Constituição e Poder

Contrabando que anistia planos de saúde é inconstitucional

Autor

  • Marco Aurélio Marrafon

    é advogado professor de Direito e Pensamento Político na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) doutor e mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) com estudos doutorais na Università degli Studi Roma Tre (Itália). É membro da Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst).

5 de maio de 2014, 18h13

Um estudo quantitativo das Medidas Provisórias editadas pelo governo federal atual mostra que houve manutenção e mesmo diminuição no número de Medidas Provisórias em relação aos governos anteriores[1]. Todavia, isso não tem significado melhoria no debate parlamentar ou mesmo maior respeito às instituições e ao devido processo legislativo, uma vez que é cada vez mais presente o fenômeno da inserção de “contrabandos legislativos”, ou seja, de dispositivos normativos sem nenhuma pertinência temática com o objetivo original da MP editada pelo Executivo.

Esse enxertos “pegam carona”no rito especial e anômalo dos Projetos de Lei de Conversão (PLVs) e propiciam a promulgação de verdadeiros “Frankensteins” legislativos, com leis recheadas de inúmeros dispositivos de conteúdos absolutamente diversos.

Isso aconteceu, por exemplo, no caso do Projeto de Lei de Conversão 13/2012 relativo à Medida Provisória 559/12, de 5 de março de 2012. Originalmente, a ementa do texto normativo da Presidência da República dizia que ele “autoriza a Centrais Elétricas Brasileiras S.A. – Eletrobras a adquirir participação na Celg Distribuição S.A. – Celg D e dá outras providências”. No entanto, acabou levando à aprovação do Regime Diferenciado de Contratações (RDC), voltado especialmente para as obras da Copa do Mundo (Lei 12.462/2011).

Esse caso poderia ser uma exceção. Contudo, o que deveria ser um acidente tornou-se regra e tem tomado as pautas parlamentares todos os dias. A mais recente matéria de repercussão foi justamente a inserção de perdão a multas de operadores de planos de saúde no texto da MP 627/2013, que originalmente tratava das regras de tributação de subsidiárias das empresas brasileira no exterior.

A partir desse contexto, a presente coluna tem o objetivo de demonstrar que a inclusão de matérias estranhas ao objeto da Medida Provisória — em geral pelas mãos do relator da proposição na Câmara dos Deputados — viola: i) o devido processo legislativo constitucionalmente previsto; ii) o princípio da legalidade; iii) o direito subjetivo dos membros do Congresso Nacional, especialmente dos senadores, ao pleno exercício de sua competência constitucional; iv) os limites da discricionariedade legislativa no exercício do poder de legislar; e v) a prerrogativa exclusiva do Poder Executivo de editar e delimitar o conteúdo das Medidas Provisórias, cujo trâmite legislativo é anômalo e excepcional.

Ao leitor, informo que já tratei do tema em outro lugar, de maneira mais aprofundada, em artigo escrito em coautoria com o professor Ilton Norberto Robl Filho[2]. Nesta oportunidade, busco apenas trazer algumas notas sobre o tema, ante à atualidade e permanência da problemática.

Contrabandos na MP 627
A MP 627 foi apresentada pelo Poder Executivo à Câmara dos Deputados no dia 26 de março de 2013, por meio da Mensagem 498/2013. De acordo com sua ementa, ela tinha o seguinte objeto inicial: “Altera a legislação tributária federal relativa ao Imposto sobre a Renda das Pessoas Jurídicas (IRPJ), à Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), à Contribuição para o PIS/Pasep e à Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins; revoga o Regime Tributário de Transição (RTT), instituído pela Lei 11.941, de 27 de maio de 2009; dispõe sobre a tributação da pessoa jurídica domiciliada no Brasil, com relação ao acréscimo patrimonial decorrente de participação em lucros auferidos no exterior por controladas e coligadas e de lucros auferidos por pessoa física residente no Brasil por intermédio de pessoa jurídica controlada no exterior; e dá outras providências”.

Tendo recebido ao todo 516 propostas de emenda, o relator, Deputado Federal Eduardo Cunha, líder do PMDB, recomendou o acolhimento integral de 33 emendas e parcial de 26 emendas, grande parte com matérias alheias à temática de origem. Sem meias palavras, ele mesmo reconheceu que “a partir do artigo 93, foram feitos alguns ajustes, assim como inclusões de temas não tratados na Medida Provisória, mas objeto de emendas ou demandas da sociedade, tais como o fim da taxa cobrada pela Ordem dos Advogados do Brasil, o chamado ‛Exame da Ordem’”.

