Direito Penal

Sem meios eficazes, Lei Carolina Dieckmann até atrapalha

Autor

  • Pedro Beretta

    é advogado criminalista sócio do escritório Alonso Leite Groch Advogados + Heloisa Estellita. Especialista em Direito Penal Econômico e Europeu pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra foi professor assistente de Direito Penal (Execução Penal) na PUC-SP professor convidado do IPEC/SP (Law & Business School) – Curso de Extensão em Direito Digital e professor convidado do Instituto Impacta de Tecnologia-SP.

10 de maio de 2014, 10h15

Durante investigação criminal de um crime informático e/ou eletrônico, é comum que a autoridade policial, ao solicitar informações cadastrais a provedores de conteúdo e/ou conexão sobre determinado endereço IP (internet protocol), venha a sofrer com a longa demora e, em muitos casos, com a não preservação dos registros de conexão. Em muitas hipóteses, inclusive, a prestação de tais informações é falha, incompleta, sem mencionar a burocracia estatal vigente.

Nesses casos, as implicações trazidas para uma investigação policial, apesar de não obrigatória, mas que constitui valioso instrumento de elucidação criminal, vão desde ao não indiciamento de suspeitos até eventual pedido de arquivamento do inquérito policial pelo Ministério Público.

Pois bem. Apesar de ser tratada como um marco na investigação de crimes informáticos no Brasil, a Lei 12.737/12, também conhecida como Lei Carolina Dieckmann, não dispõe, dentre outras falhas, de meios processuais que garantam a sua eficácia. Por óbvio, restou ao Marco Civil da Internet a responsabilidade de garantir, ao menos em tese, o real objetivo proposto na lei penal, qual seja o combate e repressão a esse tipo de delito.

Agora formalmente tratado como lei, o Marco Civil, que estabelece direitos, deveres e garantias para provedores, usuários e empresas atuantes no segmento, finalmente foi aprovado em ambas as casas do Congresso Nacional, após ser tratado em regime de urgência constitucional[1], uma vez que impulsionado pelos escândalos de espionagem envolvendo o governo norte americano.

Vê-se, porém, que a urgência será novamente utilizada como instrumento de resposta à sociedade. O filme se repete. E, desta vez, com o Marco Civil da Internet.

Dentre os pontos mais controvertidos da lei que entrará em vigor em menos de 60 dias, a guarda de logs (registro de dados sobre data, horário e duração de acesso à internet) pelos provedores de conexão e conteúdo — artigos 11, 13 e 15 do PL 2126/11 — é, ou ao menos era, tratada como matéria importantíssima para a eficácia da norma penal contida no artigo 154-A do Código Penal Brasileiro, que criminalizou a invasão de dispositivo informático alheio, dentre outras providências. Tal obrigatoriedade é fundamental, ao menos em tese, para se obter a identificação do agente suspeito da prática criminosa (autoria delitiva), a fim de que o mesmo seja formalmente investigado e/ou processado criminalmente.

No entanto, com a sua redação equivocada e um visível desconhecimento legislativo, não só da matéria penal, como também da praxe forense em investigação de crimes dessa natureza, até o momento, a Lei Dieckmann mais atrapalhou que ajudou. Senão vejamos.

Digna de legislação “de última hora”, a Lei Dieckmann somente contemplou, ainda que de forma equivocada, apenas as figuras típicas, não disciplinando, como dito anteriormente, os meios processuais que garantam a eficácia da norma penal incriminadora. Ou seja, em que pese constar no Marco Civil da Internet a obrigatoriedade da guarda dos registros de conexão (data, horário e duração da conexão de acesso à internet) pelos provedores de conexão e conteúdo, o tempo ali exposto é, senão desproporcional, pelo menos pouco razoável, fazendo com que a eficácia do referido tipo penal reste prejudicada, uma vez a dificuldade em demonstrar a presença de indícios mínimos de autoria e materialidade delitiva.

Ora, o principal objetivo dessa lei era justamente o preenchimento de uma lacuna existente no ordenamento jurídico pátrio, vez que em determinados momentos algumas condutas não eram tratadas como criminosas, em obediência ao princípio da legalidade penal (artigo 5º, XXXIX, da Constituição Federal de 1988: “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”).

Sua existência, tardia ou não, demonstrou, ainda que de forma equivocada, a preocupação do Estado em tutelar diversas mudanças trazidas pela tecnologia, sendo de grande importância o reconhecimento de medidas que visam proteger não só aspectos de liberdade individual do cidadão, mas também eventuais prejuízos de ordem material originários de uma “nova prática ilícita”, se assim podemos chamar.

No entanto, se considerarmos que a referida lei, criada especificamente para a punição de condutas consideradas criminosas e cometidas por meios eletrônicos e informáticos, prevê apenas tímida repressão estatal, com a concessão de benefícios atinentes aos crimes de menor potencial ofensivo (caput – Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa ), certo é que sua capacidade intimidatória não foi atingida.

Isso porque, se entendermos que a criação da Lei 12.737/12 foi benéfica ao ordenamento jurídico brasileiro, deixamos de tecer o mesmo elogio a sua finalidade essencial — o tempo de pena previsto —, pois não amedrontou em nada seus reais infratores.

Por outro lado, podemos entender que a mera invasão de dispositivo informático sequer merecia ser penalmente reprovada, sem prejuízo de outros crimes que eventualmente poderiam ocorrer e que já possuem reprimenda penal como a extorsão, a ameaça, violação de direito autoral, quebra de sigilo bancário e fiscal, furto qualificado etc.

