Revolução no Supremo

Conversa de um criminalista com o ministro Luís Roberto Barroso

Autor

  • Alberto Zacharias Toron

    é advogado criminalista mestre e doutor em Direito Penal pela USP ex-diretor do Conselho Federal da OAB; ex-presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (95/96); membro fundador do Instituto de Defesa do Direito de Defesa e professor de Processo Penal da Faap.

23 de junho de 2014, 15h53

Luís Roberto Barroso, constitucionalista e doutrinador respeitado muito antes de se tornar ministro da nossa Suprema Corte, com a erudição que lhe é peculiar, recordou o mito de Sísifo e fez um paralelo com o trabalho “sem fim” no STF. É como a pedra que é empurrada morro acima e, ao chegar no topo, rola de volta para baixo, num vai-vém interminável. Sísifo e, pela comparação, o próprio Supremo foi condenado ao absurdo trabalho “sem sentido e inconcluso”[1]. Será mesmo?

No que concerne às coisas do Direito Penal, o ministro Barroso já disse que o STF não pode ficar julgando um sem número de Habeas Corpus, ocupando-se do varejo das coisas da Justiça Penal, que são muitas e intermináveis. O STF deve se ocupar das grandes questões que tocam a cidadania. Essas palavras lembram-me as do querido professor Eros Grau quando em uma tarde modorrenta, ainda na 1ª Turma, e dizia que o Supremo parecia o extinto Tribunal de Alçada Criminal, Tacrim, que “só julgava Habeas Corpus”. Parecia, olhando de fora, que ele, entediado, contava os minutos para se aposentar. Penso que anos depois sua visão era outra sobre o Habeas Corpus e sua importância na proteção efetiva dos direitos fundamentas, coisa tão cara também ao ministro Barroso.

Não por acaso, no único livro onde o ministro Eros retratou sua curta, mas fecunda, passagem pelo STF, cuidou apenas de questões do Direito e Processo Penais. Reprisou a anotação feita no HC 95.916, do qual fora relator, e exprimiu a importância de o magistrado “afirmar a força normativa da Constituição e de conferir efetividade à dignidade do ser humano”[2]. O julgado retratava uma mulher em estado de saúde debilitado presa em estabelecimento prisional inadequado. O precioso trabalho de Eros, no livro e no Supremo, condensa casos, na grande maioria, de gente comum, submetida às vicissitudes do cárcere e do desrespeito ao devido processo legal em processos criminais ora por juízes equivocados, ora por déspotas nem sempre tão esclarecidos. Mais de 90% dos casos lembrados foram julgados em habeas.

Em Decisões de Cezar Peluso no Supremo Tribunal Federal[3], vamos ver que a grossa maioria dos casos lembrados cuida de matéria penal e processual penal ventilada em habeas. Valham-nos, por todos, o HC 82.959, relatado pelo ministro Marco Aurélio, impetrado por um preso em causa própria e que culminou no reconhecimento da inconstitucionalidade do regime integral para o cumprimento de pena, como estipulava a Lei dos Crimes Hediondos. Outro importante é o HC 94.016, relatado pelo ministro Celso de Mello, no qual se assegurou o direito de qualquer dos litisconsortes passivos formular perguntas aos corréus. Caro aos advogados é o HC 87.926, relatado pelo ministro Peluso, no qual o Pleno do STF sepultou a ideia de que o órgão do MP de segundo grau, por atuar como fiscal da lei, fala sempre por último. Se o MP é órgão recorrente seu representante falará em primeiro lugar. Eram casos comuns, de gente muitas vezes mais comum ainda e que, no entanto, colocaram balizas importantes na aplicação da lei e no funcionamento dos tribunais.

O ministro Gilmar Mendes, em seu Estado de Direito e jurisdição Constitucional (2002 – 2010)[4] também arrola uma infinidade de casos que atinam tanto com prisões provisórias em massa e apontam para o “esboço de Estado policial” (HC 91.435), como com a importância da garantia do devido processo legal. Assim, no julgamento do HC 91.514-1, concedido no caso da operação navalha para revogar a prisão preventiva de um dos investigados, o ministro assinalou que “a proteção dos cidadãos no âmbito dos processos estatais é justamente o que diferencia um regime democrático daquele de índole autoritária”. Em outra passagem, realça que a escorreita aplicação das garantias constitucionais “é que permite avaliar a real observância dos elementos materiais do Estado de Direito e distinguir civilização de barbárie”[5]. Nessa linha, lembra o escólio de Roxin, para quem “o Ddireito Processual Penal é o sismógrafo da Constituição, uma vez que nele reside a atualidade política da Carta Fundamental”[6].

