Direito Comparado

Direito de apagar dados e a decisão do tribunal europeu no caso Google Espanha

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Junior

    é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP) com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

21 de maio de 2014, 8h01

Spacca
(Parte 1)
Mario Costeja González, o homem que pediu para ser esquecido pelo Google, ainda não é um verbete na Wikipedia. Mas, quase chegou lá: a enciclopédia colaborativa possui um verbete intitulado Google Spain v AEPD and Mario Costeja González, no qual se pode ler a história desse súdito espanhol e sua luta para apagar dados pessoais disponíveis no mais popular motor de busca da internet.[1]

Em uma pesquisa no Google, descobre-se que Mario Costeja González é um advogado espanhol, que morava na Rua Montseny, na cidade de Barcelona, em um apartamento de 90m2, o qual foi levado a hasta pública para pagamento de dívidas com a seguridade social espanhola, conforme se noticiou no jornal La Vanguardia, no ano de 1998, na página de anúncios de leilões públicos. Maria Vosteja González, no entanto, havia quitado a dívida, sem que houvesse necessidade da venda judicial. Em 2009, ele procurou administrativamente o jornal para pedir que seu nome não mais aparecesse no motor de busca em associação a esse fato. A resposta foi negativa e o argumento foi que a publicação se devera a um comando do Ministério do Trabalho e Seguridade Social. O periódico servira apenas como instrumento para executar uma determinação do órgão público.

Em 2010, Mario Costeja González também buscou administrativamente, desta vez junto ao Google Espanha, a retirada de seus dados do motor de busca. A sucursal espanhola transmitiu o requerimento de Costeja González para a matriz californiana. O pedido foi rejeitado pela empresa. Em março do mesmo ano, o espanhol protocolizou uma reclamação na Agência Espanhol de Proteção de Dados (AEPD) contra a empresa La Vanguardia Ediciones SL, que edita o jornal com idêntico nome, com grande circulação na Catalunha, e também contra Google Spain e Google Inc.

O pedido de Mario Costeja González consistia em que fossem suprimidas ou alteradas as páginas eletrônicas nas quais seus dados estavam disponíveis, de modo a que estes não mais aparecessem ou que não fosse possível sua leitura por terceiros. Segundo ele, não havia mais sentido na divulgação dos dados do processo de execução, em razão de sua extinção há vários anos.

O julgamento da reclamação pela agência espanhola deu-se em julho de 2010, tendo a AEPD rejeitado o pedido em face do jornal, por se considerar que o periódico tão somente publicou o anúncio por ordem do Ministério do Trabalho e Seguridade Social, cujo objetivo era de ordem pública, porquanto visava a dar ampla publicidade ao leilão dos imóveis. Quanto ao Google, sucursal e matriz, a AEPD entendeu que os motores de busca submetem-se à legislação protetiva de dados pessoais, na medida em que são intermediários entre a informação e o público. Seria, por conseguinte, legítimo determinar a retirada dos dados e impor proibição de que certas informações pessoais venham a ser expostas, quando isso implicar lesão ao direito fundamental de proteção de dados e também à dignidade das pessoas em sentido amplo. Nesse último aspecto, também se compreenderia o desejo do indivíduo de que seus dados pessoais não sejam conhecidos por terceiros.

Inconformadas com a decisão da autarquia espanhola, Google Spain e a Google Inc. ajuizaram recursos perante a Audiência Nacional, um órgão judiciário de Espanha, com competência sobre todo o território do país, de cujos julgamentos cabem recurso ao Supremo Tribunal da Espanha.

No julgamento do caso, a Audiência Nacional entendeu que seria necessário devolver a matéria para o Tribunal de Justiça da União Europeia, por considerar que a matéria envolvia a interpretação da Diretiva 95/46, de 24 de outubro de 1995, relativa à proteção das pessoas naturais no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados.

Mario Costeja González teve, então, seu “dia na Corte”, quando a matéria foi examinada pelo Tribunal de Justiça da União Europeia, em seu órgão plenário (a Grande Seção), no último dia 13 de maio de 2014. Antes disso, a controvérsia envolvendo o direito do espanhol de “apagar dados pessoais” já havia sido noticiada em diversos jornais e periódicos, sendo aguardada a solução do caso em meio a enorme polêmica nos meios jurídicos e políticos europeus e norte-americanos.

