Vulnerabilidade do consumidor

Cláusula potestativa gera desequilíbrio contratual

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16 de maio de 2014, 16h14

Muito antes de se proteger a vulnerabilidade do consumidor e, bem assim, o respeito ao princípio da ordem econômica, o consumidor deve ter respeitada a sua esfera de dignidade e integridade física e moral. O mesmo se diga, aliás, para as relações contratuais não afetas ao Código de Defesa do Consumidor, cuja incidência normativa seja o Código Civil, ou qualquer outra legislação.

Nesse sentido, não se considera legítima a relação contratual que subtraiu de uma das pessoas contratantes qualquer prerrogativa quanto à autonomia e vontade na sua fixação, como nas chamadas cláusulas puramente potestativas.

Há cláusula puramente potestativa quando os efeitos de um contrato ficam ao puro e livre arbítrio de uma das partes. Quanto ao tema, vale trazer à tona, os ensinamentos do professor Carlos Roberto Gonçalves[1], a saber: “Potestativas são as que decorrem da vontade de uma das partes, dividindo-se em puramente potestativas e simplesmente potestativas. Somente as primeiras são consideradas ilícitas pelo artigo 122 do Código Civil, que as inclui entre as condições defesas por sujeitarem todo o efeito do ato ‘a puro arbítrio de uma das partes’, sem a influência de qualquer fator externo.”

Por sua vez, Roberto Senise Lisboa[2], sobre as cláusulas puramente potestativas apresenta o seguinte entendimento: “Condição potestativa é a imposta pelo arbítrio das partes. A condição puramente potestativa decorre da inexistência de interferência de qualquer fator externo e, por isso, não é considerada lícita. Caio Mário entende que a condição puramente potestativa põe ao arbítrio de uma das partes o próprio negócio. Anula o ato. Equipara-se a ela a indeterminação potestativa da prestação, que é nula. Veda-se a condição puramente potestativa, por depender do exclusivo arbítrio das partes, e a condição perplexa, ou seja, aquela, que priva o ato de todo efeito.”

Quanto às cláusulas dessa natureza, o Superior Tribunal de Justiça proferiu a seguinte orientação[3]: “O conteúdo puramente potestativo do contrato impôs a uma das partes condição, apenas e tão-somente, de mero espectador, em permanente expectativa, enquanto dava ao outro parceiro irrestritos poderes para decidir como bem lhe aprouvesse. Disposições como essa agridem o bom senso e, por isso, não encontram guarida em nosso direito positivo. Entre elas está a chamada cláusula potestativa. É estipulação sem valor, porque submete a realização do ato ao inteiro arbítrio de uma das partes.”

A condição ou cláusula puramente potestativa, como dito acima, é considerada ilícita, conforme artigo 122 do Código Civil de 2002, bem como é inválido o negócio jurídico a que lhe é subordinado, conforme preceitua o artigo 123, inciso II do mesmo Diploma Legal.

Vale registrar, aqui, que o Código de 1916 já vedava a prática da cláusula puramente potestativa, conforme se extrai do seu artigo 115.

E a este respeito, prestando relevante esclarecimento acerca da configuração da ilicitude da cláusula puramente potestativa sob a égide do antigo Código Civil, nos ensina o professor Silvio Rodrigues[4]: “Nem todas as cláusulas potestativas são ilícitas. Só o são as puramente potestativas, isto é, aquelas em que a eficácia do negócio fica ao inteiro arbítrio de uma das partes sem a interferência de qualquer fator externo; é a cláusula ‘si voluero’, ou seja, se me aprouver”.

Por seu turno, confira-se a lição do professor Caio Mário da Silva Pereira[5]: “A lei destaca (Código Civil, art. 115, segundo membro; anteprojeto de código de obrigações, art. 27), de entre as condições que invalidam o ato aquela que o sujeita ao arbítrio exclusivo de uma das partes. É a chamada condição potestativa pura, que põe todo o efeito da declaração de vontade na dependência do exclusivo arbítrio daquele a quem o ato interessa: ‘o si volam’, ou ‘si volueris’, dos exemplos clássicos (“dar-te-ei 100 se eu quiser”) ou (“dar-me-ás 100 se quiseres”), é uma cláusula que nega o próprio ato. Não há, com efeito, emissão válida de vontade, e a rigor não há mesmo emissão nenhuma, dês que fique o ato na dependência de lhe atribuir ou não o interessado qualquer eficácia.

