Ensino Jurídico

Escolas da magistratura devem se abrir para a sociedade

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12 de maio de 2014, 11h07

[Palestra proferida pelo ministro do STJ Humberto Martins no dia 9 de maio no congresso da Associação Brasileira de Ensino do Direito (ABEDi)]

As escolas da magistratura têm sido constituídas no Brasil ao longo dos anos com a função de efetivar o aperfeiçoamento continuado de magistrados e, ainda, de auxiliar no processo de incorporação dos novos juízes à carreira, seja auxiliando os ingressantes com cursos de formação durante seu período de vitaliciamento. Esse processo institucional de construção de escolas judiciais e judiciárias ganhou o reconhecimento constitucional com a Emenda 45/2004, denominada de Reforma do Judiciário. Essa Emenda à Constituição Federal incluiu diversas modificações nas competências dos tribunais, bem como previu a instituição de colegiados administrativos para o controle do Poder Judiciário e do Ministério Público, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP).

No contexto de tais mudanças, foi prevista a implementação de uma Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam), com a pretensão de se estruturar na entidade central de um sistema brasileiro de formação e aperfeiçoamento de juízes, nos termos do inciso IV do artigo 93, da Constituição Federal. Assim, a Enfam foi prevista para funcionar junto ao Superior Tribunal de Justiça, nos termos do inciso I do parágrafo único do artigo 105 da Constituição Federal.

É de notar que a previsão constitucional, por meio da emenda da Reforma do Judiciário, decorre de um processo gerencial que teve origem nas várias experiências de criação e expansão de escolas judiciais e judiciárias. Assim, a determinação para criação de uma Escola Nacional é a evidência de um reconhecimento — por parte do poder constituinte derivado — da relevância dessas estruturas administrativas para o bom funcionamento do Poder Judiciário. O processo, contudo, tem origem em associações e fundações, usualmente ligadas às corporações da magistratura e do Ministério Público, sem esquecer das escolas superiores da advocacia, historicamente mais antigas e que se inserem nessa tradição. Daí se denominar que estas — criadas pela vida associativa — seriam “escolas judiciais”, ao passo em que as outras — criadas no cerne da organização administrativa dos tribunais — seriam “escolas judiciárias”. Essa distinção entre “escolas judiciais” e “escolas judiciárias”, que não é muito conhecida fora dos meios especializados, diz muito sobre esse processo, que, na verdade, foi uma etapa de amadurecimento das instituições. De certo modo, é possível traçar um paralelo entre a instituição dessas escolas no âmbito da magistratura e a Emenda Constitucional 19/1998, que previu a necessidade de criação das escolas de governo e de administração pública.

O Superior Tribunal de Justiça não se quedou inerte após a promulgação da Emenda Constitucional 45/2004 e, de forma célere, iniciou os trabalhos técnicos para estruturação da Enfam[1]. Realizou-se uma grande pesquisa para subsidiar a instituição da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados, composta por coletânea de oito volumes, publicada em 2006. Essa coletânea reuniu as histórias de criação das escolas judiciais e judiciárias brasileiras, bem como consolidou vários materiais para permitir uma importante reflexão, útil para basear a construção dessa Escola Nacional[2]. A partir deste importante trabalho, é possível apreender que as escolas da magistratura foram criadas em razão da preocupação dos tribunais com um alegado déficit de formação básica dos candidatos à carreira judicial. No primeiro volume da coletânea, encontra-se menção explícita ao fato de que haveria uma “precariedade nos curso de direito”, bem como “a falta de uma preparação prévia da prática jurídica”. Na mesma narrativa, se indica que um dos motivos para criação de escolas judiciais decorreria da percepção de que havia problemas de preparação ao concurso e à investidura na função judicante pelos candidatos.

Bem se visualiza que o tema das escolas da magistratura — de imediato — reverbera no tema da preparação dos egressos dos cursos de graduação em direito. Assim, a educação jurídica é um tópico recorrente, que se revela quando se põe em causa a condição de candidatos aos concursos públicos para ingresso na carreira da magistratura, ou, ainda, a condição de aprovados e, assim, de juízes novatos, no início da carreira.

Como é comum em tais situações, o diagnóstico geral é partilhado pela maioria dos analistas. Desta forma, é razoável identificar que a visão da magistratura sobre os problemas da educação jurídica não é muito diversa do olhar da Ordem dos Advogados do Brasil e de pesquisadores das universidades. O diagnóstico acima indicado — de déficit de formação prática — é continuado no debate sobre a educação jurídica dos últimos 30 anos.

