Senso Incomum

Direito mastigado e literatura facilitada: agora vai!

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8 de maio de 2014, 8h00

Spacca
Caricatura Lenio Streck [Spacca]Campeonato de várzea
Fiquei sabendo que no “campeonato mundial do raciocínio”, o Brasil ficou fora das oitavas de final, perdendo, ao que parece, para importantes nações como Honduras e Burkina Faso. Consta que ficamos no 38º lugar entre 44 países. Antes já sabíamos que parcela considerável dos universitários é analfabeta funcional. Penso que isso é assim porque vivemos tempos de estandardização. Tudo é prêt-à-porter (e prêt à penser e prêt-à-parler). O simbólico disso é o twitter. Hoje as pessoas não leem. Tuitam. Limitaram tudo a 140 caracteres. Tudo deve ser resumido. A TV “explica” o mundo colando o “relé”, ou seja, para explicar a enchente, o repórter fica com água pelo pescoço. Resultado: o que ficou resumido foi o cérebro da malta. Assim, forjou-se um novo “paradigma” (ironia minha): a nesciontologia, onde impera a “nesciedade”, que quer dizer estultice, mediocridade, etc (Cervantes fustigava os néscios). Nesse “paradigma neciontológico”, estuda-se o “ser do néscio”. E os fundamentos da nescio-cracia, cujo regime político deverá substituir a nossa frágil demo-cracia.

Pois se alguém achava que estávamos mal, acabaram-se os problemas: no ar, um novo produto — a facilitação na literatura. “Simplificações Tabajara”, a nova onda. Peguemos Shakespeare e o simplifiquemos. E vamos “orelhar” Machado de Assis. E assim por diante. A vida imita a arte. Ou a arte imita o direito? Os juristas chegaram antes. Mas foram alcançados pela gente da literatura. Bem feito. Só espero que isso não chegue na física e na química. Se chegar na medicina vou estocar comida … Na psicologia já chegou, porque já vi Gestalt em resumos.

Para quem ainda não sabe: Os jornais noticiam (ler aqui) que a escritora Patricia Secco encontrou um novo nicho para vender seu peixe, a exemplo do que ocorre nos cursinhos na área jurídica (e nas faculdades). Vejam a genialidade da moça: "Entendo por que os jovens não gostam de Machado de Assis". E ela “explica”: "— Os livros dele têm cinco ou seis palavras que não entendem por frase. As construções são muito longas. Eu simplifico isso." Bingo! Hip, hip, hurra! Diz mais a matéria da Folha de S.Paulo: “—Ela simplifica mesmo: Patrícia lançará em junho uma versão de ‘O Alienista’, obra de Machado lançada em 1882, em que as frases estão mais diretas e palavras são trocadas por sinônimos mais comuns (um "sagacidade" virou "esperteza", por exemplo"). "A ideia não é mudar o que ele disse, só tornar mais fácil." Ah, bom. E o projeto dela não para por aí. Vem mais coisa por aí.

Estamos perdidos. “A equipe que ‘descomplica’ o texto é formada ‘por um monte de gente’, diz a autora, entre eles a própria e dois jornalistas amigos”. Aleluia. Achei que ela estava sozinha nessa nova empresa facilitadora. Vê-se, assim, que Patricia não receberá o Prêmio (Ig)Nobel sozinha. Estará acompanhada em Estocolmo! Já imagino a cerimônia da entrega: E por ter inventado a literatura facilitada-simplificada, o (Ig)Nobel vai para Pindorama! Quero estar lá para ver. Vou pedir passagens aéreas e estadia via Lei Rouanet. Aliás, como fez Patrícia para publicar 600 mil exemplares, segundo consta na imprensa. Tinha que ter dinheiro da Viúva nisso. Todos nós pagamos os pato. Viva a Viúva. O Brasil anda a passos de cágado.

Incrível como perdemos os fundamentos e os sentidos. É essa praga da pós-modernidade que-ninguém-sabe-o-que-é. Pulamos da modernidade e caímos em um vazio recheado de simplificações, twitters, sertanejos-universitários e universitários sertanejos. Jeca Tatu venceu. Viva nosso imaginário jeca!

Já aqui vai uma sugestão para a autora e seus amigos (com isso, o Nobel é certo!). A peça Julio Cesar, de Shakespeare, pode ter substituída, já no início, por frases curtinhas e bem explicativas. Por exemplo, eis o texto original:

