Ensino do direito

É preciso rever o modelo de formação jurídica no país

Autor

  • Cláudio Ribeiro Lopes

    Doutorando em Sociologia e Direito pela Universidade Federal Fluminense mestre em Direito pela Universidade Estadual de Maringá e professor assistente na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul

17 de maio de 2014, 9h10

É preciso deixar bem claro ao leitor de onde falo: pretendo, aqui, traçar ideias relativas à construção do saber jurídico enquanto um acumulado de conceitos e funções do Campo do Direito, a partir da formação de seus operadores. De início, quero frisar que não pretendo escrever na forma impessoal, porque, aparentemente, essa técnica exigida “cientificamente” pelo Direito mais parece uma forma de retirar a autoria dos nossos textos, fazendo com que tudo pareça ser obra de ninguém. Aqui, pretendo responsabilizar-me pelo que escrevo.

Nessa perspectiva, inicio o artigo aportando que vejo o Direito como um saber local, na mesma dimensão assumida por Geertz [1]. Em sendo assim, preciso destacar que não me parece possível enxergar um Direito alienado de sensibilidades jurídicas e que estas, de seu turno, conformam a própria existência do Direito, caracterizando-o em cada sociedade de forma bem peculiar. Isso já dá sinais daquilo que pretendo afirmar em seguida nesse ensaio e que guarda relação com a ideia de que não é possível importar, pura e simplesmente, institutos, conceitos e estratégias alienígenas para implantar no Brasil sem que, com isso, estejamos aptos a cometer graves e intensos equívocos.

Pelo momento devo me satisfazer com a apresentação da forma como o Direito tem sido construído no país do futebol (e, vou aproveitar e “pegar carona” com a Copa que está aí, à porta). O que eu vejo, senão, a reprodução acrítica de teorias, teoremas e “doutrinas” pelo campo do Direito, sem que as suas representações signifiquem nada mais do que a tentativa de se “vender” as ideias de atualidade, panaceia, fonte de milagres, ou, numa visão bem estreita de mundo, a locação de determinados fundamentos para funcionarem como legitimadores de argumentos de autoridade esposados pelos atores do campo jurídico (preciso recordar, aqui, como a teoria do domínio do fato foi compreendida, atualizada e empregada no famigerado julgamento da AP-470 por parte do STF).

O campo do Direito no Brasil, quanto à sua formação, tem se notabilizado (essa é uma expressão interessante porque reflete exatamente o cerne do que estou expondo: interessa menos a profundidade dos argumentos face à notoriedade de quem os expõe) como um locus por um compromisso inarredável com determinados resultados. Podemos chamar a isso “oabetização” dos cursos jurídicos, como muito bem já ilustraram, aqui mesmo, no Conjur [2], assim como podemos perceber que se constrói todo um universo de saberes voltado, simplesmente, para a alocação mercadológica profissional. Sem pretender desprestigiar nenhuma profissão, o que se vê é a “pedreirização” da formação jurídica nos milhares de cursos e faculdades que grassam nas terras tupiniquins. Por “pedreirização” estou me referindo à clausura que a generalidade das concepções de projetos pedagógicos impõe quanto àquilo que se pretende extrair como produto da formação, i.e., o alunado egresso. O que eu vejo é a exacerbação tecnicista, um adestramento [3] em detrimento de uma tentativa de formação holística, humana e, fundamentalmente, crítico-reflexiva (Lenio Luiz Streck tem farta produção crítica sobre o modelo, aqui mesmo no Conjur).

Nessa perspectiva, vejo coerência (aqui, emprego com a pior conotação que se possa imaginar) entre essas formações e o resultado prático delas. Criamos no Brasil a cada semestre, a cada ano, um determinado proletariado jurídico (e, pelo amor de qualquer divindade, não me taxem por “marxista”, pois penso que nem mesmo Karl Marx o era), constituído por milhares e milhares de profissionais que são despejados no mercado de trabalho do Direito adestrados, operacionalmente, para colocar em prática (sim, porque, já se ouve à larga por aí que importa a prática e que esse “negócio” de teoria só serve para complicar o dia a dia dos tribunais) as regras técnicas apreendidas nos manuais, apostilas, livros esquematizados, canções, raps, enfim, toda uma parafernália de estratagemas que só fazem cumprir a ideia do “Direito decoreba”. De fato, tenho de reconhecer que, nesse sentido, o direito é mágico, mesmo. Ele não só é mágico. É desenhado, autopoiético (desejara citar a Luhmann e as várias interpretações que dele se fazem nessas terras em que o esporte bretão é penta, mas fico por aqui), tecnicista e passível de contar com um verdadeiro “exército de um homem só” que está a gritar: chega de complicações cerebrais, vamos àquilo que interessa. “Só quero saber do que pode dar certo; não tenho tempo a perder”.