Um exemplo dessa afirmação pode ser visto na Portaria 1.886/1994 que representou uma importante mudança de perspectiva no que deveria ser o currículo dos cursos de graduação em Direito. Uma das grandes inovações da Portaria 1.886/1994 foi instituir — em seu artigo 10 — a obrigatoriedade de um núcleo de prática jurídica, que deveria oferecer estágio supervisionado interno ao curso de direito, com um mínimo de trezentas horas de atividade reais ou simuladas. O núcleo de prática jurídica foi previsto como uma fonte de treinamento apto a permitir que o estudante pudesse tomar contato com atividades relacionadas à magistratura e ao Ministério Público e não somente com a advocacia, como está no parágrafo 1º do artigo 10 da referida Portaria.

Dez anos se passaram e mudaram as diretrizes curriculares para os cursos de graduação em direito, após um grande debate nacional. É preciso registrar que a Resolução 9/2004 do Conselho Nacional de Educação foi concebida com o apoio evidente da Associação Brasileira de Ensino do Direito (ABEDi), que hoje é, para minha satisfação e honra, a anfitriã deste evento. O texto normativo de 2004 substituiu a mencionada Portaria 1.886/1994 e dentre outros aspectos, manteve a obrigatoriedade de estágio curricular supervisionado a ser realizado no núcleo de prática jurídica. No novo ato regulamentar, detalhou-se, de modo mais didático, o modo como se deveria aferir o aprendizado prático — por meio de relatórios — e foi mantida a necessidade de formação ampla, ou seja, preparação à prática que não somente se resumisse à formação para a advocacia, mas, também, para as outras funções jurídicas.

Uma crítica dirigida à Resolução 9/2004 — em cotejo à Portaria 1.886/1994 — foi a exclusão da menção expressa aos conteúdos didáticos de mediação e conciliação. Cabe lembrar que a Ordem dos Advogados do Brasil sempre manteve a defesa da necessidade de que tais conteúdos fossem lecionados, bem como que o Ministério da Justiça é um importante propagador de tal conteúdo como meio relevante para resolução dos dilemas sociais inerentes ao conhecido e grave congestionamento processual do Poder Judiciário.

É notório que técnicos do Ministério da Educação, membros da Ordem dos Advogados do Brasil e pesquisadores da Associação Brasileira de Ensino do Direito — há quase um ano têm debatido e oferecido sugestões para o aperfeiçoamento do marco regulatório da educação jurídica. É notório que a OAB fomentou dezenas de audiências públicas nos estados para debater o tema.

A questão central ainda presente pode ser apreendida em algumas perguntas. Ainda temos problemas para estimular ou efetivar a formação dos estudantes para a prática jurídica? Como podem as escolas judiciais colaborar com a formação prática dos estudantes de direito?

A formação direcionada à prática ainda é um grande problema.

A dificil questão da adequada formação à prática jurídica
Como mencionado, um dos temas mais complexos da educação jurídica contemporânea é a questão da formação prática dos estudantes de Direito. Esse problema é muito amplo e não somente aparece no debate educacional brasileiro. A propalada crise da educação jurídica nos Estados Unidos também trouxe esse debate para a esfera pública daquele país[3]. Os grandes escritórios de advocacia revelavam-se insatisfeitos em relação aos egressos dos cursos de direito que chegavam aos seus quadros. As grandes firmas consideravam que os novos advogados demandavam grandes salários — em razão da necessidade de fazer frente aos empréstimos vultosos, contraídos para pagar as caras anuidades e taxas dos cursos de direito — sem apresentar formação prática que fosse condizente com tal investimento.

Os escritórios de maior porte — por meio de seus analistas ou articulistas, que publicaram textos em revistas e na grande mídia, como a renomada New Yorker e outras — reclamavam desses custos e afirmavam que havia uma crise sem proporções na profissão jurídica dos Estados Unidos. Esse argumento foi refletido em livros como aquele publicado por Stephen Harper, no qual o autor alegava que havia uma bolha especulativa sobre a profissão jurídica que precisava se equilibrar[4]. O argumento central do autor está relacionado com os custos dos serviços jurídicos, que teriam sido inflados em decorrência dos elevados valores despendidos nas faculdades de Direito.

