maio de 2014, 6h54

Embora preveja a separação entre o Estado e as religiões, o texto constitucional brasileiro não levanta uma parede entre as instituições públicas e as que professam qualquer tipo de fé. Pelo contrário. A Constituição prevê, expressamente, exemplos em que as organizações eclesiásticas colaborem com o Estado em diversas atribuições públicas. 

Carlos Humberto/SCO/STF
Esse foi o teor do discurso do ministro Gilmar Mendes (foto), do Supremo Tribunal Federal, em palestra feita em São Paulo no dia 19 de maio, em evento na Associação dos Advogados de São Paulo. O evento contou ainda com juristas de renome, como Roque Antonio Carrazza e Ives Gandra da Silva Martins.

Leia a íntegra da palestra do ministro Gilmar Mendes:

Boa noite a todos. Gostaria de cumprimentar a todos na pessoa do Dr. Luís Carlos Moro, diretor desta AASP, desta Associação dos Advogados de São Paulo, de tanta tradição. Cumprimentar também o dr. Rosenthal, seu presidente, e a todos os senhores. E dizer da importância desse tema no contexto do constitucionalismo em termos históricos e também do constitucionalismo em termos de atualidade.

Nós temos hoje um debate bastante intenso aqui, mas também alhures, a propósito da temática da liberdade religiosa. É claro, todos sabem que o Estado de Direito que o constitucionalismo logrou construir parte da premissa da laicidade, da ideia da separação entre Estado e religião, inicialmente entre Estado e Igreja e, entre nós, a Constituição Republicana de 1891 o faz de forma bastante clara, rompendo, portanto aí, com um dos alicerces do modelo anterior, da Constituição de 1824, que reconhecia expressamente a religião Católica com religião do Estado.

Tivemos, ao longo de anos, muitas controvérsias a propósito dessa temática e dessa relação, e a Constituição de 1988 trouxe alguma disciplina que ainda hoje suscita debates, discussões. Temos temas ainda abertos na jurisprudência do Supremo. Temos também temas que são, de alguma forma, vividos em toda a experiência dos Estados constitucionais. Temas ligados, por exemplo, ao não tratamento de pessoas, à não submissão de dados tratamentos por conta de uma dada concepção religiosa, e aí todos os desdobramentos que isso eventualmente envolve, desde a obrigatoriedade de submeter [o paciente] a esse exame; a obrigatoriedade do médico de notificar — até eventual responsabilidade penal —, ou às vezes, responsabilidade por omissão de quem eventualmente é responsável e não permite que se faça o tratamento adequado ou convencional.

Temos o debate que hoje é muito presente na Europa, e que também se faz presente de certa forma no Brasil, a propósito da colocação de símbolos religiosos, mais especificamente do crucifixo em determinados espaços públicos. E aí, depois, ainda vêm distinções: aceita-se em determinados espaços públicos, mas se diz que não pode haver a obrigatoriedade em determinados espaços públicos voltados para a formação de pessoas. Veja-se o caso do crucifixo em salas de aula nas escolas públicas na Baviera, na Alemanha. Em suma, portanto, o próprio tema dá ensejo a especificações ou a especificidades.

[Serão debatidos] casos de conflitos — eu vi pela temática [do seminário] — que envolvem a relação de colaboração ou de trabalho entre os membros de uma determinada associação e essa associação religiosa. Manifestações religiosas num determinado espaço, em que princípios elas são proibidas? Na jurisprudência da Suprema Corte [dos EUA] há um caso notório de uma pequena comunidade, essas chamadas cidades de companhia, muito comuns nos Estados Unidos, em que na verdade se estabelecia que não deveria haver manifestações partidárias nem religiosas. E um dado membro de uma dada comunidade, considerando os deveres que se lhe impunham, decidiu, dizendo que estava numa comunidade, manifestar a sua concepção religiosa, de maneira bastante discreta como sói acontecer nesse tipo de caso, e o tema se colocou. E aí se discutiu, um tema que é muito importante no nosso debate aqui, que é a aplicação dos direitos fundamentais nas relações privadas. Por que, claro, quando nós pensamos o direito de liberdade religiosa, prima facie, nós pensamos num direito de caráter negativo, numa relação para com o Estado em que ele não turbe, não perturbe e, tanto quanto possível, proteja as organizações e manifestações religiosas. Mas podem ocorrer realmente conflitos no âmbito da própria comunidade, e esse era o caso.

