Princípios equilibrados

Novo CPC acerta ao manter efeito suspensivo em certas apelações

Autor

  • Dierle Nunes

    é advogado doutor em Direito Processual professor adjunto na PUC Minas e na UFMG e sócio do escritório Camara Rodrigues Oliveira & Nunes Advocacia (CRON Advocacia). Membro da Comissão de Juristas que assessorou na elaboração do Novo Código de Processo Civil na Câmara dos Deputados.

22 de junho de 2014, 9h01

Certo é que a celeridade do Poder Judiciário não pode ser buscada a qualquer custo. No tocante à reforma do CPC, o princípio da duração devida do processo deve ser interpretado em conjunto com os demais princípios do modelo constitucional, em especial, com a previsibilidade, efetividade normativa e segurança jurídica. Por essa razão, o CPC projetado aprovado na Câmara mostra-se prudente, na medida em que, apesar de manter o efeito suspensivo como regra na apelação, ampliou as hipóteses de exequibilidade da sentença. 

Na tramitação do novo CPC no Senado Federal, uma das discussões que certamente voltará a ser debatida trata da mantença da regra do efeito suspensivo automático para o recurso de apelação[1]. A redação da Câmara dos Deputados decepcionou alguns juristas, inclusive integrantes da comissão responsável pela elaboração do projeto no Senado, em face da tendência processual em vários países[2] de se permitir a executividade imediata das sentenças de primeiro grau.

Durante a tramitação legislativa foi muito recorrente o argumento de que a mantença do efeito suspensivo ope legis na apelação desvalorizaria o juízo de primeiro grau, com supervalorização dos sistemas recursais, gerando acúmulo de processos nos tribunais e morosidade. Tais assertivas costumam desprezar as altas taxas de reforma das sentenças (abaixo demonstradas) e o superficial debate para formação das mesmas, com o fortalecimento da importância do sistema recursal como viabilizador do contraditório como influência e não surpresa e da cooperação[3].

Como já tivemos oportunidade de pontuar, sob o enfoque da eficiência, o recurso se apresenta como uma ferramenta sistêmica contra as deficiências da cognição do órgão de origem, eis que já se percebeu, em outros países, que a falta de debate no “processo”, que tramita especialmente no juízo de primeiro grau, fomenta e torna necessário seu uso, uma vez que a possibilidade de erro judicial, ou que os argumentos das partes não sejam suficientemente analisados, potencializa a utilização de recursos com grande chance de êxito (acatamento pelo órgão ad quem). Ao passo que, quando a decisão é proferida com debate (com respeito ao processo constitucional), o uso dos recursos é diminuído, ou sua chance de êxito (reforma) é bastante diminuída, garantindo que técnicas de julgamento abreviado (por exemplo: julgamento liminar pelo juízo monocrático, art. 557) ou de executividade imediata da sentença não inviabilizem a obtenção de direitos fundamentais, eis que o primeiro debate, permitido no juízo de primeiro grau, com respeito efetivo aos princípios constitucionais (devidamente interpretados), com uma oralidade ou escritura levada a sério, garante uma participação e influência adequada dos argumentos de todos os sujeitos processuais[4].

Os críticos da opção da Câmara também negligenciam que o texto do CPC projetado traz inovações relevantes no que tange à exequibilidade imediata das sentenças, uma vez que o mesmo amplia significativamente as hipóteses em que a apelação será recebida apenas no efeito devolutivo, atribuindo inclusive maior força à jurisprudência consolidada dos tribunais superiores.

Nesse sentido, o CPC projetado permite que as sentenças proferidas com base em julgamento de casos repetitivos ou em súmulas vinculantes sejam executadas imediatamente e, a razão de que tal alteração denota, ao mesmo tempo, inovação e prudência do legislador.

Na atual sistemática do CPC brasileiro, a apelação é, como regra, recebida pelo tribunal tanto no efeito devolutivo quanto suspensivo. Essa previsão expressa no caput do art. 520 do CPC traz, no entanto, algumas situações excepcionais, dentre as quais destacamos a sentença que confirma ou deferea antecipação dos efeitos da tutela e a decisão que condena à prestação de alimentos, nas quais a apelação será recebida tão somente no efeito devolutivo.