Enfim, sem querer alongar a lista de casos em que o habeas tem sido apreciado e concedido pelo STF, não é demasiado lembrar julgados históricos que cuidaram da inépcia da denúncia e dignidade da pessoa (HC 102.477, relatado pelo ministro Gilmar Mendes); colocação indevida de algemas no réu durante o julgamento pelo Júri (HC 91.952, relatado pelo ministro Marco Aurélio) e a questão do acesso pelo advogado do investigado aos autos do inquérito policial gravado pelo sigilo (HC 82.354, relatado pelo ministro Sepúlveda Pertence).

À primeira vista, em todos esses casos, tínhamos o varejinho do crime; o dia a dia. Mas atrás deles se escondem grandes teses e que atinam com as garantias do cidadão diante do poder punitivo estatal. Portanto, o trabalho diário “dos casinhos”, embora invisível, faz muito sentido não apenas para os cidadãos beneficiados com as decisões do STF, como também, didaticamente, freia abusos e atitudes arbitrárias de agentes do Executivo, membros do próprio Judiciário e Ministério Público. Pretender afastar esses “casinhos” do Supremo Tribunal Federal equivale a dizer que a Corte renuncia ao seu papel de guardiã dos Direitos Fundamentais no campo do sistema penal. Pior: é preterir a regra clara — tomo a consagrada expressão de Arnaldo Cezar Coelho — constante do texto constitucional que lhe outorga competência para julgar recursos em habeas corpus (cf. artigo 102, inciso II, letra “a”). Ou seja, gostemos ou não, nosso STF não é apenas uma corte constitucional; julga inclusive ações penais originárias.

Outro aspecto é que, mesmo em uma corte constitucional como a espanhola, 96,58 % dos recursos julgados pelo Tribunal Constitucional espanhol (TC) são de Amparo[7] e destes muitos cuidam da quebra do devido processo legal. É verdade que se fala na Espanha de numa “hipertrofia” do Amparo, mas ele segue existindo e atua em todos os rincões do ordenamento jurídico.

Em resumo, revolução legítima no Supremo implica numa reforma da própria Constituição para que, em um debate amplo, os cidadãos sejam ouvidos, inclusive por meio dos parlamentares, órgãos de classe, associações, docentes etc. A não ser assim, teremos soluções autoritárias, ainda que vindas de gente reconhecidamente preparada. Parafraseando o professor Eros Grau: se os argumentos funcionalistas (excesso de processos, leia-se, de trabalho), prevalecerem sobre os normativos, “o perigo de juízos irracionais aumenta”[8]. É o que, pesa dizê-lo, estamos assistindo quando pela via interpretativa se amesquinha o habeas corpus, inclusive reavivando a proibição do manejo do habeas substitutivo do recurso, instituído pelo famigerado AI-6.

Por fim e para falar das flores, a faculdade de Direito da GV, Rio de Janeiro, conduziu um importantíssimo trabalho demonstrando, em síntese, que o grosso dos habeas que chegam ao Supremo decorrem decisões de Tribunais que desrespeitam entendimentos muitas vezes sumulados e, o que é pior, trazidos agora competentemente (e a rodo) pelas Defensorias Públicas dos Estados e da União. Sim, finalmente os pobres começam a chegar ao Supremo. Atravanca? Incomoda? Valha-nos a sábia advertência de Pontes de Miranda: “sempre que algum povo [ou regime] permite constrangimento à liberdade física sem a necessária tutela jurídica dos sofredores, começa a decadência ou a mudança violenta”[9].


[1] Conjur, em 21/6/14: Diante da possibilidade de inviabilização, Barroso pede revolução para o STF.

[2] Sobre a prestação jurisdicional – Direito Penal. São Paulo. ed. Malheiros, 2010, p. 11.

[3] São Paulo. ed. Saraiva, 2013.

[4] São Paulo. ed. Saraiva, 2011.

[5] STF; 2ª T.; j. em 11/3/08; DJe 15/5/08.

[6] Idem.

[7] Pablo Pérez Tremps, El recurso de amparo. Valencia: Tirant lo blanch, 2004, p. 23.

[8] Sobre a prestação jurisdicional, ob. cit, p. 17.

[9]História e prática do habeas corpus”, “História e prática do habeas corpus”, São Paulo, ed. Saraiva, 8ª ed., 1979, I/5.

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    é advogado criminalista, mestre e doutor em Direito Penal pela USP, ex-presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais e membro fundador do Instituto de Defesa do Direito de Defesa.

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