MP 627

Novos requisitos necessários para amortização fiscal do ágio

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26 de maio de 2014, 15h00

A legislação tributária determina que os investimentos de uma empresa em outra podem ser avaliados por dois diferentes métodos: (i) custo de aquisição e (ii) valor do patrimônio líquido (Método da Equivalência Patrimonial). Na hipótese da investidora adquirir ativos por valor superior ao registrado contabilmente, deve desmembrar o montante pago, de modo que o excesso represente o ágio.

O ponto principal está na definição de que o ágio representa uma parcela do custo de aquisição do investimento decorrente de valores existentes no patrimônio da investida, mas não contabilizados. Assim, do ponto de vista material, ágio é a parcela do custo que representa o direito da investidora de participar em valores não contabilizados pela investida. Do ponto de vista quantitativo, até a edição da Medida Provisória 627/2013, o ágio era representado pela diferença entre o valor pago e o contabilizado na data da aquisição do investimento (patrimônio líquido da investida).

Nos termos do artigo 20 do Decreto-Lei 1.598/1977, o ágio ou deságio contabilizado deve indicar o seu fundamento econômico, assim sendo:

a) mais-valia dos ativos: a amortização da diferença entre o valor de mercado e o valor contábil dos bens do ativo da sociedade investida é feita na proporção em que a realização dos bens ocorrer na sociedade investida, através de depreciação, amortização ou exaustão, ou por baixa em decorrência de alienação ou de perecimento;

b) expectativa de rentabilidade futura: a amortização é no prazo e na extensão das projeções que determinaram essa expectativa, ou quando houver baixa em decorrência de alienação ou de perecimento do investimento;

c) fundo de comércio, intangíveis e outras razões econômicas: a amortização é feita no prazo estimado de utilização, de vigência ou de perda de substância ou quando houver baixa em decorrência de alienação ou de perecimento do investimento.

Via de regra, o ágio (ou o deságio) contabilizado na aquisição de investimentos não deveria influenciar a apuração do lucro real, de modo que deve ser adicionado (ou excluído) via LALUR, nos termos do artigo 25 do Decreto-Lei 1.598/1977.

Esse panorama mudou com a edição da Lei 9.532/1997, que passou a permitir o aproveitamento fiscal do ágio fundamentado na expectativa de rentabilidade futura incorrido pela investidora, quando essa absorver o patrimônio de investida.

Verifica-se no artigo 7º da Lei 9.532/1997 uma norma tributária de caráter indutor, que estimula as incorporações societárias, outorgando às empresas o direito de recuperar parte do sobrepreço pago através da amortização do ágio na apuração do lucro real, no prazo mínimo de cinco anos, à proporção de 1/60 ao mês. O artigo 8º da mesma lei admite a amortização do ágio ainda que o investimento não seja avaliado pelo MEP, ou no caso da incorporação da investidora pela investida (incorporação reversa).

Em outras palavras, a amortização do ágio nada mais é do que um benefício fiscal criado pelo Governo Federal para estimular investimentos no Brasil. Para a fruição desse benefício, a Lei nº 9.532/1997 previa apenas os seguintes requisitos:

i) que uma pessoa jurídica incorpore outra na qual detenha participação adquirida com ágio; e

ii) que o ágio adquirido tenha por fundamento a expectativa de geração de lucros futuros nos termos do artigo 20, parágrafo 2º, inciso b, do Decreto-Lei 1.598/1977.

Tal assertiva em nada se modificou com as alterações sofridas pela legislação societária a partir das Leis 11.638/07 e 11.941/09, editadas no âmbito do processo de convergências da contabilidade brasileira aos padrões internacionais (IFRS – International Financial Reporting Standards).

Com a Lei 11.638/07, o Comitê de Pronunciamentos Contábeis foi compelido a se manifestar e, através do Pronunciamento CPC 15, regulou a temática da combinação de negócios, estabelecendo as diretrizes para o reconhecimento e para a mensuração do ágio gerado em razão da expectativa de rentabilidade futura (goodwill).

O CPC 15 define ágio como a diferença positiva entre o valor pago pela aquisição de controle da adquirida e o valor líquido, na data de aquisição, dos ativos identificáveis adquiridos e dos passivos assumidos, com base em seu valor justo.

A definição acima evidencia uma importante modificação também na apuração do valor do ágio. Este deixa de ser (i) a diferença positiva entre o valor pago pela participação societária adquirida e o valor de patrimônio líquido da investida e passa a ser (ii) a diferença positiva entre o preço de aquisição e o valor líquido dos ativos e passivos identificáveis da investida trazidos a valor justo. Assim, ativos e passivos não identificados (mas identificáveis) passam a ser contabilizados. Ademais, a contabilidade não admite mais a amortização do ágio, que passou a ficar submetido a testes periódicos de recuperabilidade (impairment).

