Lei 12.850/13

Prévia autorização está em desacordo com Estado Democrático

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14 de maio de 2014, 9h00

Com o aumento crescente de grupos organizados para o cometimento de crimes, o legislador promulgou a Lei 12.850/2013 que buscou não só definir a conduta típica do crime organizado, possibilitando a investigação por órgãos não policiais e, ainda, disciplinou o procedimento criminal em si bem como causas de aumento de pena e efeito extrapenal automático da condenação, a perda de cargo, função ou mandato eletivo.

Apesar do avanço em relação ao tipo penal em si, que aperfeiçoou os tipos penais anteriores que não traziam a definição típica de crime organizado, apresenta flagrante inconstitucionalidade e enfrentamento da jurisprudência dominante no texto do artigo 23 da supracitada lei.

Até a promulgação da referida lei, aplicava-se aos casos do crime organizado o tipo penal do artigo 288 do Estatuto Repressivo, que exigia a associação de mais de três pessoas, em quadrilha ou bando, para o cometimento de crimes. No entanto, tal definição ainda era insuficiente.

Na dicção de Luis Flávio Gomes[1], o crime organizado não se baseia somente na associação de três ou mais pessoas, possuindo outras características que merecem ser analisadas:

“O crime organizado possui uma textura diversa: tem caráter transnacional na medida em que não respeita as fronteiras de cada país e apresenta características assemelhadas em várias nações; detém um imenso poder com base numa estratégia global e numa estrutura organizativa que lhe permite aproveitar as fraquezas estruturais do sistema penal; provoca danosidade social de alto vulto; tem grande força de expansão, compreendo uma gama de condutas infracionais sem vítimas ou com vítimas difusas; dispõe de meios instrumentais de moderna tecnologia; apresenta um intricado esquema de conexões com outros grupos delinquenciais e uma rede subterrânea de conexões com os quadros oficiais da vida social, econômica e política da comunidade; origina atos de extrema violência; exibe um poder de corrupção de difícil visibilidade; urde mil disfarces e simulações e, em resumo, é capaz de inerciar ou fragilizar os Poderes do próprio Estado.”

Exatamente com base no potencial lesivo da conduta de tais organizações, diversos países como a Itália, Espanha e Estados Unidos já modificaram suas legislações para adequá-las e tipifica-las possibilitando, desta forma, a adequada aplicação da lei ao caso concreto.

Apesar da desvinculação ao artigo 288 do Código Penal, a classificação de organização criminosa restou silente pelo legislador, tendo a doutrina e jurisprudência buscado suprir a referida omissão, inclusive em tratados internacionais incorporados ao ordenamento pátrio.

Já com a promulgação da Lei 12.850, a conduta restou precisamente definida, estabelecendo os procedimentos investigativos, ponto esse que merece cuidadosa atenção ante o seu conflito ao entendimento jurisprudencial e legislação especial vigente.

Uma das grandes dificuldades do advogado na seara criminal é o acesso aos autos ainda em fase de inquérito, uma vez que necessita do franqueamento por parte da autoridade policial o que se dá, nem sempre, de maneira imediata.

Uma das inovações legislativas foi a de assegurar ao investigado o prazo mínimo de três dias antes de seu depoimento perante a autoridade policial para ter acesso ao conjunto probatório já produzido.

Tal medida, em verdade, é mais uma forma de se concretizar a ampla defesa do investigado, ainda que em sede policial.

Apesar do avanço em relação aos procedimentos em sede inquisitorial, houve verdadeira digressão do legislador ao redigir o artigo 23 do aludido diploma, uma vez que condiciona a autorização prévia do Magistrado de acesso aos autos pelo defensor do investigado.

A condicionante de prévia autorização pelo magistrado indica clara e evidente afronta ao que dispõe o art. 5º, LXIII da Constituição, consoante diversas decisões já proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, dentre as quais selecionamos a seguinte: Penal, processual penal, Habeas Corpus, embargos de declaração, acesso dos acusados a procedimento investigativo sigiloso, possibilidade sob pena de ofensa aos princípios do contraditório e da ampla defesa, prerrogativa que se restringe aos elementos já documentados referentes aos investigados.