Tem o mesmo sentido e o mesmo efeito frustratório, podendo ser capitulada como condição potestativa pura, a indeterminação protestativa da prestação, por ver que, neste caso a potestatividade do ato se desloca da sua realização para a estimada da ‘res debita’, equivalendo nos seus efeitos ao ‘si volam’. Ao inquinar a lei de nulidade o contrato de compra e venda, quando se deixa ao arbítrio exclusivo de uma das partes a taxação de preço (Código Civil, artigo 1.125; anteprojeto de código de Obrigações, art. 373), está coibindo uma declaração de vontade, que é espécie de gênero ‘condição potestativa pura’, pois dizer o agente que paga ‘quantum volam’ é apneas a especificidade do ‘si volam’. Na verdade, ‘pagarei quanto quiser’, é o mesmo que ‘pagarei se quiser’, pois o arbítrio do devedor poderá restringir a soma devida a proporções tão irrisórias que a solução da obrigação ficaria no limite do quase nada (“sestertio nummo uno’).”

O professor Silvio Luís Ferreira da Rocha, in Curso Avançado de Direito Civil, Volume 3, Editora Revista dos Tribunais, 2002, São Paulo, pág. 134, deixa claro que: “O que não pode ocorrer é a estipulação do preço ficar a critério exclusivo de uma das partes (art. 1.125 do CC; art. 489 do Novo Código Civil). Tal cláusula implicará na invalidação do contrato por configurar cláusula potestativa apta a causar prejuízo a outra.”

O mestre Orlando Gomes, em sua consagrada obra Contratos, 12ª edição, Editora Forense, 1990, página 254, Rio de Janeiro, discorrendo sobre o preço no contrato de compra e venda, destaca: “Em nenhuma circunstância pode ficar ao arbítrio de um dos contratantes. Violada esta proibição, o contrato será nulo…”

Registre-se que o artigo 489 do Novo Código Civil, que veio em substituição ao artigo 1.125 do Código Civil de 1916, com redação bastante semelhante ao atual, deixa claro em seu texto que: “Nulo é o contrato de compra e venda, quando se deixa ao arbítrio exclusivo de uma das partes a fixação do preço.”

Esse dispositivo tem por fim, como reconhece a doutrina clássica, evitar que a parte, a quem fosse cometido o arbítrio, fixasse exagerada ou irrisoriamente o preço, ao seu benefício em detrimento do outro contratante.

Destaque-se que o Código Civil de 2002 introduz, com precisão, a concepção do abuso do direito ao dispor o artigo 187 que: “Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.”

O professor Arnoldo Wald, in Direito Civil – Introdução e Parte Geral, Editora Saraiva, São Paulo, 2003, 10ª edição, página 193, com precisão, deixa claro que: “São potestativas as condições que dependem da vontade do agente. Distinguem-se, na matéria, as condições puramente potestativas, que ficam ao exclusivo arbítrio de uma das contratantes e privam de todo o efeito o ato jurídico, das demais condições potestativas, em que se exige da parte um certo esforço, ou determinado trabalho. Viciam o ato as primeiras, citando-se como exemplo de condições puramente potestativas as seguintes: se a parte quiser, se pedir, se desejar, etc.”

Na já mencionada obra Comentários ao Código Civil, Editora dos Tribunais, São Paulo, 2006, sob a coordenação de Carlos Eduardo Nicoletti Camillo e outros, quando cuida das várias espécies de contrato, em especial da compra e venda, em comentários de Cássio Galiza e Luiz Antonio Scavone Jr., página 497, precisa que: “A condição puramente potestativa (art. 122), deixando o preço ao arbítrio de uma das partes no contrato de compra e venda, anula o contrato. Nesse caso, a lei menciona que o contrato é nulo, de tal sorte que incide a parêmia segundo a qual aquilo que é nulo não produz nenhum efeito. Conseguintemente, não prescreve a ação ou decai o direito de pedir o reconhecimento judicial dessa nulidade, vez que apenas se exige uma ação declaratória para tanto.”

Referida cláusula puramente potestativa, fere, de forma efetiva, os princípios da boa-fé objetiva e do equilíbrio contratual. Assim, há necessidade de uma busca do equilíbrio dos contratos, não podendo ser toleradas cláusulas de natureza puramente potestativas.

Conclui-se que, trata-se de prática que deve ser considerada como nula, pois tal cláusula nada mais visa do que atribuir vantagens ao fornecedor de produtos ou serviços em detrimento ao consumidor, ferindo, além dos ditames legais e princípios que regem a relação de consumo, a necessária proporção na relação jurídica existente (artigo 51, inciso IV, do CDC).


[1] Direito Civil – Parte Geral – Vol. 1 – Editora Saraiva – 2005 – pág. 120.21

[2] Manual de Direito Civil – Contratos e Declarações Unilaterais: Teoria Geral e Espécies”, vol. I, 3ª edição, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 2004, pág. 498/499

[3] STJ – 3ª Turma, REsp 291.631-SP, Rel. Min. Castro Filho, v.u. j. 4.10.2001, DJU 15.4.2002

[4] Direito Civil, Volume 1, 10ª edição, 1980, pág. 243

[5] Instituições de Direito Civil – Volume 1 – 10ª edição – Introdução ao Direito Civil/Teoria Geral de Direito Civil – Editora Forense – 1987 – págs. 397/398

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