Cachorro-quente voador

Tribunais americanos discordam sobre riscos inerentes de eventos esportivos

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30 de junho de 2014, 8h31

Em Kansas City, Missouri, um cachorro-quente lançado pela mascote do time local de beisebol atingiu o olho de um torcedor, causando deslocamento da retina. Na ação indenizatória movida pelo torcedor contra seu clube, o Royals, um tribunal do júri decidiu que o dano causado pelo lançamento do cachorro-quente, que faz parte do show, era um risco inerente do jogo. Portanto, o torcedor John Coomer não poderia reclamar indenização por danos.

No entanto, o tribunal superior do estado discordou dessa decisão. E acrescentou que o júri não tem de decidir sobre “riscos inerentes” corridos por torcedores que comparecem a eventos esportivos, porque essa é uma questão jurídica e, portanto, só pode ser decidida pela corte. Ao júri, cabe decidir apenas sobre questão de fatos — isto é, se houve negligência da mascote “Sluggerrr” do Royals, que danos foram causados ao torcedor e, se houve danos, que indenização é cabível.

De acordo com a decisão do tribunal superior, no processo que ficou conhecido como o caso do “cachorro-quente voador” (flying hotdog), a lei realmente protege os organizadores de eventos esportivos contra “riscos inerentes” da atividade. No jogo de beisebol, por exemplo, o time não poderia ser responsabilizado por uma bola que atinge um torcedor na arquibancada — nem mesmo por um taco ou pedaço de taco — porque isso faz parte do jogo.

“As cortes já decidiram que espectadores não podem processar um time de beisebol por danos causados por uma bola que atinge as arquibancadas. Tais riscos são inevitáveis – e até desejáveis”, diz a decisão. Afinal, os torcedores se equipam com luvas de beisebol para tentar pegar as bolas lançadas na arquibancada.

O fundamento lógico por trás da doutrina da suposição do risco implícito — ou do risco inerente do torcedor ao assistir determinado evento esportivo — é o de que a entidade organizadora não pode remover tais riscos sem alterar materialmente a natureza do jogo que leva os espectadores aos estádios, explica a decisão.

“Tal fundamento não se aplica ao lançamento de cachorros-quentes para a torcida”, diz a corte. Quaisquer medidas tomadas para evitar acidentes provocados por cachorros-quentes não irão alterar, de maneira alguma, a natureza do jogo. O lançamento de cachorros-quentes é apenas uma promoção a mais do espetáculo, que também é feita em outros eventos, como em shows de rock ou de automobilismo. “Em alguns outros eventos, os organizadores fazem lançamentos de camisetas para promovê-los”.

“Portanto, o risco que o torcedor corre de ser atingido e ferido por um cachorro-quente voador não é inevitável, e não é um risco inerente do evento esportivo”, afirma a decisão. “Inerente significa estrutural ou envolvido na constituição ou essencial ao caráter de alguma coisa, pertencendo por natureza ou um hábito estabelecido”, diz o dicionário Webster, citado na decisão.

A mascote Sluggerrr faz lançamentos de cachorros-quentes, chamado de “Hotdog Launch” nos intervalos de jogos, usando uma espécie de arma de ar comprimido para lançá-los a pontos mais distantes da arquibancada. Aos torcedores mais próximos, a mascote faz os lançamentos com as mãos. Quando lançou um cachorro-quente em direção a Coomer, o torcedor estava distraído, olhando para o placar. E seu olho foi atingido em cheio pela salsicha voadora.

Em fevereiro de 2010, Coomer processou o clube por negligência e agressão. Alegou que a mascote não tomou os cuidados ordinários normais ao lançar o cachorro-quente na arquibancada, que o time não lhe deu o treinamento necessário sobre lançamento na arquibancada e também não supervisionou a ação de Sluggerrr. No julgamento, o funcionário que representa Sluggerrr admitiu que não foi treinado.

O tribunal superior anulou o julgamento de primeiro grau porque o lançamento de cachorros-quentes não é um “risco inerente” do evento esportivo e também porque o juiz errou ao instruir os jurados a decidir essa questão — uma questão jurídica, não uma questão de fatos.

Os EUA não têm um estatuto do torcedor, mas tem jurisprudência estabelecida sobre o assunto. Os jurados não têm conhecimento da jurisprudência e, portanto, não podem tomar uma decisão com base no que não conhecem.

“Os jurados decidem questões de fatos materiais, como questões sobre o que o demandante ou o demandado fizeram ou não fizeram, em que circunstâncias os fatos ocorreram e quais foram as consequências desses fatos. Tais questões podem ser difíceis de responder, mas, basicamente, há uma resposta certa e uma resposta errada para a escolha dos jurados. Porém, a questão sobre o risco inerente do torcedor ao lançamento de cachorros-quentes não tem uma resposta certa e uma resposta errada. É uma conclusão sobre um fato, não o próprio fato. Portanto, os jurados não decidem tais questões. Cabe aos tribunais decidi-las”, diz a decisão.

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