Embargos Culturais

Relação entre Direito e cinema no filme “A Vida dos Outros”

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da USP doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP professor e pesquisador visitante na Universidade da California (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

4 de maio de 2014, 8h00

Spacca
A Vida dos Outros (Das Leben der Anderen) é filme produzido na Alemanha (em 2006), dirigido por Florian Henckel von Donnersmarck. Trata-se de trabalho original que explora o jogo de influências e opressões quem marca as ditaduras, com foco na Alemanha Oriental da década de 1980. Sugere e demonstra a irracionalidade e a opressão dos regimes políticos fechados.

O argumento centra-se na espionagem de um jovem e bem sucedido escritor de peças de teatro, questionando-se seu comprometimento com o regime. A dúvida, no entanto, era o resultado menos de uma preocupação política consistente, do que o interesse lascivo e pessoal de um Ministro de Estado. O desfecho sugere uma antropologia positiva: pode-se constatar que o mais frio dos espiões e interrogadores pode-se convencer de que o mal que pode fazer é infinitamente menor do que o bem que pode propiciar.

O enredo desdobra-se no início dos anos 80, num contexto de muita decadência na Alemanha Oriental. Um diretor de peças de teatro, Georg Dreyman (protagonizado por Sebastian Koch), vive romance com uma famosa atriz, Crista-Maria Sieland (papel vivido por Martina Gedeck). Embora muito conhecidos no país, não há evidências de que fossem aliados do regime ou da estrutura midiática da Alemanha Oriental. E o distanciamento com o regime lhes causaria problemas.

O ministro da Cultura da Alemanha Oriental interessou-se pela famosa atriz. Designou um agente secreto Weisler (protagonizado por Ulrich Müle), agente da temida STASI, polícia secreta da Alemanha Oriental, para que este espionasse o casal. Tinha em mente obter informações privilegiadas sobre Georg, que utilizaria para chantageá-lo, ou mesmo a Crista-Maria. De certo modo, tem-se a impressão de que a vida do casal exerce um grande fascínio sobre Weisler, que o monitora, intermitentemente. E o Ministro bufão aproveitou-se da situação.

Ao longo do filme percebe-se uma mudança radical nas atitudes de Weisler. E se nas primeiras cenas ele se revela como um inquisidor implacável, fidelíssimo ao regime, constata-se uma alteração em seu comportamento, cujo clímax é atingido em uma das últimas cenas, na qual Weisler dá fim à única prova que poderia incriminar o diretor Georg Dreyman: uma máquina de escrever que fora utilizada na composição de textos negativos sobre a Alemanha Oriental, que foram divulgados no exterior.

Três dimensões de critério jurídico podem problematizadas a partir de A vida dos outros: a proteção da intimidade, os limites do poder público e o nível de resistência do indivíduo às investidas dos poderosos. Neste último caso transita-se no delicado campo do assédio moral, e de certa contrapartida, a coação moral irresistível.

Num contexto contemporâneo, e nacional, a proteção à intimidade conta com proteção constitucional (artigo 5º, inciso X, Constituição de 1988). Desdobram-se inúmeros problemas de feição casuística, a exemplo, entre outros, dos poderes de interceptação telefônica por parte de Comissões Parlamentares de Inquérito.

É o caso do decidido pelo Supremo Tribunal Federal no MS 27.483-REF-MC, relatado pelo Ministro Cezar Peluso, em julgamento de 14 de agosto de 2008, quando se julgou que "Comissão Parlamentar de Inquérito não tem poder jurídico de, mediante requisição, a operadoras de telefonia, de cópias de decisão nem mandado judicial de interceptação telefônica, quebrar sigilo imposto a processo sujeito a segredo de justiça (…) este é oponível a Comissão Parlamentar de Inquérito, representando expressiva limitação aos seus poderes constitucionais".

Há também expressiva decisão de nosso Supremo Tribunal Federal, por ocasião do discutido no HC 84.758, relatado pelo Ministro Celso de Mello, em julgamento de 25 de maio de 2006, ainda que em discussão relativa a quebra de sigilo bancário, quando então se ementou, no que interessa:

A QUEBRA DE SIGILO NÃO PODE SER UTILIZADA COMO INSTRUMENTO DE DEVASSA INDISCRIMINADA, SOB PENA DE OFENSA À GARANTIA CONSTITUCIONAL DA INTIMIDADE. – A quebra de sigilo não pode ser manipulada, de modo arbitrário, pelo Poder Público ou por seus agentes. É que, se assim não fosse, a quebra de sigilo converter-se-ia, ilegitimamente, em instrumento de busca generalizada e de devassa indiscriminada da esfera de intimidade das pessoas, o que daria, ao Estado, em desconformidade com os postulados que informam o regime democrático, o poder absoluto de vasculhar, sem quaisquer limitações, registros sigilosos alheios. Doutrina. Precedentes. – Para que a medida excepcional da quebra de sigilo bancário não se descaracterize em sua finalidade legítima, torna-se imprescindível que o ato estatal que a decrete, além de adequadamente fundamentado, também indique, de modo preciso, dentre outros dados essenciais, os elementos de identificação do correntista (notadamente o número de sua inscrição no CPF) e o lapso temporal abrangido pela ordem de ruptura dos registros sigilosos mantidos por instituição financeira. Precedentes.