Todavia, existem outros autores que divergem desses argumentos e alegam que somente os escritórios mais elitistas (usa-se o termo “fancy”) estariam realmente preocupados com o tema. Eles reconheceriam que os custos das faculdades de direito seriam altos. Mas, que esse não seria o verdadeiro problema da educação jurídica. O dilema mais grave estaria relacionado com os fatores externos ao cotidiano das faculdades, em especial, com os enormes desafios do mundo jurídico contemporâneo. Assim, como colocam alguns dos articulistas da linha contrária, o mundo jurídico — e corporativo — estaria em radical processo de mudanças. Por causa dessas alterações, os cursos de graduação enfrentariam dificuldades inéditas para, efetivamente, preparar seus egressos para a prática jurídica, de feição bem diversa de seus padrões tradicionais. Não seria somente uma questão passível de solução por meio de equilíbrio econômico, ou seja, apenas diminuindo os custos dos cursos de Direito. Seria necessário mudar o conteúdo do que é lecionado.

É evidente que esse debate é radicado nos Estados Unidos e na realidade de seus grandes escritórios de advocacia. Trata-se, portanto, de discussão externa ao objeto deste painel, centrado nas escolas de formação das instituições judiciárias brasileiras. No entanto, este tópico ajuda a formular uma questão que é muito relevante para quaisquer reflexões sobre a difícil formação para a prática: a dinâmica de mudanças atuais e os custos envolvidos na formação jurídica.

O magistrado de hoje não é mais o mesmo juiz de outrora. Houve uma alteração evidente de escala no trabalho do magistrado — é sabido que é necessário julgar mais no Brasil. Ocorreu, ainda, mudança evidente de qualidade — as causas complexas estão em debate, com seu grande impacto econômico e social. Basta pensar nas ações civis públicas de cunho ambiental e nos processos coletivos de consumo. A proteção judicial possui evidente impacto econômico na vida social — o aumento da proteção jurídica ocorre na mesma razão dos custos de produção, pois não há direitos sem que haja custos adjetivos em sua observância prática. Defender o meio-ambiente significa proteger o futuro das gerações vindouras. Mas, no curto prazo também significa aumentar os custos de produção no Brasil. Colocado dessa forma, parece algo simples. Todavia, não é. Não é possível deixar de imputar tais custos à produção — por força do sistema jurídico vigente —, mesmo que estivéssemos em um cenário de recessão econômica. Sobre isso pode-se dizer que se está diante de um cálculo racional complexo.

Assim, a preparação para atuar em causas de grande complexidade é um enorme desafio em marcha no âmbito do Poder Judiciário. Mas, fica uma pergunta no ar: como poderão os egressos dos cursos de direito estar antenados com essas alterações profundas em uma faculdade que possui pouco espaço para inclusão de novos conteúdos, uma vez que já é dominado por temas tradicionais e de base que, no mais das vezes, precisam ser lecionados mesmo?

Não é possível que sacrifiquemos a formação clássica — sempre penso na importância do sistema de Direito Romano como base da obra jurídica ocidental — em prol das inovações e das contingências. Afinal, esses elementos clássicos estão na raiz da civilização e servem, nos momentos de barbárie e de crise política ou moral, como verdadeiros antídotos contra a tirania. Cito apenas um exemplo que comprova essa assertiva, o qual foi extraído do maior repositório de baixezas a que a humanidade já constituiu no século XX, que foi o nazismo: dentre os juristas que mais se opuseram ao regime de Adolf Hitler encontravam-se os professores de Direito Romano. E, não foi sem causa que, no programa oficial do Partido Nazista, um dos pontos centrais era a abolição do ensino de Direito Romano em todas as cátedras universitárias alemãs.

Como equilibrar, portanto, essas duas necessidades? Uma solução havia sido dada, no cerne da Resolução 9/2004, do Conselho Nacional de Educação, por meio das atividades complementares. O objetivo seria que elas servissem para agregar conteúdos atualizados que não poderiam ser obtidos meramente por disciplinas de cunho tradicional. Ainda que não haja estudos empíricos credíveis sobre o uso das atividades complementares nos cursos de graduação em Direito, os professores — de modo geral — consideram que ela se tornou um requisito meramente formal. Assim, os alunos buscam quaisquer atividades para computar as horas em prol da integralização curricular sem que haja um real planejamento em obter conhecimentos efetivamente inovadores.

Em suma, este é o grande problema. A questão da formação prática. Pergunto: seria possível que as escolas judiciais contribuíssem para a formação mais efetiva relacionada à preparação dos futuros graduados em direito na tarefa de julgar?