A partir de agora, far-se-á um resumo do acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia, em cujo julgamento também funcionaram representantes de diversos governos nacionais europeus:[2]

1. Marco normativo analisado. A controvérsia tem como objeto o pedido de interpretação, em caráter judicial, dos artigos 2°, alíneas b e d; 4°, inciso 1, alíneas a e c; 12, alínea b, e 14, parágrafo primeiro, alínea a, todos da Diretiva 95/46/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 24 de outubro de 1995, bem assim do artigo 8° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia

2. Natureza da atividade dos motores de busca. O primeiro desafio do tribunal europeu foi caracterizar as atividades dos motores de busca. A tese do Google é de que ele não faz tratamento específico dos dados que surgem na internet em páginas de terceiros. E, ainda que se admita que o Google realiza um tratamento de dados, isso não pode torná-lo responsável juridicamente, na medida em que ele não conhece o teor desses dados e não exercer sobre eles qualquer controle.

Em contradição à tese do Google, o reclamante Mario Costeja González, os Governos espanhol, italiano, austríaco e polonês, além da Comissão Europeia, sustentaram que a ação do motor de busca deve ser considerada como tratamento de dados, no sentido que lhe é conferido pela Diretiva 95/46. Desse ponto é que decorreria a responsabilidade do Google, na medida em que ele dá finalidade ao acesso aos dados e define quais os meios para seu tratamento.

A conclusão do tribunal europeu, quanto a esse ponto, foi no sentido de que “não se discute que entre os dados encontrados, indexados e armazenados pelos motores de busca e postos à disposição dos seus utilizadores figuram também informações sobre pessoas singulares identificadas ou identificáveis e, portanto, ‘dados pessoais’ na acepção do artigo 2.°, alínea a), da referida diretiva”. Em tal ordem de ideias, “ao explorar a Internet de forma automatizada, constante e sistemática, na busca das informações nela publicadas, o operador de um motor de busca ‘recolhe’ esses dados, que ‘recupera’, ‘registra’ e ‘organiza’ posteriormente no âmbito dos seus programas de indexação, ‘conserva’ nos seus servidores e, se for caso disso, ‘comunica’ e ‘coloca à disposição’ dos seus utilizadores, sob a forma de listas de resultados das suas pesquisas”. De acordo com o artigo 2.°, alínea b, da Diretiva 95/46, a ação do Google é uma forma de tratamento de dados, “independentemente de o operador do motor de busca efetuar as mesmas operações também com outros tipos de informação e não as distinguir dos dados pessoais”.

3. A responsabilidade do Google pelo tratamento dos dados. Como decorrência do enfrentamento da tese da natureza da atividade desenvolvida pelo Google, surge a questão de sua responsabilidade. Nesse ponto, o Tribunal de Justiça da União Europeia concluiu que “é o operador do motor de busca que determina as finalidades e os meios dessa atividade e, deste modo, do tratamento de dados pessoais que ele próprio efetua no contexto dessa atividade e que deve, consequentemente, ser considerado ‘responsável’ por esse tratamento por força do referido artigo 2.°, alínea d)”.

A organização dos dados pelos motores de busca implica a “organização e a agregação das informações publicadas na Internet”, com o “objetivo de facilitar aos seus utilizadores o acesso às mesmas”, o que “conduzir, quando a pesquisa desses utilizadores é feita a partir do nome de uma pessoa singular, a que estes obtenham, com a lista de resultados, uma visão global mais estruturada das informações sobre essa pessoa, que se podem encontrar na Internet, que lhes permita estabelecer um perfil mais ou menos detalhado da pessoa em causa”.

A ação dos motores de busca, nesse sentido, pode afetar de modo sensível “os direitos fundamentais à vida privada e à proteção dos dados pessoais”. De tal sorte que “o operador desse motor, como pessoa que determina as finalidades e os meios dessa atividade, deve assegurar, no âmbito das suas responsabilidades, das suas competências e das suas possibilidades, que essa atividade satisfaça as exigências da Diretiva 95/46, para que as garantias nesta previstas possam produzir pleno efeito e possa efetivamente realizarse uma proteção eficaz e completa das pessoas em causa, designadamente do seu direito ao respeito pela sua vida privada”.