“De uma feita, numa tarde enublada e tempestuosa, em que o Tibre agitado se batia dentro das próprias margens, perguntou-me César: “Cássio, ousarias atirar-te, junto comigo, na corrente infensa e nadar até ali?” Mal acabara de falar-me, vestido como estava, joguei-me na água e a me seguir chamei-o, o que ele fez de fato. A correnteza roncava; nós lutávamos contra ela com membros indefesos, apartando-a e à sua fúria opondo o ousado peito. Mas antes de alcançarmos nossa meta, César gritou: “Socorro, Cássio! Afogo-me!” Então, tal como Enéias, nosso grande progenitor, que carregam aos ombros o velho Anquises e o salvara às chamas que Tróia devastavam: da corrente do Tibre, assim, tirei o exausto César. Num deus, agora, está mudado esse homem, sendo Cássio uma mísera criatura que precisa curvar-se, quando César com enfado lhe faz um gesto vago. Na Espanha apanhou febre; e, quando o acesso lhe vinha, notei bem como tremia. Sim, esse deus tremia; seus covardes lábios ficaram pálidos, e os mesmos olhos que ao mundo todo inspiram medo o brilho a perder vieram. Muitas vezes o ouvi gemer. Sim, essa mesma língua que os romanos deixava estupefactos, levando-os a guardar os seus discursos, ah! gritava tal qual donzela doente: “Água, Titínio! Dá-me um pouco de água!” Muito me espanta, ó deuses! ver que um homem de uma constituição assim tão fraca tenha passado à frente neste mundo majestoso e, sozinho, obtido a palma”.

Lindo, não? Mas muito complicado. Solução tabajara: uma nova versão de Júlio Cesar simplificado, na qual poderíamos ler: Cassio era um intrigueiro (=fuxiqueiro). Odiava Cesar. Para mostrar como Cesar era um sujeito bundão, contou para Brutus que Cesar não sabia nadar e um dia quase morreu de sede. Resumindo a fala de Cassio: Cesar se achava um Deus, mas era um incompetente e medroso. Nem nadar sabia. Ah: o Enéias do texto não é o “meu nome é Eneas”. Final: Brutus acreditou nisso e acabou com Cesar.

Eis a sugestão (grátis) que dou para o volume sobre Shakespeare! Abaixo, a capa do livro e a contracapa:

Divulgação
Coluna Lênio [Divulgação]

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Ah: outra dica — O maior romance semiológico de Eco, O Nome da Rosa, pode ser facilitado, transformando o personagem (ockeano) Guilherme de Baskerville em Sherlock Holmes e o Adso de Melk em “meu caro Watson”. Pronto. Para que ficar discutindo nominalismo, poder, segredo, medievo, secularização etc, se podemos resumir tudo a um romancezinho policial? Bingo de novo! E uma versão simplificada de A Revolução dos Bichos (bichinhos que aprendem a falar) poderia facilmente se tornar roteiro de um filme da Disney. A Metamorfose de Kafka seria um livro sobre uma pessoa que vira uma barata. Ponto final. Ainda: A Megera Domada pode ser uma versão “simplificada” de 50 Tons de Cinza. E eu vou para o meu Bunker Facilitado. Lerei de novo Der Mann ohne Eigenschaften (O Homem Sem Atributos), de Robert Musil (o maior romance do século XX), antes que essa gente faça uma facilitação dizendo que o personagem Ulrich era um desclassificado (porque não tinha qualidades… se me entendem a ironia ou o sarcasmo)… Afinal, quem troca “sagacidade” por “esperteza” porque acha que a choldra não saberá o sentido, por certo achará que “sem qualidades” quererá dizer “incompetente”!!! Bingoooo!

É que tal Bobók, considerado por muitos uma das mais importantes menipeias de toda a literatura universal. Seria fácil “simplifica-lo”, pois não? Para que afinal perder tempo com temas que, incluídos no conto, retratam boa parte da complexa obra de Dostoiévski, se é possível dizer que o livro diz respeito apenas às excentricidades de um bando de almas penadas que, num cemitério, decidem narrar desavergonhadamente suas perversões praticadas em vida… Almas penadas safadinhas e desbocadas.

E Bentinho, coitado … Logo os simplificadores de Dom Casmurro estarão rotulando o pobre rapaz de cornudo, sem pestanejar! E colocarão no twitter: # Perdeu, Bentinho corno!

Pronto. Por que ler o original se podemos ler um “facilitado” com sinônimos? A Sinfonia Inacabada de Schubert por certo merecerá um lançamento por parte do grupo dos (neo)facilitadores. E ainda dirão que esse Schubert — por certo, um preguiçoso — poderia ter acabado a sinfonia com trinta minutos menos, além do relevante fato de que poderia ter poupado divisas para o Imperador, dispensando um tocador do Oboé, três violinistas, etc.

O Brasil é terrível. Há tempos atrás, o programa Fantástico da Globo quis ensinar filosofia nos domingos à noite. Queria, é claro, facilitar. Genial, não? No primeiro programa a repórter-filósofa entrou em uma caverna em Tubarão (SC), e de lá buscou explicar…o Mito da Caverna. Entenderam? Caverna-que-é-igual-a-uma…caverna! Bingo. O Nobel e o Ignobel são nossos. Na sequência, para explicar Heráclito, ela subiu em um caminhão, para falar do… movimento. Céus. O que mais inventarão?

Tudo para facilitar a vida dos néscios. Dos néscios, pelos néscios e para os néscios (DOPELOPÁ). A nesciocracia venceu. Até na literatura. Estamos liquidados. Há um livro que pode nos ajudar a entender isso e que li nesses feriados: Psiche e techne – O homem na idade da técnica, de Umberto Galimberto, um “pacote” de 917 páginas (não havia uma versão facilitada e tive que pegar o original). Lendo-o, vislumbra-se a era da técnica, da alienação, do Google, da cultura de massa (que, no caso, não é um carboidrato!). Mais: como jurista, dá para ver a técnica dominando o homem do direito. Ele já não maneja a técnica; é ela que o maneja. O processo eletrônico é um bom exemplo disso. O jurista virou “suco”, exprimido entre techne e psique.