Nessa lógica, foram incluídos inúmeros dispositivos, com conteúdo absolutamente sem pertinência com o objetivo inicial da MP. Dentre eles, destaco o disposto no artigo 101, estabelecendo que o descumprimento dos dispositivos previstos na Lei 9.656, de 3 de junho de 1998, bem como dos contratos firmados entre operadoras e usuários de planos privados de assistência à saúde teriam suas multas drasticamente reduzidas por meio do estabelecimento de um teto. Na prática, o contrabando permite que fossem pagas apenas duas multas caso fossem aplicadas 50, causando prejuízos aos usuários do sistema e à própria atividade fiscalização da Agencia Nacional de Saúde (ANS).

Ora, trata-se de verdadeira “anistia” das multas aplicáveis aos planos de saúde, representando, segundo dados do Ministério da Saúde publicados pela imprensa, um perdão de cerca de 2 bilhões às operadoras privadas que descumprem suas obrigações contratuais e legais.

O Projeto de Lei de Conversão seguiu para o Senado Federal, onde foi aprovado com a mesma redação da Câmara dos Deputados (não havia tempo para apreciar a matéria, informaram alguns senadores). Neste momento, aguarda sanção ou veto presidencial, que deve ocorrer até a próxima terça-feira, dia 13 de maio de 2014.[3]

Não quero entrar no mérito desse perdão — de minha parte penso que se está diante de um verdadeiro absurdo, incompreensível e incompatível com o papel que se espera do Congresso Nacional face aos anseios da sociedade.

De qualquer modo, do ponto de vista constitucional, não tenho dúvidas de que se trata de mais um caso de abuso parlamentar incompatível com o devido processo legislativo constitucionalmente determinado. Por conseguinte, as razões para eventual veto não se resumem ao mérito, mas, de maneira bastante evidente, ao vício formal que ali se encontra.

Devido processo legislativo
É próprio da ideia de Estado Democrático de Direito que a soberania popular seja exercida nos limites determinados pela ordem jurídica, cujas normas são válidas apenas se criadas nos marcos constitucionais do devido processo legislativo. Isso significa que nas democracias constitucionais contemporâneas apenas as normas postas pelos representantes do povo construídas por meio de um processo específico podem obrigar ou proibir uma ação ou omissão (artigo 5º, II, da Constituição Federal).

O processo legislativo estabelecido na Constituição deve ser obedecido rigorosamente. Não é possível a criação de procedimentos anômalos por meio de interpretações extensivas. São admitidos tipos legislativos diferenciados apenas excepcionalmente, a exemplo do Decreto Autônomo e do Projeto de Lei de Conversão (PLV), cujo assento constitucional dá-se a partir do artigo 62 da Constituição — haja vista que ele, apesar de autônomo, tem sua iniciativa derivada de Medida Provisória[4].

As Medidas Provisórias submetem-se a um procedimento especial, marcado pela tramitação rápida e de caráter urgente. Devem ser convertidas em lei pelo Congresso no período de 60 dias, prorrogáveis uma vez pelo mesmo período. Sua votação deve ser feita por cada uma das Casas do Congresso Nacional, começando a análise pela Câmara dos Deputados.

Antes da votação em cada uma das Casas, deve ser constituída Comissão Mista de Deputados e de Senadores para a emissão de parecer prévio antes da apreciação do Projeto de Conversão em Lei (artigo 62, parágrafo 5° ao parágrafo 9°, da Constituição). Caso não sejam apreciadas em até 45 dias, as Medidas Provisórias entram em regime de urgência, dando ensejo ao sobrestamento das deliberações na Casa em que estiver tramitando (artigo 62, parágrafo 6º, da Constituição).

Esse processo legislativo especial foi previsto constitucionalmente apenas para analisar o objeto disciplinado originariamente no texto da MP apresentado pelo Presidente da República, ou seja, somente aqueles temas que, na origem, foram reputados como de relevância e urgência. Mais do que isso: esse rito especial da MP — que se estende ao Projeto de Lei de Conversão (PLV) — seria aplicável apenas às emendas parlamentares que guardassem pertinência temática com a Medida Provisória. Por conseguinte, é preciso que toda a matéria do PLV esteja adstrita ao objeto delimitado no âmbito da MP.

Inconstitucionalidade dos contrabandos
Inúmeras são as razões que demonstram a inconstitucionalidade desses enxertos normativos contrabandeados. De início, é preciso apreciar a questão a partir da necessidade de se preservar o princípio da legalidade e sua força normativa, verdadeira salvaguarda da segurança jurídica.