O proletariado jurídico de que aqui falo é constituído, basicamente, por uma plêiade de pessoas que ingressa das mais variadas formas nos cursos jurídicos brasileiros, com as mais diversas expectativas de vida (o diploma de bacharel em Direito parece ter se tornado como que uma carta de alforria; com ela, o graduado pode se submeter a uma variedade imensa de concursos públicos e, se “der ruim”, como se fala aqui no Rio de Janeiro, será advogado, no mínimo. Perdoem-me os que se sentirem ofendidos com essa visão, falo de uma realidade geral muito vista e presenciada nas dezenas de milhares de cursinhos jurídicos que existem no país; a advocacia, longe de haver se tornado uma primeira carreira, galgou o status de uma escolha indireta, para dizer o mínimo).

Essa plêiade passou pelos cursos de Direito brasileiros, não nos enganemos. Mas pergunto: os cursos jurídicos formaram o quê? Um profissional crítico-reflexivo, capaz de sentir o fato e buscar no Direito a sua sensibilidade, i.e., de acolher as demandas sociais por justiça com algum nível mínimo de profundidade epistemológica ou irá buscar pelos tais manuais e esquemas do almoxarifado jurídico da obra as petições, sentenças e pareceres prontos que o mercado tem à oferta, com raríssimas exceções (que só fazem conformar a regra) e que constituem a viga mestra desse tecnicismo tupiniquim para erguer com essas ferramentas o edifício da manipulação jurídica?

Enfim, pretendo dizer que me preocupa, muito, o que a fábrica do Direito faz com o Direito no Brasil. Molesta-me a ideia de que isso encontre pouco ou quase nenhum eco em todo o campo jurídico nas terras do futebol. Mais, ainda, que a própria academia esteja, de certa forma, alienada em algum momento à formação desse exército de técnicos jurídicos que não apresenta capacidade de pensar o Direito. Se não pensam o Direito, como poderão entender as sensibilidades jurídicas com as quais se depararão em suas várias funções no subsistema ético-social normativo e, em última instância, dentro do próprio Poder Judiciário onde grande parte dos “operários do Direito” atuará?

Não defendo a elitização dos cursos jurídicos no país. Não creio que teremos melhor Justiça com a formação de “seres iluminados”, longe disso esse ensaio. O que pretendo denunciar, aqui, é a necessidade de revermos os modelos de formação jurídica (por exemplo, por que apenas a OAB pode “dar pitaco” quanto à instalação de novos cursos jurídicos no país, ou, até quanto aos conteúdos que os cursos existentes devem ministrar?). O Direito só forma advogados? Precisamos, de fato, sentar à mesa e discutir, profundamente, a partir da academia, que espécie de público pode ser formado, no sentido de que profissionais são necessários a um Direito que possa significar mais do que o mero exercício da força ou do poder [4].

Termino minha fala com as seguintes propostas em tom de desafio: o Direito tem, de fato, algum papel estruturante a desempenhar na sociedade? Se o tem, a formação jurídica está criando seres aptos a desempenhar as expectativas relacionadas com essa estruturação exigida do Direito?

Se a máxima foi, um dia, “penso, logo existo”, a atual no nosso campo jurídico seria “reproduzo, logo existo”?

[1] GEERTZ, Cliford. O saber local: novos ensaios em Antropologia interpretativa. Tradução Vera Joscelyne. Petrópolis: Ed. Vozes, 2013.

[2] STRECK, Lenio Luiz; DA ROSA, Alexandre Morais. 126 faculdades chumbaram na OAB. O que dizem os cursinhos? www.conjur.com.br; Rimas e resumões, 10.02.2014.

[3] Thaís, 18, passa na OAB: o rei está nu! Fracassamos! www.conjur.com.br; Senso incomum, 01.05.2014.

[4] WELZEL, Hans. Introducción a la Filosofía del Derecho: derecho natural y justicia material. Tradução Felipe González Vicen. Montevideo: Julio César Faira Editor, 2011.

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  • Doutorando em Sociologia e Direito pela Universidade Federal Fluminense, mestre em Direito pela Universidade Estadual de Maringá e professor assistente na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul

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