Pesadelo burocrático

Jurisprudência admite dissolução parcial em sociedade anônima

Autor

  • César Peres

    é sócio do Cesar Peres Advocacia Empresarial especializado em Direito Empresarial e membro da Comissão Especial de Falências e Recuperação Judicial da OAB-RS e da Turnaround Management Association – TMA Brasil.

20 de maio de 2014, 8h16

Quando o empresário faz tudo certo, cresce e se vê numa sociedade anônima, parece a realização de um antigo sonho. A ilusão se desfaz, no entanto, se ele descobre que a empresa que fundara com seus familiares — embora lucrativa — toma um rumo totalmente diferente do que imaginara no seu início. Aí, abandonar o barco e reorientar os seus ativos para nova empreitada pode se tornar uma via crucis ou verdadeiro pesadelo, porque a legislação é uma camisa de força.

Legalmente, no frigir dos ovos, é o artigo 137 da vetusta Lei das Sociedades Anônimas (6.404/76) que impede a dissolução parcial das sociedades anônimas de capital fechado. Essa proibição, na prática, torna o empreendedor refém de um projeto que não tem mais a sua ‘‘cara’’.

Apenas uma explicaçãozinha necessária aos que não são do ramo: a dissolução parcial da empresa surgiu como sucedânea da dissolução total, para atender os princípios da preservação da sociedade e da sua utilidade social. Em suma, existe para impedir a ‘‘descontinuidade’’ empresarial. Ou seja, o legislador quis evitar que a saída do sócio determinasse o fim do empreendimento.

Antes de mostrar por que o citado artigo fere dispositivo constitucional, é vital esclarecer que a celeuma se estabelece a partir de uma velha discussão, envolvendo duas consagradas expressões latinas. Em sua subjetividade, estas encarnam dois modos associativos distintos, com tratamentos jurídicos que lhes são próprios. Às vezes, estes conceitos se cruzam e turvam a mente do legislador e dos magistrados.

De um lado, temos a intuitus personae, para significar que o contrato é celebrado em função de características pessoais. A sociedade assentada nesses moldes passa a ser regida pela vontade e liberdade de contratar com outras pessoas, pois a base da associação é a identidade de ideias e fundamentos — embora o objetivo final seja o lucro. É como dizer: ‘‘estamos juntos por afinidade pessoal’’. A legislação autoriza a saída do sócio quando comprovada a ‘‘quebra de afeição’’ — também conhecida como fim da affectio societatis.

Do outro, aparece o intuitus pecuniae, em que a associação ocorre visando, primordialmente, o lucro e a distribuição de dividendos, já que os sócios não precisam comungar dos mesmos ideais entre si. Nesse grupo, aparecem as sociedades anônimas, tanto de capital aberto como fechado. Os participantes da sociedade não são regidos por contratos administrativos, mas por estatutos sociais. Deixar este grupo é bem mais complicado — o que justifica este artigo.

Assim, em tempos de direitos fundamentais, o ‘‘coringa’’ está na Constituição Federal, mais precisamente no inciso XX, do artigo 5º. Ele prevê que ‘‘ninguém poderá ser compelido a associar-se ou permanecer associado’’. Ou seja, se o sócio não tiver mais interesse em permanecer associado, a Carta Maior garante sua retirada de qualquer negócio, desimportando se há ou não quebra de afeição entre os outros sócios ou ausência de lucratividade ou dividendos. Em síntese, garante a chamada ‘‘saída imotivada’’.

Ora, se a Constituição permite e a lei ordinária veta esta dissolução, a jurisprudência passa a ter papel preponderante na equação do problema. Conhecê-la em suas minudências, pois, parece ser a diferença entre obter sucesso ou não numa dissolução societária de sociedades anônimas, especialmente aquelas com características de limitada e de capital fechado.

A propósito, é histórico e digno de nota o desfecho do Recurso Especial 111.294 (Paraná), julgado em 2001, em que o Superior Tribunal de Justiça se posicionou de maneira favorável à retirada de um sócio numa companhia familiar de capital fechado, pelo rompimento da ‘‘afeição societária’’ e pela impossibilidade de alcançar objetivo social — gerar dividendos.

Ficou plasmado o entendimento de que se a S/A foi formada no âmbito do intuitus personae, por ser de origem familiar, com comunhão de ideais, é possível admitir sua dissolução parcial. É o mesmo entendimento de Modesto Carvalhosa, o ‘‘pai’’ do Direito Societário no Brasil — aliás, muito ativo do alto dos seus 80 anos.

Para o mestre, é fácil apurar o intuitus personae numa S/A fechada: basta comprovar que seus acionistas não são meros investidores de capital, mas, fundamentalmente, colaboradores na realização do interesse comum. É o que também vimos afirmando há mais de uma década.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!