O império da lei e o princípio da legalidade são pilares centrais do Estado Democrático de Direito, uma vez que: i) limitam o poder do Estado; ii) garantem a cidadania e a liberdade perante a lei (artigo 5º, II, da Constituição); iii) dão suporte à independência judicial (artigo 95); e iv) vinculam a Administração Pública (artigo 37).

Uma vez publicizadas as leis, o cidadão sabe quais condutas tomar, o juiz compreende os parâmetros normativos para julgar e o administrador público pode bem delimitar as balizas legais que vinculam sua atuação.

Em razão de sua importância, não apenas o devido processo legislativo se reveste de garantia constitucional, como também os textos legais devem atender aos critérios de objetividade e clareza[5]. Nesse contexto, uma lei que carece de objetividade e clareza é incompatível com os ditames do Estado de Direito. Por essa razão, a Lei Complementar 95/98 dispõe, em seu artigo 7º, II, que “a lei não conterá matéria estranha a seu objeto ou a este não vinculada por afinidade, pertinência ou conexão”.

Por esse motivo, a lei originada da MP, quando impregnada de diversos contrabando legislativos, causa grande perigo à segurança jurídica, a qual se tornou um dos pilares centrais do Estado moderno. Rompendo com o pluralismo jurídico medieval, a modernidade traz como contribuição a noção de que o cidadão tem direito de saber quais condutas devem gerar consequências jurídicas que são, desde antes, determinadas. Daí a impossibilidade de alegar a ignorância como escusa ao descumprimento das obrigações legais.

Assim, parece evidente que uma lei cuja ementa não reflete o conteúdo, uma lei em que cada artigo trata de um tema diferente, causa sério dano à cidadania e à segurança jurídica.

Somando-se à violação ao princípio da legalidade, esses contrabandos legislativos pegam carona em processo legislativo especial em rito não previsto na Constituição. O trâmite de urgência do PLV, por conter emendas manifestamente inadmissíveis, é uma inovação na tipologia legislativa não admitida pela Constituição de 1988. Não há norma ou interpretação regimental que possa inovar no devido processo legislativo constitucional, especialmente quando cria tipos anômalos e antidemocráticos.

Um terceiro argumento confirma essa tese: como a apreciação das Medidas Provisórias se inicia na Câmara dos Deputados (artigo 62, parágrafo 8º, da

Constituição), o Senado, em diversos casos, fica constrangido a apreciar em caráter de urgência (com sobrestamento de suas deliberações) tais matérias inconstitucionalmente enxertadas e sem possibilidade de modificação com apresentação de emendas.

O PLV, mesmo possuindo matérias completamente heterogêneas em relação à MP e podendo formar um Projeto de Lei autônomo, recebe tratamento de um processo legislativo especial de urgência. Corriqueiramente, Projetos de Lei de Conversão, possuindo, além do conteúdo original, matérias completamente diversas, ocasionam o sobrestamento de todas as demais deliberações, impedindo sua apreciação regular de acordo com os artigos 65 e 66 da Constituição e normas regimentais da Casa Legislativa.

Essa ação impede que os parlamentares — principalmente os do Senado — exerçam suas atribuições, com apresentação de emendas, distribuição às comissões temáticas, realizações de audiências públicas, debates, entre outros.

Daí a facilidade de passar temas “antipáticos”, sem respaldo popular, por meio dessa via anômala. Sufoca-se as vozes das minorias, da oposição e daqueles que se poderiam se insurgir contra o conteúdo contrabandeado. Perde a democracia, perde o princípio republicano.

Por isso, o “contrabando” legislativo fere a representatividade do parlamentar, que não consegue exercer plenamente suas funções constitucionais, em especial o estudo integral da matéria e as suas consequências na inovação jurídica, ferindo seu direito/dever constitucionalmente previsto.

Tendo essas questões no horizonte, o próprio Congresso Nacional, seguindo o previsto nos artigos 59, VII, e 62 da Constituição, promulgou a Resolução 1/2002, que dispõe sobre a apreciação de Medidas Provisórias, concretizando, por via de regras expressas, as determinações da Constituição.

Essa Resolução, em seu artigo 4º, parágrafo 4º, veda expressamente a apresentação de emendas parlamentares que versem sobre temas estranhos à Medida Provisória, verbis: “§ 4º É vedada a apresentação de emendas que versem sobre matéria estranha àquela tratada na Medida Provisória, cabendo ao Presidente da Comissão o seu indeferimento liminar”.