Ocorre que há uma crescente preocupação no tocante à satisfação do direito de forma mais célere, sem a necessidade de se aguardar o julgamento dos recursos de segunda instância que, como se sabe, podem se arrastar por anos; especialmente pela atual regra de divisão de admissibilidade entre o juízo a quo e ad quem (aspecto que será alterado no CPC projetado, em seus arts. 1024 e 1025, pela transferência da admissibilidade para o órgão ad quem).[5]

Nesse contexto, seguindo as tendências do direito processual europeu, o anteprojeto do novo CPC do Senado buscou, no art. 908[6], eliminar a regra do efeito suspensivo ope legisnos recursos, consagrando a exequibilidade imediata das decisões, cabendo à parte demonstrar a alta probabilidade de provimento do recurso para atribuir-lhe efeito suspensivo.

O projeto na versão da Câmara, por sua vez, alterou a sistemática adotada no anteprojeto, para manter como regra a suspensão da eficácia da sentença diante da interposição da apelação, tratando como exceção as hipóteses de exequibilidade imediata.

É importante destacar que, ao contrário do que muito se alega, o projeto aprovado na Câmara não significa, em sua integralidade, a repetição da regra do atual CPC. Certo é que a grande inovação do projeto, no tocante a esse aspecto, se traduz na possibilidade de se conferir exequibilidade imediata às sentenças proferidas com base em entendimentos firmados em casos repetitivos ou súmulas vinculantes, eis que constituem hipóteses de cabimento da tutela da evidência.

No CPC projetado, uma das mais emblemáticas alterações trazidas é no sentido de que a evidência não precisa necessariamente partir do reconhecimento dos fatos e/ou do direito pela parte adversa ou da prova inequívoca constante nos autos, mas pode advir de jurisprudência consolidada.

Nesse sentido, veja-se que constitui hipótese de cabimento da tutela de evidência, nos termos do inciso II do art. 306, supra, quando “as alegações de fato puderem ser comprovadas apenas documentalmente e houver tese firmada em julgamento de casos repetitivos ou em súmula vinculante”.

Destarte, nos termos do art. 306, inciso II do CPC projetado, poderá ser concedida àsociedade, initio litis ou em qualquer outra fase processual, após demonstrada a existência do direito que se pleiteia e do princípio extraído da ratio decidendi do precedente indicado.

Trata-se de nítida aplicação da força dos precedentes, uma das premissas que norteia o CPC projetado, com o fim de se gerar estabilidade legítima do uso do direito jurisprudencial no Brasil.

Faz-se mister observar que essa nova hipótese terá impactos no tocante à efetividade processual, significando inovação muito maior do que uma análise fragmentada do dispositivo pode aparentar, até por se saber que o CPC somente pode ser interpretado em sua unidade e com respeito às suas normas fundamentais.

No art. 520, VII, do CPC vigente[7] está incluída expressamente como hipótese de ausência de efeito suspensivo a confirmação da antecipação de tutela na sentença. O STJ firmou o entendimento de que, mesmo que a tutela antecipada seja concedida na sentença, a apelação deve ser recebida, em regra, apenas no efeito devolutivo[8]. Hipótese consolidada no inc. V do art. 1025, CPC projetado.[9]

Partindo-se dessa percepção e, ao se relacionar o art. 1025 com o art. 306, de forma sistêmica, poderemos entender a extensão e expansão das inovações trazidas no CPC projetado, com o fortalecimento do sistema de executividade imediata das sentenças em hipóteses de estabilidade decisória. 

Posição prudente
Em suma, extrai-se de uma análise conjunta dos dispositivos que as sentenças proferidas com base nos casos repetitivos e súmulas vinculantes terão exequibilidade imediata. Concedida ou confirmada na sentença a tutela antecipada, extrai-se do art. 1025 que, no tocante a esse capítulo da sentença especificamente, a apelação será recebida apenas no efeito devolutivo.

Conclui-se, portanto que, havendo jurisprudência firmada em sede de casos repetitivos ou de súmula vinculante, permite-se seja concedida a tutela de evidência, e sendo esta confirmada ou concedida na sentença, se viabilizará a exequibilidade imediata.