I – O direito assegurado ao indiciado (bem como ao seu defensor) de acesso aos elementos constantes em procedimento investigatório que lhe digam respeito e que já se encontrem documentados nos autos, não abrange, por óbvio, as informações concernentes à decretação e à realização das diligências investigatórias, mormente as que digam respeito a terceiros eventualmente envolvidos.

II – Enunciado da Súmula Vinculante 14 desta Corte.

III – Embargos de declaração rejeitados, com concessão da ordem de ofício.”[2]

Cumpre frisar que o advogado possui a prerrogativa funcional de examinar autos de inquérito ou judiciais, mesmo sem procuração, conforme preconiza os incisos XIII e XIV do artigo 7º da Lei 8.906/1994 (Estatuto da Advocacia),  direito esse que não comporta qualquer tipo de restrição ou condicionamento, desde que disponíveis e não sujeitos à sigilo.

A prerrogativa do advogado não constitui privilégio mas sim a liberdade e independência que o este operador do Direito deve ter para exercer a sua função, na exata dicção do artigo 133 da Constituição.

Logo, se a Carta Magna assegura aos cidadãos o direito indisponível à defesa técnica, plena e sem qualquer tipo de limitação, a restrição imposta por lei ordinária fere não só o Estado Democrático de Direito, mas a própria obediência que o ordenamento jurídico deve ter.

Nessa linha de raciocínio, o ministro Gilmar Mendes[3] assim dispõe a respeito da hierarquia das normas constitucionais:

“Repare-se, a título de ilustração, que a Constituição atribui ao Congresso Nacional competência para legislar sobre processo penal. As normas que regulam o processo necessário para a imposição de uma sanção penal não estão todas contidas na Constituição, à espera apenas de que o legislador as descubra e as revele à população. O legislador é livre para dispor sobre vários aspectos relacionados com esse ramo do Direito. Pode criar procedimentos diferenciados, conforme a importância social que atribua a categorias diferentes de crimes, pode cogitar de prazos variados para a prática de atos processuais, bem como pode dispor, com liberdade de apreciação, sobre momento da produção de provas. Ao legislador é reconhecido, da mesma forma, revogar as normas que estavam vigentes e introduzir outras diferentes no ordenamento processual — o que seria impossível se não tivesse espaço de liberdade para dispor sobre o tema.”

E, assim continua a respeito do tema:

“Essa liberdade de conformação, entretanto, não é plena, já que se acha submetida a limitações impostas por normas constitucionais. Assim, se o legislador pode dispor sobre provas no processo, não poderá admitir prova derivada de tortura, por exemplo, já que a Constituição proíbe essa prática e bane de todo o processo as provas ilícitas. Essa é uma determinante negativa a que o legislador está sujeito por força de normas constitucionais. Contudo, o sistema processual a ser concebido pelo legislador terá que conter procedimentos que assegurem largas formas de o acusado desacreditar a acusação que pesa sobre ele; essa determinante positiva resulta da norma constitucional que garante a ampla defesa no processo penal.”

A condição imposta ao legislador (“prévia autorização do Juiz”) encontra-se em verdadeira dissonância ao Estado Democrático de Direito vigente no país, violando cláusulas pétreas e leis em plena vigência, uma vez que importa em grave violação às prerrogativas do advogado no exercício de sua profissão.

Clique aqui para ler a Lei 12.850.


[1] GOMES, Luís Flávio; CERVINI, Raúl. Crime organizado. 2. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997.

[2] HC 94.387, rel. min. Ricardo Lewandowski, 1ª T, DJE de 6-2-2009

[3] MENDES, Gilmar Ferreira e Paulo Gustavo Gonet Branco. Curso de Direito Constitucional, 7 ed., rev. e atualiz., São Paulo: Saraiva, 2012, fls. 251.

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