Mar de argumentos

Uma questão de pamprincipiologismo e outras frivolidades

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26 de junho de 2014, 16h18

Dá-se início à audiência. Pregão bonito… Daquele que dá gosto de ouvir.

Chama-se o autor, pessoa injustiçada que exerce sua pretensão no intuito de materializar ou ser restituído pelo descalabro promovido pela parte adversa.

Passa-se a chamar o réu — réu não, perdoe a minha falta de modos. Quero dizer, demandado. A palavra réu, como se sabe, vem do latim res, e res, significa coisa. Chamar alguém de réu nesta quadra da história seria o mesmo que atribuir a essa pessoa a qualificação de coisa, e nem preciso dizer o quanto isso fere a dignidade da pessoa humana.

Todos se sentam.

Não é preciso muito esforço para vislumbrar o que ali se apresenta. Cito: “sangue nos olhos”, sobrancelhas arqueadas, palavras balbuciadas, além, é claro, de “ótimas” intenções colocadas sobre a mesa — neste momento, confesso que uma famosa frase do psicanalista Agostinho Ramalho Marques Neto[1] me atingiu como um raio; mas voltemos ao que interessa.

Proposta a conciliação, esta resta infrutífera.

Fervorosas, as partes esperam os advogados se digladiarem em busca de uma brisa, uma lufagem, uma aragem, um soprozinho quase de nada daquilo que só pode ser chamado de justiça.

Não é assim que as coisas acontecem. O justo não vem da luta, vem do diálogo. Já dizia Habermas, coitado, idealista que naufragou na própria teoria, mas, enfim…

Apesar de toda a exaltação, resta claro que o problema não será resolvido naquele instante.

Não menos que de repente, uma voz magicamente profere os seguintes dizeres:

– Pela Ordem!

E tudo para…

Param as partes, param os advogados, para o juiz, para o pequeno estagiário que digita tudo, não deixa escapar nada, e aprecia a totalidade do que ali ocorre com contentamento. Para o relógio.

Não obstante, um dos causídicos se manifesta num ato quase heroico:

— Excelência, pelo Princípio da Economia Processual, gostaria de requerer o julgamento antecipado do processo, haja vista não haver necessidade de produção de nenhuma outra prova.

O magistrado, por sua vez:

— Perfeitamente, doutor. O processo vai para o meu gabinete para uma análise mais cuidadosa.

O outro advogado, sorrateiramente, acrescenta:

— Excelência, o colega tem razão. Então, pelo Princípio da Celeridade Processual, requeiro que o processo seja julgado neste instante.

O juiz retruca:

— Ora, doutores, não tenham pressa. Vocês vão e o processo fica. Eu, como exerço a Presidência desta audiência, e valendo-me do Princípio da Imparcialidade — haja vista a quantidade de laudas na defesa —, não tenho condições de decidir agora. Fica para depois.

Combativo, o primeiro advogado verbera:

— Excelência, com o perdão da palavra, o Princípio da Imparcialidade cabe ao senhor, e não a nós, de modo que pelos Princípios da Utilidade, da Necessidade, da Inafastabilidade do Controle Jurisdicional, o feito pode perfeitamente ser julgado agora.

Na mesma toada, o segundo advogado aventura-se:

— Nobre magistrado, o colega está correto. Corroborando sua argumentação teórica, devo dizer que, pelo Princípio da Adequação, os autos encontram-se prontos para apreciação imediata.

Incomodado, o juiz admoesta:

— Nobres advogados, pelo Princípio da Discricionariedade, eu acho melhor julgar numa ocasião mais adequada.

Ainda insatisfeito, o primeiro advogado continua:

— Mas, meritíssimo, o Princípio da Legalidade diz que o juiz só pode fazer aquilo que está previsto em lei, de modo que…

E o colega complementa:

— Isso é verdade Excelência, afinal, o que não é proibido, é permitido. Nós já cumprimos o disposto no Princípio da Cooperação Processual, então, permita-se sentenciar. Afinal, temos o dia todo, e não estamos com pressa.

Já impaciente, o juiz adverte:

— Senhores, esta é uma causa delicada. O Princípio da Sigilosidade impõe que eu tenha maiores cuidados ao tecer determinadas opiniões preliminares. Não obstante, devo rememorar a todos aqui presentes que o processo em questão é eletrônico, impondo-se, também, o Princípio da Proteção aos Dados Sensíveis.

Ainda não satisfeito, o primeiro causídico argumenta:

— Excelência, pelo amor de Deus! O Princípio da Hiperrealidade determina que o juiz da causa não deve ser subserviente a aparatos tecnológicos, devendo proferir a decisão quando a verdade se põe à vista.

O segundo defensor, por sua vez, bate na mesa e com uma voz intrépida diz:

— Quanta dificuldade, Excelência! Penso que, pelo Princípio da Transparência, o senhor deveria fazer isso agora. Por que não?

Já o colega, de forma extraordinária conclui:

— Isso é verdade, Meritíssimo. Até porque essa causa já causou muito aborrecimento, incômodo e tristeza. Penso que, pelos Princípios da Afetividade e da Felicidade, poderíamos sair todos satisfeitos daqui.

O estagiário, em delírio, posta instantaneamente no twitter:

“#Pamprincipiologismo#Partiu#Estocolmo#Brasil#2014”.[2]


[1] “Deus me livre da bondade dos bons”.

[2] Pamprincipiologismo é uma expressão cunhada pelo jurista Lenio Streck no livro O que é Isto – Decido Conforme Minha Consciência? Porto Alegre, Livraria do Advogado, 4ª. Ed. , 2014.

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