Como essas alterações na legislação societária não alteraram a matriz legal do ágio fiscal, o mesmo continuou sendo apurado e amortizado de acordo com os critérios e requisitos previstos na Lei 9.532/1997 e redação original do Decreto-Lei 1.598/1977. Em resumo: ágio, para a contabilidade, era uma coisa; para o direito tributário, era outra bastante diversa.

Entretanto, o Fisco sempre contestou o ágio amortizado pelas empresas e lavrou autuações quando encontrava situações que considerava indícios de simulação, tais como: (i) pagamento mediante substituição de ações; (ii) operações realizadas entre partes relacionadas; (iii) ausência de laudo técnico emitido por empresa independente justificando o preço pago e o fundamento econômico do ágio; (iv) falta de alocação da mais-valia dos ativos antes de apurar a rentabilidade futura.

A despeito da inexistência de previsão legal, alguns precedentes do CARF[1] deram guarida ao entendimento do Fisco, e mantiveram autuações decorrentes de operações societárias que apresentavam os elementos descritos acima.

A posição é criticável, porque, sendo o ágio um benefício fiscal previsto em lei formal, a modificação ou a supressão do benefício deveria ser realizada também por lei em sentido formal e de modo expresso, nos termos do artigo 97 do CTN[2] e 150, parágrafo 6º da CF/88[3].

E foi exatamente o que aconteceu em novembro de 2013, quando editada a Medida Provisória 627 (convertida na Lei 12.973 de 13/05/2014). Referido diploma equiparou o conceito fiscal de ágio ao conceito contábil e criou novas regras para a sua amortização da base de cálculo do IRPJ e da CSLL.

Dentre as muitas alterações realizadas, o citado diploma trouxe novas regras para a amortização fiscal do ágio, restringindo tanto o âmbito de aplicação quanto as bases de apuração do benefício.

Os artigos 2º, 22, 23 e 24 da MP 627/2013 trouxeram as seguintes modificações na legislação para a amortização fiscal do ágio:

i) antes da apuração do ágio, os ativos identificáveis devem ser reconhecidos no patrimônio líquido da empresa adquirida a valor justo. Tais ajustes serão reconhecidos como mais-valia dos ativos e não irão compor o valor do ágio;

ii) o ágio será calculado pela diferença entre o valor de aquisição e o valor do patrimônio líquido após os ajustes referidos no item anterior;

iii) o ágio não poderá ser reconhecido se a operação societária foi realizada entre partes relacionadas ou quando decorrente de operação de substituição de ações ou cotas de participação societária; e

iv) para o reconhecimento do ágio deverá ser elaborado laudo técnico emitido por empresa especializada e independente

Percebe-se que a MP 627/2013 equiparou o ágio contábil ao ágio fiscal, e incorporou requisitos que já eram exigidos rotineiramente pelo Fisco e CARF.

Com a conversão da MP 627/2013 na Lei 12.973/2014, a nova metodologia de apuração do ágio e quase todos os requisitos destacados acima foram mantidos. A exceção foi a proibição de amortização do ágio apurado em operação de substituição de ações, existente no texto da MP 627 e retirada da Lei 12.793/2014.

De todo modo, as diferenças entre o regime do ágio fiscal na Lei 9.532/97 e na Lei 12.973/2014 são abissais.

Com a necessidade de reconhecer os ativos identificáveis a valor justo para apuração da mais-valia antes do reconhecimento do ágio, duas importantes consequências podem ser destacadas:

a) foi reduzida a base de apuração do ágio, uma vez que o valor da compra passou a ser contraposto ao valor justo do patrimônio líquido da empresa investida (ou seja, com reavaliação dos ativos e reconhecimento daqueles não identificados, como os intangíveis);

b) foi estabelecida ordem de preferência para o fundamento econômico, pois a mais-valia deve ser reconhecida ab initio, relegando o ágio a um valor residual de compra não explicado pelo patrimônio líquido da incorporada.