Nesses termos, fica evidente que o objetivo do citado dispositivo é concretizar a Constituição ao restringir a aplicação do processo legislativo especial apenas para os temas regulamentados pelo texto original da Medida Provisória.

Por último, cabe ressaltar que, no contexto do presidencialismo brasileiro, a prerrogativa de editar Medidas Provisórias e assim delimitar o conteúdo que se reputa de relevância e urgência é do Poder Executivo. Em outras palavras, a análise da relevância e urgência é atribuída constitucionalmente ao Poder Executivo que, no sistema presidencialista, compete à Presidente.

Certamente o Congresso Nacional tem competência para fazer o juízo acerca do cumprimento dos pressupostos constitucionais do ato emanado do Poder Executivo. Não cabe, no entanto, no regime de Medidas Provisórias, que o próprio Parlamento, discricionariamente, delimite o conteúdo de relevância e urgência que possa “pegar carona” no rito anômalo do PLV.

Em conclusão, vale ressaltar que geralmente não compete ao Supremo Tribunal Federal a análise do descumprimento de normas regimentais pelo Congresso Nacional, pois há que se valorizar o espaço político e observar as questões interna corporis. De outro lado, essa discricionariedade não significa que as práticas políticas tudo podem. A Constituição da República é vinculante e não pode o Supremo Tribunal Federal permitir a patente violação ao devido processo legislativo e da competência do Poder Executivo na edição e delimitação dos conteúdos de relevância e urgência que, se diga, não admitem interpretação extensiva ante à sua excepcionalidade.

Por essa razão, a pertinência temática das emendas em relação ao objeto original da MP é requisito imprescindível para que atenda as exigências constitucionais inerentes ao trâmite das Medidas Provisórias. E essa análise é independente do conteúdo, que pode ser plenamente constitucional quando apresentado da forma adequada, ou por uma nova Medida Provisória ou na forma do processo legislativo ordinário.

Resta claro, desse modo, que o perdão das multas das operadoras de plano de saúde é inconstitucional devido à mácula formal que cria uma nova tipologia de processo legislativo não arrolada no artigo 59 da Constituição. O contrabando embaraça o uso das atribuições constitucionais do parlamentar, diminuindo-lhe a representatividade democrática e sua possibilidade de exercer seu papel enquanto representante popular. Por fim, viola a prerrogativa atribuída exclusivamente ao Poder Executivo de adoção de Medidas Provisórias com força de lei.

[1] Em pesquisa própria, encontramos os seguintes números: até a presente data, o governo Dilma Rousseff editou 123 MPs; Lula (2º mandato): 178; Lula (1º mandato): 240; Fernando Henrique Cardoso (2º mandato): 274; e Fernando Henrique Cardoso (1º mandato): 147. Dados obtidos a partir do site da Presidência da República: http://www4.planalto.gov.br/legislacao/legislacao-1/medidas-provisorias#content. Acesso em: 05 mai. 2014.
[2] Cf. MARRAFON, Marco Aurélio. ROBL FILHO, Ilton Norberto. Controle de Constitucionalidade no Projeto de Lei de Conversão de Medida Provisória em face dos “contrabandos legislativos”: salvaguarda do Estado Democrático de Direito. In: NOVELINO, Marcelo. FELLET, André. Constitucionalismo e democracia. Salvador: Jus Podivm, 2013, p. 235-249.
[3] Dado disponível em: http://www.relacoesinstitucionais.gov.br/acesso-a-informacao/institucional/assuntos_parl/projetos-de-lei-em-fase-de-sancao/proposicoes-em-fase-de-sancao. Acesso: 05 mai. 2014.
[4] Sobre o tema, José Levi Mello do Amaral Júnior explica que: “A lei de conversão particulariza-se e qualifica-se por: a) pressupor uma medida provisória a converter; b) possuir conteúdo delimitado e condicionado pela medida provisória; c) seguir processo legislativo específico; e d) dever ser aprovada dentro do prazo constitucional sob pena de decadência. Portanto, tendo âmbito temático próprio, bem assim processo legislativo específico, a lei de conversão da medida provisória é, insista-se, espécie normativa primária e autônoma”. Cf. AMARAL JUNIOR, José Levi Mello do. Medida provisória e sua conversão em lei: a emenda constitucional nº 32 e o papel do Congresso Nacional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 284.
[5] SILVA, José Afonso da. Processo constitucional de formação das leis. 2 ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 26.

Autores

  • é presidente da Academia Brasileira de Direito Constitucional – ABDConst, Professor de Direito e Pensamento Político na Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ e Advogado.

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