[] uma matéria que é objeto de análise e discussão na doutrina dos direitos fundamentais, a chamada “eficácia horizontal” ou “eficácia privada” dos direitos fundamentas. Os alemães chamam isso de “efeito entre terceiros”. E aqui nós temos, sem dúvida nenhuma, a necessidade de aplicação dos direitos fundamentais nas relações privadas, pessoas que eventualmente se integrem numa associação, a religiosa, e que agora busquem a proteção do Estado para nela permanecer, a despeito de não serem considerados integrantes daquela comunidade. Qual é a legitimidade do Estado, e agora do Estado-juiz, de intervir nesse tipo de questão. Ainda lembro, na nossa crônica judicial, de uma decisão que se tome, por exemplo, para excluir um pregador, padre, pastor, de uma dada instituição, ou ainda, casos como aqueles referentes a decisões que são tomadas por determinadas concepções religiosas no sentido, e lembro de um caso do Rio Grande do Sul, de não realizar um casamento de pessoas porque uma delas já fora casada. Eles vão, aí, buscar a proteção judicial. Em que medida nós não estamos aqui não respeitando esse espaço de autonomia? Em suma, são muitas as questões que se colocam quando nós temos como pano de fundo o tema “Constituição e religião”. Também temos algumas referências básicas que marcam o Estado de Direto quando ele não protege a liberdade de consciência e de culto. E isso a gente de vê quando em vez, nos tumultos das organizações estatais, especialmente nessas chamadas novas democracias. Temos um indicador de que a democracia ali não vai bem, de que o respeito ao pluralismo está, de alguma forma, a ser conspurcado.

Os ingleses têm uma expressão que está muito desgastada hoje, mas que tem muita aplicação no Direito Penal, que diz que a gente sabe que está num Estado de Direito quando se, às 6h da manhã, batem à nossa porta ou à nossa janela e a gente pensa ou imagina que é o leiteiro, e não polícia. Isso, portanto, é um índice, uma referência para medir a ideia de Estado de Direito. Também quando vemos a perseguição ou a não proteção efetiva àquilo que o texto constitucional preconiza em termos de liberdade de consciência e de crença, nós temos um índice, um indício forte, de que há uma conspurcação, um comprometimento da democracia.

O texto constitucional de 1988, como eu dizia no início, é claro, já no artigo 5º, inciso 6º, ao ressaltar a inviolabilidade da liberdade de consciência e de crença, assegurando o livre exercício dos cultos religiosos, e garantindo, nos termos da lei, a proteção dos locais de culto e de suas liturgias. Uma breve, brevíssima, análise dessa disposição mostra que o constituinte brasileiro não quis apenas garantir a liberdade religiosa e a liberdade de consciência como um direito de caráter propriamente negativo, em que o Estado cumprisse essa obrigação, esse dever, a partir de uma mera abstenção, mas estabeleceu também um dever de caráter prestacional opositivo, determinando que se garanta a proteção aos locais de culto e a suas liturgias. Portanto é um direito de caráter complexo, não é? Que exige do Estado, não apenas uma abstenção, mas também uma prestação. Não só em relação aos seus agentes, que eventualmente descumpram aquilo que está no texto constitucional quanto à inviolabilidade da liberdade de crença, mas também em relação a todos quanto venham a conturbar ou turbar o exercício desse direito.


 

 

E essa complexidade certamente se reflete posteriormente nas relações da vida e por isso exige de todos nós uma atenção bastante clara. Mas o texto não se limitou a estabelecer essa regra. Já no inciso 7º também diz que é assegurado, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva. Neste caso, vejam os senhores, o texto constitucional permite que as entidades religiosas exerçam o seu ofício nas entidades civis ou militares de internação coletiva, exigindo, portanto, normas de organização e procedimento que permitam o exercício dessa atividade. Por outro lado, há também, no texto constitucional, talvez como um pressuposto constitucional, uma ideia de cooperação entre a própria entidade estatal ou a entidade pública não estatal e essas entidades de caráter religioso, permitindo que, nos termos da lei, se articule essa prestação de assistência religiosa, facultando que essas entidades possam exercer o seu ministério, o seu ethos também nesses ambientes de internação coletiva. O que adensa a complexidade, portanto, dessa ideia de liberdade religiosa, tal como está colocado no texto constitucional e mostra que essa relação, como daqui a pouco eu vou mencionar, não é uma relação de separação absoluta, mas ela pode envolver uma relação de cooperação, de alguma integração.