Entre nós, também há tendência de se conferir equivalência a sigilo fiscal e direito à intimidade, em percepção liberal de valores individuais, como já decidido pelo Supremo Tribunal Federal por ocasião do HC 87.654, em voto da Ministra Ellen Gracie:

O chamado sigilo fiscal nada mais é que um desdobramento do direito à intimidade e à vida privada. Aqui se cuida de pessoa jurídica que exerce atividade tributável. Contribuinte, portanto. Os documentos foram apreendidos no interior da sede da empresa e não no domicílio do seu responsável legal. A atividade da pessoa jurídica está prevista como crime contra a ordem econômica. Legítima, assim, a atuação do Fisco, com respaldo na legislação pertinente. Legítima, também, a atuação do Ministério Público instando a autoridade policial à instauração do inquérito policial, com vista a apurar a ocorrência de um fato típico.

É problemática a utilização de dados oriundos de escuta telefônica, sem o devido processo legal, como elemento absolutamente informador de indicativos de intimidade. É, por exemplo, o sentido do decidido pelo Supremo Tribunal Federal no contexto do HC 74.658, relatado pelo Ministro Moreira Alves, em julgamento ocorrido em 10 de junho de 1997, cuja ementa segue, e que nos indica que possibilidade há sim de eventual divulgação de dado obtido, conquanto que se tenha consentimento de algum interlocutor:

Utilização de gravação de conversa telefônica feita por terceiro com a autorização de um dos interlocutores sem o conhecimento do outro quando há, para essa utilização, excludente da antijuridicidade. – Afastada a ilicitude de tal conduta – a de, por legítima defesa, fazer gravar e divulgar conversa telefônica ainda que não haja o conhecimento do terceiro que está praticando crime -, é ela, por via de consequência, lícita e, também consequentemente, essa gravação não pode ser tida como prova ilícita, para invocar-se o artigo 5º, LVI, da Constituição com fundamento em que houve violação da intimidade (art. 5º, X, da Carta Magna). "Habeas corpus" indeferido.

Em A vida dos outros a violação da intimidade do casal é escandalosa. Agentes da STASI acompanham cada minuto da vida do casal de artistas. Tem-se a impressão que se tem uma denúncia a todas as ditaduras que se valem de serviços de informação, e do modo como tais dados são posteriormente manipulados. Percebe-se também referência muito explícita ao modelo engendrado pelo comunismo real, afastando-se na prática de um regime autoritário as utopias que estimularam várias revoluções, a exemplo do avanço do leninismo na Rússia de 1917.

Em A vida dos outros é nítida inexistência de limites num Estado autoritário. A arrogância dos donos do poder, a falta de escrúpulos e o total descompromisso para com um ideal comum são características de um mundo de absurda violência simbólica. O que vale é apenas o interesse do chefe, e de seus companheiros. Verdades são criadas, fatos são estabelecidos, dissocia-se totalmente o sentido político da vida real.

Intriga, no entanto, a atitude da atriz, assediada pelo Ministro da Cultura. Não se sabe exatamente até que ponto sua resistência inicial não se transformou em fonte insuspeita de prazer. Não se pode avaliar se Crista-Maria realmente sentiu-se ofendida, se o assédio lhe excitava ou se agia daquela forma, na tentativa de proteger seu amado. A reação de Georg revela um homem superior, conhecedor dos instintos e fraquezas humanas.

E na busca de seu benfeitor, o agente Weisler, há também, por parte de Georg, a essência de uma atitude verdadeira humanista. Porém, o grande marco do filme é o próprio agente, prova mais absoluta de alguma percepção rousseauniana, que vê no homem um ser originariamente puro, corrompido pela sociedade. Weisler opera com sua redenção a salvação do próprio homem, lembrando-nos que inclusive nas mais sanguinárias ditaduras há ainda homens de fibra, e passíveis de redenção.

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    é livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC- SP e advogado, consultor e parecerista em Brasília, ex-consultor-geral da União e ex-procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

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