Há de se pontuar que esta opção mais prudente da Câmara se deu em face das taxas de reforma atualmente existentes. Conforme dados do CNJ do Relatório Justiça em Números 2013, a taxa de reforma das sentenças em sede de apelação, considerada a totalidade dos Estados, é expressiva, o que reafirma o argumento já esposado de que admitir-se a exequibilidade imediata da sentença nos moldes como proposto pelo Senado pode por em risco a segurança jurídica: 

Tribunal de Justiça

Recursos das
decisões de 1Grau providos
por tribunais
estaduais em
Recurso de
Apelação (ainda
que parcial) 

Recursos das decisões de 1oGrau
providos por tribunais
estaduais em 
Agravos de
Instrumento 
(ainda que parcial)

Recursos de
Apelações j
ulgados pelos
tribunais
estaduais

Recursos
de Agravos de
Instrumento
julgados pelos
tribunais
estaduais

Reforma
de Decisão no 1o
Grau

Acre

250

20

1.026

70

24,6%

Alagoas

1.095

516

4.424

1.894

25,5%

Amazonas

54

395

183

65

181,0%

Amapá

488

O

1.371

477

26,4%

Bahia

O

O

O

O

nd

Ceará

1.625

279

5.081

1.164

30,5%

Distrito Federal

11.877

5.135

36.390

16.815

32,0%

Espírito Santo

2.916

1.587

11.714

6.344

24,9%

Goiás

4.589

2.360

4.782

7.420

56,9%

Maranhão

2.833

605

5.978

1.304

47,2%

Minas Gerais

55.518

41.986

111.340

67.572

54,5%

Mato Grosso do Sul

7.208

3.645

18.108

10.463

38,0%

Mato Grosso

5.052

3.345

10.766

5.815

50,6%

Pará

447

438

6.380

4.378

8,2%

Paraíba

3.370

1.206

10.309

3.742

32,6%

Pernambuco

4.397

1.497

14.707

5.741

28,8%

Piauí

324

316

537

178

89,5%

Paraná

18.165

15.268

44.453

40.965

39,1%

Rio de Janeiro

nd

nd

94.332

36.556

nd

Rio Grande do Norte

3.564

1.328

9.221

3.606

38,1%

Rondônia

2.535

978

6.447

3.404

35,7%

Roraima

O

O

O

2

0,0%

Rio Grande do Sul

70.696

44.026

192.847

122.562

36,4%

Santa Catarina

25.945

5.328

63.227

19.505

37,8%

Sergipe

nd

nd

nd

nd

nd

São Paulo

147.867

46.703

439.472

145.847

33,2%

Tocantins

891

310

2.979

2.310

22,7%

Justiça Estadual

371.706

177.271

1      1.096.074

508.199

37,3%

Fonte: Justiça em Números 2012.[10]
Obs: nd significa que o dado não está disponível. 

A tabela acima demonstra que, em um universo de 1.096.074 processos, houve o provimento do recurso em 371.706, considerando o número de processos reformados parcialmente. Ora, o percentual de aproximadamente 33,9% de reforma da sentença no Tribunal de 2ª Instância não pode ser desprezado quando da análise da viabilidade ou não de, no atual cenário do Judiciário brasileiro, dar fim ao efeito suspensivo automático da apelação. Em especial, merece destaque o índice de reforma do Tribunal do Piauí que, conforme revela a tabela acima, alcança o percentual de 89,5%!

Certo é que a celeridade do Poder Judiciário não pode ser buscada a qualquer custo. No tocante à reforma do CPC, o princípio da duração devida do processo deve ser interpretado em conjunto com os demais princípios do modelo constitucional, em especial, com a previsibilidade, efetividade normativa e segurança jurídica. Por essa razão, o CPC projetado aprovado na Câmara mostra-se prudente, na medida em que, apesar de manter o efeito suspensivo como regra na apelação, ampliou as hipóteses de exequibilidade da sentença.

Caso se consolide com o tempo no Brasil um modelo de cognição de primeiro grau mais dialógico e um quadro de estabilidade decisória, como a implementação do novo CPC tenta auxiliar (em sua nova cognição e na parte de precedentes), poderá ser defensável, no futuro, que não se cogite de efeito suspensivo automático do recurso de apelação, pois a esmagadora maioria das decisões estarão em consonância com a jurisprudência dominante e/ou as taxas de reforma das sentenças se tornarão baixas.