A laicidade traduzida nessa ideia de neutralidade que o texto constitucional preconiza não significa uma relação de indiferença, e aqui claramente vemos isso no próprio inciso 7º do texto constitucional. Por outro lado, também faz parte de uma cláusula e de uma disciplina clássica do sistema constitucional a regra segundo a qual ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou convicção filosófica ou politica, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos impostas e recusar-se a cumprir prestação alternativa fixada em lei. Certamente esse também é um núcleo — a questão da objeção relacionada com a consciência — que suscita, sem dúvida nenhuma, uma série de problemas na ordem jurídica. Tanto aqueles que alegam objeção de consciência para deixar de cumprir um dado dever a todos impostos — aqueles que, por exemplo, se declaram e se declaravam há pouco na Alemanha pacifistas para não prestar o serviço militar — como aqueles que também alegam uma convicção religiosa para não se submeter a uma obrigação a todos imposta. E aqui, obviamente, nós temos que ter o cuidado de disciplinarmos a matéria no plano jurídico, de modo a sermos respeitosos para com a liberdade religiosa, para que não incidamos em desproporcionalidade, para que não façamos exageros nas restrições que se venham impor àqueles que eventualmente deixem de atender a determinadas demandas de caráter geral a todos impostas, por razões de consciência, especialmente de crença religiosa.

Sem dúvida nenhuma todos esses temas serão objeto, pelo que vi, de considerações específicas no curso do seminário amanhã. Mas são temas que estão disciplinados de forma muito clara no texto constitucional e exigem, a partir desse reconhecimento de um direito multifacetado complexo, uma intervenção do Estado, ela própria já submetida também a restrições.

O artigo 19, inciso 1º, do texto constitucional é um desses textos clássicos ao dizer que “é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos municípios, estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvado, na forma da lei, a colaboração de interesse público”. Veja, portanto, que aqui está, talvez, a chave daquilo que eu chamei no início. Neutralidade, separação, não significa indiferença. O próprio texto constitucional admite a possibilidade, eventualmente, da necessidade de uma colaboração de interesse público. É por isso que, quando muitos colocam a ênfase na laicidade tendente a ler o texto constitucional de uma maneira a interpretar a religião como inimiga do Estado, certamente estamos a perpetrar uma interpretação que não encontra abrigo no próprio texto constitucional. É preciso, portanto, que nós façamos essa leitura conjunta e crítica do texto constitucional. É o próprio texto constitucional que preconiza e ressalva que, nos termos da lei, há que se ter ou que há possibilidade de se ter a colaboração de interesse público. Sem se ressaltar que, já no parágrafo 6º, se faculta às entidades religiosas prestar assistência. É um direito dessas entidades prestar assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva. O que mostra que aqui se já pressupõe essa colaboração.

Vejam os senhores, portanto, que o texto constitucional já coloca uma laicidade diferenciada, que não significa uma separação radical, uma neutralidade indiferente e eventualmente inimiga dessa compreensão, até porque não poderia ser essa a interpretação se nós sabemos que aqui, no que diz respeito à liberdade de crença e de consciência, forma-se e estrutura-se uma comunidade e uma sociedade plural. Há possibilidade de multivisões, que permite formar a própria democracia pluralista. Portanto, temos que ter bastante cuidado para não cairmos em argumentações ou armadilhas argumentativas que produzam uma antinomia — ou, como eu disse de forma bastante informal, quase que uma “relação de inimizade institucional” entre Estado e religião. Não é isso que o texto constitucional estabelece e preconiza.

Quanto à objeção de consciência para o serviço militar, o texto constitucional estabelece que o serviço militar é obrigatório nos termos da lei e que às Forças Armadas compete, nas formas da lei, atribuir esse serviço alternativo aos que, em tempo de paz, após alistados, alegarem imperativo de consciência, entendendo-se como tal, ou decorrente de crença religiosa e de convicção filosófica ou política para se eximirem de atividades de caráter essencialmente militar. Aqui, de forma clara, está aquilo que já está anotado no artigo 5º, inciso 8º, do texto constitucional, quanto à objeção de consciência para prestar o serviço militar obrigatório. E, de novo, também aqui vale a referência que fiz ao tratar do tema do inciso 8º, dizer que a disciplina legal dessa matéria há de ser pautada por um juízo de proporcionalidade.

