Jurisprudência pacífica

STJ não exige 1/6 da pena para trabalho no semiaberto

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14 de maio de 2014, 16h50

Admite-se a concessão do trabalho externo ao condenado em regime semiaberto, independentemente do cumprimento de, no mínimo, 1/6 da pena, desde que verificadas condições pessoais favoráveis pelo Juízo das Execuções Penais.Precedentes[1] .

Como dizem Zaffaroni e Pierangeli, “a constatação de que a solução punitiva sempre importa num grau considerável de violência, ou seja, de irracionalidade, além da limitação de seu uso, impõe-se, na hipótese em que se deva lançar mão dela, a redução, ao mínimo, de sua irracionalidade”[2] . O Direito Penal, por sua resposta violenta, deve incidir sobre o menor número possível de situações e, quando imprescindível, reduzir ao máximo os efeitos nefastos da sua aplicação, para que não se corra o risco de que o mal da pena chegue ao cúmulo de superar o mal causado pelo delito.

Claus Roxin citado por Luiz Flavio Gomes e Antonio Garcia Pablos de Molina[3], em observações que podem ser transpostas à realidade brasileira, assevera que a pena teria fins distintos a depender do momento ou fase que se analisa :

1. Na fase da cominação abstrata, a finalidade seria preventiva geral, seja na forma de intimidação, seja na reprovação diversa da conduta conforme a relevância do bem jurídico protegido;

2. Na aplicação judicial a pena tem função (i) preventiva geral, consubstanciada na confirmação da ameaça e da proteção ao bem jurídico; (ii) repressiva, porquanto retribui o mal com outro mal, limitado pela culpabilidade do agente, e, por fim, (iii) preventiva especial, com a atenuação do rigor repressivo através de institutos ressocializadores como as penas substitutivas ou o sursis.

3. Na terceira etapa, a execução da pena, deve preponderar a função da prevenção geral positiva, ou seja, proporcionar, pelo cumprimento da pena, a possibilidade de ressocialização do condenado.

O que nos interessa é, portanto, o item de número 3, a execução da pena. Segundo a Lei de execução Penal, em seu artigo primeiro, “A execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado[4].

Se a principal função da execução da reprimenda imposta pelo Estado é preparar o indivíduo para o convívio social, parece absolutamente claro que privar-lhe do convívio social é um absoluto contrassenso. Até para aqueles que foram sentenciados em regime inicial fechado, a ordem jurídica garantiu, através do instituto da progressão de regime, a reinserção gradual no corpo social.

Com a imposição de pena, o Estado busca — ou deveria, por princípio, buscar — reforçar os vínculos do indivíduo transgressor com a sociedade da qual faz parte, e não rompê-los de vez. Se assim fosse, a aplicação da pena seria uma convocação à reincidência, nada mais.

Por essa razão, o Superior Tribunal de Justiça, competente para, em regra, decidir em última instancia sobre execução penal, pacificou entendimento de que o cumprimento de 1/6 da pena autorização do trabalho externo — requisito exigido pela Lei de Execução Penal (Lei 7.210, de 11 de julho de 1984)—, não se justifica “ainda mais quando constatadas condições pessoais favoráveis do agente. Incide, na hipótese, a lógica do critério da razoabilidade, que se faz necessário na adaptação das normas de execução à realidade social e à sua própria finalidade, ajustando-as ao fato concreto.” (HC nº 19.156, Rel. Min. Gilson Dipp, DJ 16.06.03)

Até porque, sejamos óbvios, o cumprimento de um sexto da pena autoriza a progressão de regime (artigo 112 da LEP). Exigir o requisito objetivo de cumprimento dessa parcela da pena para que o preso possa trabalhar é dizer que quem inicia a execução no semiaberto, no semiaberto não trabalha! Após cumprir 1/6 da pena, o custodiado com certeza pedirá a progressão para o regime menos gravoso, que inclui a possibilidade de trabalho, inclusive, sem qualquer vigilância (artigo 36, § 1º, CP).

Numa breve pesquisa no site do STJ pelos termos “1/6 e trabalho e semiaberto[5]”, foram encontrados 55 Acórdãos. Deles, 10 versam sobre assunto absolutamente diverso do discutido no presente artigo e 9 sobre a necessidade de computo do período cumprido em regime fechado para que se autorize o trabalho daquele que progrediu para o semiaberto e, portanto, também não idêntico a hipótese aqui analisada.

Dos 36 acórdão restantes, 33 assentam que “se admite a concessão de trabalho externo a condenado em regime semi-aberto, independentemente do cumprimento de 1/6 da pena ou de qualquer outro lapso temporal” (HC 92.320, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, DJe: 07.04.08). As três únicas decisões em sentido contrário foram proferidas em 18 de dezembro de 2000 (HC 14288, Rel. Min Edson Vidigal), 7 de junho de 1999 (RHC 8539, Rel. Min. José Arnaldo da Fonseca) e 30 de março de 1998 (REsp 117176, Rel. Min. Anselmo Santiago).

Desde 2000, não há, no Superior Tribunal de Justiça e nos limites dos termos pesquisados, nenhuma decisão que assevere a necessidade de cumprimento de 1/6 da pena para que o preso em regime inicial semiaberto possa exercer trabalho externo ao estabelecimento prisional.

Daí porque, com exceção do puro arbítrio infundado, não se sustenta, após 14 anos de posicionamento uníssono, decisão que exija do preso o cumprimento do requisito objetivo para que possa trabalhar fora da do presídio, possibilidade que atina a um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, a dignidade da pessoa humana.

Não pode o poder judiciário, mesmo em casos de repercussão nacional, contrariar a jurisprudência, instaurando uma grave crise de insegurança jurídica e, em se tratando de execução de pena, correr o risco de um verdadeiro caos no sistema penitenciário.

Não pode também o poder judiciário utilizar-se do autor de um crime, qualquer que seja — o autor ou o crime — como exemplo para a sociedade, sob pena de transformar o indivíduo em coisa, o que se opõe frontalmente à já conhecida máxima kantiana de que o homem é um fim em si mesmo.

Menos ainda pode o judiciário reduzir o indivíduo à instrumento da satisfação pessoal e propaganda política daqueles que, embora não personifiquem o poder judiciário, parecem pretender fazê-lo.


[1] STJ, HC 251107, Rel. Min. Laurita Vaz, DJe 19.03.2013.

[2] PIERANGELI, José Henrique; ZAFFARONI, Eugênio Raul. Manual de Direito Penal Brasileiro. v.1: Parte Geral. 8 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 35.

[3] ROXIN apud GOMES, Luiz Flavio; e PABLOS DE MOLINA , Antonio Garcia. Direito Penal. Fundamentos e Limites do Direito Penal. 3 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 690.

[4] BRASIL. Lei nº 7.210/84. Institui a Lei de Execução Penal. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7210.htm. Acessado em 14 de maio de 2014.

[5] Ou “semi aberto” em virtude das alterações promovidas pela reforma ortográfica em vigor desde janeiro de 2009.

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