Quando essa for a realidade, não vemos razões para impedir a execução imediata das sentenças. Por ora, acreditamos que, extirpar o efeito suspensivo do recurso de apelação apenas nos casos fundados em jurisprudência consubstanciada em recursos repetitivos ou súmulas vinculantes, além das outras hipóteses casuisticamente apontadas, se mostra a opção mais prudente e adequada.

Perceba-se, por derradeiro, que o novo CPC servirá a todo o país de modo que a solução deve possuir uma abrangência sistêmica e menos arriscada.

 


[1] Este texto foi coescrito com Michel Pires e Luana Godinho e representa uma síntese do argumento desenvolvido em outra sede: NUNES, Dierle; PIRES, Michel Hernane Noronha; GODINHO,  Luana Veloso Gonçalves. Executividade imediata da sentença: evolução no CPC Projetado e técnica decisória de ressalva de entendimento. FUX, Luiz et al (org.). Novas tendências de processo civil. Salvador: Jus podivm, 2014. Vol. 4. (no prelo)

[2] Art. 456. 1, ESPANHA, Ley de Enjuiciamiento Civil. Disponível em: <http://civil.udg.es/normacivil/estatal/lec/art/a456.htm>. Acesso: 5 jun. 2012."Art. 28, ITÁLIA. Codice de proceduracivile. Disponível em: <http://www.studiocataldi.it/codiceproceduracivile/librosecondo-i-procedimento-tribunale.asp>. Acesso: 5 jul. 2012.Art. 647º, Novo CPC Português. Lei n.º 41/2013, Diário da República, 1.ª série — N.º 121 — 26 de junho de 2013.

[3] NUNES, Dierle. O recurso como possibilidade jurídico discursiva das garantias do contraditório e da ampla defesa. Belo Horizonte: PUCMINAS, 2003. Em versão publicada: NUNES, Dierle. Direito constitucional ao recurso. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 167-168. Nunes, Dierle. Processo Jurisdicional democrático. Curitiba: Juruá, 2008.NUNES, Dierle et al. Curso de direito processual civil: Fundamentação e aplicação. Belo Horizonte: Fórum, 2013.

[4] NUNES, Dierle et al. Curso de direito processual civil: Fundamentação e aplicação. cit.

[5] Em consonância com o enunciado 99 do II Encontro de Jovens processualistas: “(art. 1.023, §3º) O órgão a quo não fará juízo de admissibilidade da apelação. (Grupo: Ordem dos Processos no Tribunal, Teoria Geral dos Recursos, Apelação e Agravo)”

[6] Art. 908. Os recursos, salvo disposição legal em sentido diverso, não impedem a eficácia da decisão.§ 1º A eficácia da sentença poderá ser suspensa pelo relator se demonstrada probabilidade de provimento do recurso.
§ 2º O pedido de efeito suspensivo durante o processamento do recurso em primeiro grau será dirigido ao tribunal, em petição autônoma, que terá prioridade na distribuição e tornará prevento o relator.”

[7] Art. 520. A apelação será recebida em seu efeito devolutivo e suspensivo. Será, no entanto, recebida só no efeito devolutivo, quando interposta de sentença que: (Redação dada pela Lei nº 5.925, de 1º.10.1973)
VII – confirmar a antecipação dos efeitos da tutela; (Incluído pela Lei nº 10.352, de 26.12.2001)

[8] Veja-se:NUNES, Dierle. Da possibilidade de deferimento da antecipação de tutela na sentença – Do recurso cabível e dos efeitos a serem atribuídos. In NERY JR., Nelson; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (Coord.). Aspectos polêmicos e atuais dos recursos cíveis e assuntos afins. Vol 11. São Paulo: RT, 2007, p. 48-50. Idem STJ, AgRg no Ag 1217740/SP, Rel. Min. Sidnei Beneti, DJe 01.07.2010.

[9] Art. 1.025. A apelação terá efeito suspensivo.  § 1º Além de outras hipóteses previstas em lei, começa a produzir efeitos imediatamente após a sua publicação a sentença que: V – confirma, concede ou revoga tutela antecipada; 

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  • Brave

    é advogado, doutor em Direito Processual, professor adjunto na UFMG e PUCMinas e sócio do escritório Camara, Rodrigues, Oliveira & Nunes Advocacia.

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