Heidegger alertava: O que inquieta, de fato, não é que o mundo se transforme num completo domínio da técnica. Muito mais preocupante é que o homem não está preparado para essa radical mudança do mundo.

Trata-se da soma da era da técnica com a cultura de massa, em que ocorre a desarticulação entre público e privado, entre social e individual, operada pela racionalidade técnica, que modifica também o conceito tradicional de massa, introduzindo uma variante que é a sua atomização e desarticulação em singularidades individuais, que, modeladas por produtos de massa, consumos de massa, informações de massa, tornam obsoleto o conceito de massa como concentração de muitos e atual o conceito de massificação como qualidade de milhões de indivíduos, cada um dos quais produz, consome e recebe as mesmas coisas de todos, mas de modo solitário (Galimberti).

No direito, eis o caldo de cultura onde pode ser encontrado o atual homo juridicus, o homo concurseirus, homo senso comunis, enfim, essa nova espécie de jurista FaSimpleResum (o jurista que quer facilidades, simplificações e resumos — estou resumindo para facilitar!!!). Para ele, o Direito é uma mera técnica. Uma mera racionalidade formal-instrumental, como se fosse uma ferramenta comum, uma enxada ou um machado. Às vezes até uma régua (“princípio” da proporcionalidade?”). Por isso, o direito sempre pode ser manipulado de qualquer modo. Não exige grandes elucubrações. O processo vira também instrumento. E a interpretação se faz via retórica, em que essa se autonomiza.

Numa palavra final.
Parafraseando Nietzsche, no Nascimento da Tragédia, digo: como se poderá constranger esse senso comum e essa fragmentação a abandonarem os seus segredos, a não ser se opondo vitoriosamente a ele? Mas como fazer isso?

Parece que ficamos em um meio fio: entre a ruptura e a alienação (acomodação). Opor-se vitoriosamente é sempre uma tarefa perigosa. Entregar-se ao conforto e à simplificação é sempre sedutor. A palavra alienação vem do latim alienus, que quer dizer “o outro”. Por isso o inferno sempre é o outro ou sempre são os outros. É possível derrotar tabus? Quais os totens a serem derrubados?

Mas para isso há que se tomar consciência do problema. E estar atento aos efeitos que a história tem sobre nós. Como diz o autor de Techne e Psiche, a memória desvela aquela abertura para o sentido da qual está excluído o animal, que, sem memória, não tem consciência de si nem do mundo que o circunda.

O homo simplificatus, alienado de sua condição, não-sabe-que-não-sabe. Não se dá conta que-pode-se-dar-conta. Mergulhado no senso comum, fica refém de um mundo pré-dado. E que, por ser pré-dado, é-lhe predador!

Outro livro que li nos feriados foi O livro dos Prazeres Proibidos, de Frederico Andahazy. É um romanceamento picante sobre a história da “invenção” do livro. Guttenberg é o personagem, é claro. Trabalhando com seu pai, que cunhava moedas para o Rei, vê com admiração os calígrafos reproduzindo a bíblia e outros textos. Diz, então, Guttenberg:

-“Estes homens devem ser verdadeiros sábios. Afinal, tanto copiam e com tal perfeição…”.

“-Talvez” – disse-lhe seu pai, esboçando um sorriso, e complementou: “- Se soubessem ler. Os melhores copistas são aqueles que não sabem ler”.

De fato: os melhores copistas são aqueles que não sabem ler! Bingo outra vez!

Post scriptum 1: para quem acha que isso que acabei de escrever não é necessário, vai uma frase de outro filósofo que curto (quem m’o apresentou foi o filósofo Alfredo Culleton), sobre a diferença entre sábios e néscios. Chama-se Avicena. Ele dizia:

Um sábio sabe a diferença entre as coisas necessárias e as desnecessárias. O néscio não sabe disso. Solução: bata-se nele (no néscio) com um chicote até que ele grite: “basta, basta: isso não é necessário”. Pronto. Agora ele aprendeu a diferença entre o necessário e não necessário.

Saludos para todos os que sabem a diferença entre o que é necessário e o que não é necessário! Sem necessitarmos colocar sinônimos… E sem substituir sagacidade por esperteza. Caso contrário, Chapolin Colorado dirá: não contavam com minha sagacidade…!

Post scriptum 2: Estou me aliando ao movimento “Ministério da Cultura do Brasil: Impeça a alteração das palavras originais nas obras da língua portuguesa”.

Vou aproveitar para iniciar um movimento similar no direito, que seria mais ou menos assim:

Comunidade Jurídica de terrae brasilis: impeça que o direito continue a ser “facilitado”, “simplificado”, “mastigado” e “resumidinho”.

* Texto alterado às 9h39 para inclusão de imagem.

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