Eu tenho até a convicção hoje que, diante das mudanças ocorridas nesses anos todos quanto ao próprio papel das Forças Armadas e também, felizmente, da distância que hoje existe em relação à possibilidade de envolvimento do país em conflitos militares, que talvez a formulação dessa disposição devesse ser muito mais ampla para permitir que esse serviço alternativo não precisasse ser disciplinado e regrado pelas próprias Forças Armadas, mas que isso desse ensejo, base, para o desenvolvimento de um serviço civil que pudesse ser prestado para além dos espaços e pórticos das organizações militares. Parece-me que aqui temos um espaço para reflexão de lege ferenda de jure constituendo ao pensarmos que não é preciso que sejam as Forças Armadas a atribuir o serviço alternativo, até porque essa é uma questão extremamente delicada quando se manifestam as chamadas “objeções de consciência”. Na Alemanha do período da Guerra Fria, dizia-se que muitas vezes se reconhecia a objeção de consciência, mas se mandava que o sujeito a prestar o serviço alternativo ficasse a limpar o quartel ou a cuidar de armas no quartel. Isso significava, de alguma forma, quase que humilhar o indivíduo por ter manifestado a objeção de consciência. Portanto, aqui nós devemos, talvez, ter um espaço para uma discussão mais séria, no sentido de fazer um embrião importante de um serviço civil que não esteja necessariamente conexo e submetido às Forças Armadas. Se a objeção inclusive se volta contra a própria organização militar, que possa ser utilizada em tempos de guerra, talvez a disciplina devesse ter um caráter muito mais aberto. 


Outro ponto que certamente será objeto de discussão no seminário diz respeito à imunidade tributária e é mais um ponto para reforçar aquela minha premissa inicialmente assentada quanto à ideia de neutralidade sem inimizade ou indiferença. Quando o texto constitucional diz que, sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos estados e aos municípios impor tributos aos tempos de qualquer culto — veja: aqui, claramente exige a Constituição que haja uma prestação de caráter positivo de colaboração, e aqui, claro, volta a fórmula americana que diz que quem pode tributar pode também destruir. Evidentemente que aqui quis o constituinte proteger essas entidades, assegurando-lhes o direito à imunidade tributária. Claramente não se trata de um modelo de indiferença, mas se trata de um modelo de neutralidade que pode e deve envolver uma atitude de cooperação.