Um exemplo prático demonstra as diferenças entre o “antigo” e do “novo” ágio fiscal. Imagine que a empresa ALFA adquiriu 100% das ações da empresa BETA pelo valor de R$ 200 mil. Os ativos relevantes de BETA estão retratados abaixo, e para fins didáticos o valor patrimonial será considerado igual ao da soma dos ativos: 

Balanço de BETA em 31.12.X  
Descrição Valor contábil Valor de Mercado
Ativos tangíveis R$ 100.000,00 R$ 150.000,00
Ativos intangíveis R$ 30.000,00
Total R$ 100.000,00 R$ 180.000,00

Considerando a legislação vigente até a MP 627/2013, o ágio pago por ALFA é a diferença entre o montante pago na transação e o valor “de livro” de BETA: 

Ágio amortizável até a MP 627 
Valor da transação R$ 200.000,00
Valor contábil de "BETA" R$ 100.000,00
Ágio por rentabilidade futura R$ 100.000,00

Pelas novas regras, o ágio deve ser calculado levando em conta o valor justo dos ativos líquidos identificáveis:

Ágio amortizável após a MP 627 
Valor da transação R$ 200.000,00
Valor Justo de "BETA" R$ 180.000,00
Ágio por rentabilidade futura R$ 20.000,00

Além disso, passou a ser exigida a elaboração de laudo técnico emitido por empresa especializada e independente justificando o valor da aquisição, e está expressamente proibida a apuração do ágio em operações societárias realizadas entre partes relacionadas.

Todas essas alterações aproximaram o ágio fiscal do ágio reconhecido pela contabilidade brasileira após o processo de convergência aos padrões contábeis internacionais: o chamado goodwill.

Não se pretende aqui contestar a oportunidade das alterações legislativas destacadas acima.

Entretanto, parece intuitivo que tais modificações legislativas só poderiam ser aplicadas às operações societárias realizadas após a vigência da MP 627/2013, sob pena de violação a ato jurídico perfeito e ao direito adquirido ao benefício fiscal aqui analisado[4].

E tanto é assim, que o artigo 65 da Lei 12.973/2014 dispôs expressamente que o regime do ágio previsto nos artigos 7º e 8º da Lei 9.532/1997 continuaria sendo aplicado às incorporações, fusões e cisões ocorridas até 31 de dezembro de 2017, desde que as aquisições de participação societária tenham sido realizadas até 31 de dezembro de 2014. É ver:

Art. 65. As disposições contidas nos arts. 7º e 8º da Lei 9.532, de 10 de dezembro de 1997, e nos arts. 35 e 37 do Decreto-Lei 1.598, de 26 de dezembro de 1977, continuam a ser aplicadas somente às operações de incorporação, fusão e cisão, ocorridas até 31 de dezembro de 2017, cuja participação societária tenha sido adquirida até 31 de dezembro de 2014.

Ocorre que o Fisco (no que tem sido referendado em parte por decisões do CARF) sempre sustentou que tais requisitos trazidos pela MP 627/2013 para a amortização fiscal do ágio já estavam previstos implicitamente nos artigos 7º e 8º da Lei 9.532/1997 e artigo 20 do Decreto-Lei 1.598/1977.

O argumento não procede, pois, se assim fosse, a Lei 12.973/2014 não teria tido qualquer razão para repetir algo que já estava dito (ainda que implicitamente) no ordenamento jurídico. Nem se argumente que tais disposições teriam caráter interpretativo, o que validaria sua aplicação retroativa nos termos do artigo 106, inciso II, do CTN, pois os artigo 65 da Lei 12.794/2014 declara expressamente os efeitos prospectivos do novo regime fiscal do ágio.

Pode-se concluir que a introdução dos requisitos reclamados pela Receita Federal em autuações fiscais na MP 627/2013 demonstra, inequivocamente, que os mesmos não tinham base legal no regime anterior.

Dessa forma, as autuações fiscais lavradas para glosar amortização de ágio da base de cálculo do IRPJ/CSLL decorrentes de aquisições de participação societária realizadas antes de 31 de dezembro de 2014, que estejam calcadas exclusivamente na inobservância dos requisitos que só foram introduzidos no ordenamento jurídico pela MP 627/2013 devem ser canceladas por falta de supedâneo legal.


[1] 1º Conselho, 3ª Câmara, PTA nº 18471.001782/2005-36, Acórdão nº 103-23.290, Rel. Aloysio José Percíneo da Silva, DJ de 08.05.2008; 1ª Seção, 4ª Câmara, 2ª Turma Ordinária, AC 1402-001.264, PTA nº 18471.000808/2007-91, Rel. Antonio José Praga de Souza, julgado em 04.12.2012.

[2]Art. 97. Somente a lei pode estabelecer:

(…)

VI – as hipóteses de exclusão, suspensão e extinção de créditos tributários, ou de dispensa ou redução de penalidades.”

[3]Art. 150. (…)

§ 6.º Qualquer subsídio ou isenção, redução de base de cálculo, concessão de crédito presumido, anistia ou remissão, relativos a impostos, taxas ou contribuições, só poderá ser concedido mediante lei específica, federal, estadual ou municipal, que regule exclusivamente as matérias acima enumeradas ou o correspondente tributo ou contribuição, sem prejuízo do disposto no art. 155, § 2.º, XII, g.

[4] “Art. 5º (…). XXXVI – a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada;”

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