A possível e necessária contribuição das escolas da magistratura à formação dos estudantes
É importante retomar ao ponto central deste painel.

Para tanto, deve ser mencionada uma iniciativa muito relevante, recentemente realizada Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados. Essa iniciativa foi a organização de um evento e de uma rede que envolvesse a construção de disciplinas optativas na matriz curricular de diversas faculdades de Direito do país, com o objetivo de despertar vocações para a magistratura. Para estimular essa difusão, em outubro de 2013 foi ministrado um curso denominado “magistratura: vocação e desafios”. O curso foi direcionado aos docentes das instituições educacionais parceiras, que acolheram a proposta da Enfam de construir disciplinas optativas em suas grades de ensino. No curso, lecionaram diversas personalidades do mundo jurídico brasileiro, como os ministros Ayres Brito e Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal.

O tema do curso acima indicado é bastante relevante. Afinal, é importante esclarecer aos estudantes de direito qual a dimensão do trabalho do juiz, pois a figura do magistrado é envolvida em uma mística que — não raro — é muito distante da realidade. Logo, para despertar vocações à magistratura, é importante esclarecer aos estudantes quais são as funções e como é o trabalho efetivamente realizado pelos magistrados, em especial pelos juízes de primeira instância. Debater o funcionamento da jurisdição com os estudantes de Direito também é uma oportunidade muito boa para que as instituições possam contribuir com as escolas judiciais, bem como possam auxiliar no aperfeiçoamento do Poder Judiciário brasileiro em sentido bastante amplo.

É muito importante notar que a contribuição das escolas judiciais é bem mais ampla do que o seu apoio ao futuro magistrado ou ao atual juiz. As escolas são espaços privilegiados, também, para o acoplamento de atividades de pesquisa — entendidas como parte do processo educacionais — que são necessárias à definição e à reflexão sobre as linhas de atuação dos tribunais. Como menciona Suzy Cavalcante Koury, as escolas judiciais possuem também a importante função de estimular o planejamento estratégico da administração pública, de forma semelhante à que é desempenhada pelas escolas de governo[5]. Pensar a reposição de pessoal qualificado para manutenção e, ainda, para a melhora dos serviços prestados é, certamente, uma função relacionada com o planejamento estratégico e com as atividades educacionais.

Penso que as corporações judiciárias e as escolas — judiciais ou judiciárias — poderiam fazer mais em prol da educação jurídica, seja por meio do desenvolvimento de atividades didática em parceria com os cursos de Direito, seja por meio de fomento à pesquisa, em parceria com os núcleos acadêmicos bem estabelecidos. Vejo que o caminho dos convênios deveria ser trilhado com mais ênfase para estimular que docentes dos cursos de Direito — e até de outras áreas, como gestão, por exemplo — ofertassem disciplinas e conteúdos que visassem ao aperfeiçoamento do sistema judiciário brasileiro e, também, por certo, dos cursos de Direito.

É meu sentir que se mostra imperativa a abertura cada vez maior das escolas da magistratura para a sociedade, para as instituições, como a ABEDi, que discutem o ensino jurídico brasileiro, e para o meio universitário como um todo. Foi com este espírito que aqui compareci. Mais para aprender do que para ensinar. Mais para compreender do que para oferecer explicações herméticas.

Muito obrigado.


[1] Um bom histórico da empreitada dos Ministros envolvidos nos primeiros passos da ENFAM – Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados – pode ser conferido em: CALMON, Eliana. Escolas da magistratura. Revista da Escola Nacional da Magistratura, v. 1, n. 2, p. 18-25, out. 2006.

[2] Superior Tribunal de Justiça. Subsídios à implantação da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (ENFAM) no Superior Tribunal de Justiça. Brasília: STJ, 2006, 8 v.

[3] Dois livros recentes são muito interessantes sobre o assunto: TAMANAHA, Brian. Failing law schools. Chicago, IL: The University of Chicago Press, 2012; WEST, Robin. Teaching law: justice, politics, and the demands of professionalism. Cambridge: Cambridge University Press, 2013.

[4] HARPER, Stephen. The lawyer bubble: a profession in crisis. New York: Basic Books, 2013.

[5] KOURY, Suzy Cavalcante. Planejamento estratégico do poder judiciário: o papel das escolas judiciais. Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região, v. 35, n. 64, p. 343-356, jan./jun. 2010.

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