Ora, mas e as vítimas? É certo invadir o computador de terceiros e surrupiar suas fotos nuas? Eles não merecem ser processados, punidos e presos?

Claro que é errado, ao menos em parte. No entanto, se a intervenção penal, em regra, somente se justifica quando houver perigo concreto ao bem jurídico tutelado em última ratio e não por mera desobediência da lei, ausente a existência de qualquer lesão ou risco à efetiva ocorrência de dano tutelado pela norma penal incriminadora, por mais que seja imoral ou inadequado, não há que se falar em crime.

Apenas para melhor compreensão das opiniões aqui expostas, em breve síntese, analisemos o tipo penal.

Em primeiro lugar, nos parece que o tipo penal em questão data venia já começou mal, pois é tratado como um crime meramente formal, vez que para sua consumação exige-se apenas a invasão a um dispositivo informático alheio. A simples invasão, no entanto, (invadir por invadir) não configura o crime, vez que se exige a finalidade específica de obter, adulterar ou destruir dados e informações, de acordo com a estrita legalidade em matéria penal. Em segundo lugar, o tipo penal do artigo 154-A não fornece a definição exata de “mecanismo de segurança”, questão fulcral para cometimento ou não do crime, assim, se o dispositivo invadido não possuir qualquer tipo de proteção (senha, antivírus, firewall etc.), a conduta será atípica, uma vez inexistente a modalidade culposa[2]. Por último, estabelece que este mecanismo deva ser indevidamente violado, invadido, devassado. Apenas para exercício de raciocínio, imaginemos a seguinte situação:

A e B são amigos e cada um está com o seu computador (conectado ou não à rede de computadores). A solicita a B seu notebook emprestado, pois o dispositivo informático de A está acabando a bateria. B autoriza o acesso de seu amigo. A, no entanto, sabia que seu amigo, B, estava tendo relações com sua namorada. Assim, com o fim de obter, adulterar ou destruir dados ou informações, ao utilizar o computador de B, A verifica que existem diversas fotos de B com sua namorada em momentos íntimos. Este, por sua vez, ingressa no sistema de fotos do computador de B e obtém, altera-as e apaga todas as fotos para posterior publicação na Internet.

Afinal, pergunta-se: “A” praticou o crime descrito no artigo 154-A do Código Penal? Não, pois, além de não utilizar-se de nenhum mecanismo de violação para o acesso ao dispositivo, a autorização existiu tacitamente, e como sabemos, o dolo é a vontade livre e consciente de realizar todos os elementos descritos no tipo penal, composto por dois momentos: intelectual e volitivo[3].

Vejam: mais uma vez o legislador apenas se preocupou em criminalizar um fato isolado, possibilitando à(s) Carolina(s) o seu direito de punir, direito este pertencente ao Estado e suas leis.

E por que digo isso? Há que se ter muito cuidado na criação de leis, principalmente em matéria penal, quais devem ser realizadas com a máxima pluralidade, conhecimento e democracia.

Pretendeu o legislador transformar um fato isolado em tipo penal, sem a mínima cautela. Qual o resultado pretendido? Prisão? Cumprimento de pena em regime inicialmente fechado? Não, a pena é ínfima. Mas era exatamente isto que o legislador almejou que a sociedade esperasse: os culpados seriam presos e jamais praticariam esta conduta gravíssima novamente!

Espero que os leitores compreendam minha preocupação. É claro que não podemos tutelar condutas atuais com leis ultrapassadas, pois novos bens jurídicos podem surgir a qualquer momento, principalmente com o advento da Internet. No entanto, é necessário o máximo de cuidado ao dizer que se criando novos tipos penais ou aumentando-se as penas já existentes, a criminalidade será reduzida.

Desculpe-me a franqueza, mas o Direito Penal somente deve atuar de forma limitada, seja por sua indispensabilidade ou pela existência de fatos que corroboram sua aplicação e, neste caso específico, ainda não o faz, haja vista a ineficiência e o desinteresse do Estado em combater de forma efetiva este tipo de matéria.

A bem da verdade, em nosso entender, vivemos um momento de imediatismo punitivo criminal assombroso, sendo mais fácil para o Estado punir e criminalizar determinadas condutas, quase sempre em resposta ao clamor social, vide o novo e controvertido projeto de Código Penal. Infelizmente, hoje, o Direito Penal é utilizado como a primeira forma de resolução de conflitos na sociedade brasileira, e o Código Penal é a sua bíblia.


[1] Art. 64. A discussão e votação dos projetos de lei de iniciativa do Presidente da República, do Supremo Tribunal Federal e dos Tribunais Superiores terão início na Câmara dos Deputados.
§ 1º – O Presidente da República poderá solicitar urgência para apreciação de projetos de sua iniciativa.

[2] Código Penal, artigo 18. “Diz-se crime: I – doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo; II – culposo, quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia. Parágrafo único. Salvo os casos expressos em lei, ninguém pode ser punido por fato previsto como crime, senão quando o pratica dolosamente.” Assim, via de regra, somente será permitida a culpa se houver expressa disposição legal, sendo o dolo elemento subjetivo genérico do tipo.

[3] WELZEL, Hans. Derecho penal alemán: parte general. Santiago: Editorial Juridica de Chile, 1997, p. 40-41

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    é advogado criminalista, sócio do escritório Alonso Leite Groch Advogados + Heloisa Estellita. Especialista em Direito Penal Econômico e Europeu pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, foi professor assistente de Direito Penal (Execução Penal) na PUC-SP, professor convidado do IPEC/SP (Law & Business School) – Curso de Extensão em Direito Digital e professor convidado do Instituto Impacta de Tecnologia-SP.

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