4. A questão da competência territorial. A segunda questão prejudicial analisada pelo Tribunal de Justiça da União Europeia consiste na possibilidade de se considerar a atividade do Google como sujeita às leis e às instituições judiciárias europeias.

Entendeu-se que havia uma divisão de tarefas entre a matriz norte-americana (responsável pelo tratamento de dados) e a filial espanhola (responsável pela comercialização de publicidade do grupo na Espanha). A defesa do Google consistiu no argumento de que “o tratamento de dados pessoais em causa no processo principal é efetuado exclusivamente pela Google Inc., que explora o Google Search sem intervenção alguma da Google Spain, cuja atividade se limita a fornecer apoio à atividade publicitária do grupo Google que é distinta do seu serviço de motor de busca”.

Para o Tribunal de Justiça, no entanto, a Diretiva 95/46 tem por finalidade “assegurar uma proteção eficaz e completa das liberdades e dos direitos fundamentais das pessoas singulares, nomeadamente do direito à vida privada, no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais”, de tal modo que “esta última expressão não pode ser objeto de interpretação restritiva (v., por analogia, acórdão L’Oréal e o., C324/09, EU:C:2011:474, n.os 62 e 63)”.

Haveria, por isso, uma ligação indissociável entre a empresa matriz e a filial, ainda que entre estas haja uma divisão de trabalho, até porque “as atividades relativas aos espaços publicitários constituem o meio para tornar o motor de busca em causa economicamente rentável e que esse motor é, ao mesmo tempo, o meio que permite realizar essas atividades”.

5. A existência de um “direito de apagar dados pessoais”. O terceiro capítulo do acórdão de maior interesse para esta coluna é o que responde ao problema de se saber se “o operador de um motor de busca é obrigado a suprimir da lista de resultados exibida na sequência de uma pesquisa efetuada a partir do nome de uma pessoa as ligações a outras páginas web, publicadas por terceiros e que contêm informações sobre essa pessoa, também na hipótese de esse nome ou de essas informações não serem prévia ou simultaneamente apagadas dessas páginas web, isto, se for caso disso, mesmo quando a sua publicação nas referidas páginas seja, em si mesma, lícita”.

A tese do Google é de que os pedidos de “apagar dados”, com base no princípio da proporcionalidade, deveriam ser dirigidos ao editor do sítio no qual as informações forma lançadas. O reconhecimento puro e simples de um direito a apagar dados implica desconsiderar os “direitos fundamentais dos editores de páginas web, dos outros internautas nem do próprio operador”.

Esta e outras questões acessórias serão analisadas na próxima coluna, que também recolocará o problema da terminologia — direito ao esquecimento, direito a ser esquecido, direito a ser deixado em paz e direito a apagar dados — e seus reflexos no Direito brasileiro.


 [2] Funcionaram no julgamento: V. Skouris, presidente, K. Lenaerts, vice‑presidente, M. Ilešič (relator), L. Bay Larsen, T. von Danwitz, M. Safjan, presidentes de secção, J. Malenovský, E. Levits, A. Ó Caoimh, A. Arabadjiev, M. Berger, A. Prechal e E. Jarašiūnas, juízes. Como procurador-geral atuou N. Jääskinen. Atuaram no processo, em representação do Governo espanhol, A. Rubio González, na qualidade de agente; em representação do Governo grego, E.‑M. Mamouna e K. Boskovits, na qualidade de agentes; em representação do Governo italiano, G. Palmieri, na qualidade de agente, assistida por P. Gentili, advogado do Estado; em representação do Governo austríaco, G. Kunnert e C. Pesendorfer, na qualidade de agentes; em representação do Governo polonês, B. Majczyna e M. Szpunar, na qualidade de agentes; em representação da Comissão Europeia, I. Martínez del Peral e B. Martenczuk, na qualidade de agentes, O acórdão está disponível em: http://curia.europa.eu/juris/document/document.jsf?doclang=PT&text=&pageIndex=1&part=1&mode=req&docid=152065&occ=first&dir=&cid=201752. Acesso em 20-5-2014.

Autores

  • é advogado da União, professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

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