Temos, portanto, aqui, uma visão que não corresponde muitas vezes à leitura unilateral fria que se faz do chamado “Estado laico”. Por outro lado, nem é preciso dizer, a Constituição se desenvolve com base em determinados pressupostos que não podem ser abandonados, que não podem ser, de alguma forma, desvirtuados, sob pena de se desvirtuar o próprio texto constitucional. É nesse contexto, por exemplo, que a mim me parece, isso vai ser objeto, salvo engano, de uma consideração especial na palestra do professor e querido amigo Ives Gandra da Silva Martins, que a mim me parece baste exagerada: a discussão sobre a necessidade de que, em função do modelo de Estado laico, se expulsem de todos os espaços públicos o crucifixo. A mim me parece que isso significa que nós estamos a fazer uma leitura do texto constitucional divorciada da cultura judaico-cristã que nós desenvolvemos. O símbolo não é necessariamente um símbolo religioso. Alguns poderão vê-lo com tal, mas é o símbolo de uma cultura que precisa ser reconhecida. Eu já até brinquei, num julgamento no Supremo Tribunal Federal, diante desses impulsos, dizendo que se levássemos essa discussão radical ao extremo, se seguíssemos esse raciocínio até as suas últimas consequências, daqui a pouco, talvez, nós nos animássemos a revogar o calendário gregoriano. Temos que ter cuidado portanto, com esse tipo de impulso e, por isso, é preciso que nós viajemos dentro das premissas constitucionais que estão estabelecidas de forma bastante clara no texto constitucional e que, a meu ver, sinalizam que essa ideia de neutralidade não há de ser a ideia de uma indiferença e muito menos de uma relação de repúdio ou de inimizade. Se ainda houvesse dúvida nesse périplo, nós também poderíamos fazer a verificação no artigo 210, paragrafo 1º, do texto constitucional, quando se diz, quanto a ensino: “serão fixados conteúdos mínimos para o Ensino Fundamental de maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos nacionais e regionais”. E o parágrafo primeiro diz: “o ensino religioso de matrícula facultativa constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de Ensino Fundamental”. Veja, de novo, uma atitude de abertura numa estrutura estatal plural e uma atitude de cooperação e de integração. Essa matéria está disciplinada também na Lei de Diretrizes e Bases da Educação e está submetida, como aqueles que se dedicam ao tema sabem, a uma ADI do Supremo Tribunal Federal, pela Procuradoria-Geral da República. É a ADI 4.439, ainda sem julgamento. Mas é um tema que, sem dúvida nenhuma, denota esse quadro de constitucionalismo de feição cooperativa, de neutralidade com reconhecimento do significado cultural da religião para a comunidade com um todo. E nessa mesma premissa e nessa mesma toada, nós temos a regra do artigo 326, parágrafos 1º e 2º, que diz que a família é a base da sociedade e tem especial proteção do Estado. O casamento civil é gratuito, e aí se diz: “o casamento religioso tem efeito civil nos termos da lei”. De novo, de forma muito clara, portanto, reconhece-se aqui a possibilidade de integração e cooperação entre o poder público e as entidades religiosas, de modo que, mais uma vez, eu os concito a pensar criticamente a propósito dessa temática, especialmente porque, de tempos em tempos, em função inclusive dos debates que se colocam hoje no ambiente dessa aldeia global, nós temos o ressurgimento de determinadas questões: o tema do crucifixo nos tribunais ou em determinados espaços públicos; quando em vez, é retomada a discussão sobre a guarda de determinado dia para determinada religião e a impossibilidade de prática de determinados atos da vida civil.

Muitas vezes, nós temos nessas questões esboços de eventuais conflitos e, certamente, precisamos acompanhar esse debate, atualizar os temas, ver as matérias que eventualmente careçam de alguma disciplina mais amiga, mais suave, mais proporcional, que evite uma sobrecarga para os crentes de uma determinada concepção religiosa.

Por isso que eu tenho ressaltado que é importante afirmar que, no sistema brasileiro, a neutralidade estatal não se confunde com indiferença, até porque salientada por autores de tomo, como Jorge Miranda, [segundo o qual] o silêncio sobre religião, na prática, redunda em imposição contra a religião. É por isso que eu também tenho ressaltado, e já tive oportunidade de destacar, que não se revela inconstitucional que o Estado se relacione com as organizações religiosas, tendo em vista, inclusive, os benefícios sociais que elas são capazes de gerar.

Dois autores portugueses insuspeitos — Canotilho e Jonatas Machado —, afirmam, inclusive, que o princípio da neutralidade do Estado não tem nada a ver com indiferentismo religioso por parte dos poderes públicos. O princípio da neutralidade do Estado preclude qualquer compreensão negativa oficial relativamente à religião em geral ou a determinadas crenças religiosas em particular. Portanto, entre nós, não podemos sustentar aquela ideia que foi muito corrente no sistema americano de levantar uma parede que separasse o Estado e a religião. Em muitos pontos, como nós estamos a ver, o que o texto constitucional preconiza em muitos casos é uma relação de possível cooperação e, por isso, é preciso, que nesse contexto, nós enfrentemos os casos concretos que certamente são desafiadores. O desafio que se coloca para o intérprete brasileiro não é maior, mas também não é menos do que aquele que se coloca para os juízes em todo o mundo, no que diz respeito à necessidade de preservar o direito de liberdade religiosa num modelo do Estado laico. Mas nós temos premissas muito claras no texto constitucional que preconizam não uma animosidade, mas uma cooperação, possível cooperação entre o Estado e as entidades religiosas.

Acredito que me avizinho do limite do meu tempo, e gostaria de desejar que os senhores tenham um seminário com grande sucesso e que daqui saiam reflexões e problemas que contribuam para que nós possamos ter uma clara, uma boa iluminação da jurisprudência para os próximos anos. Muito obrigado.

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