Observatório Constitucional

Tensões entre o local e o global no
âmbito do Supremo Tribunal Federal

Autor

  • Christine Oliveira Peter da Silva

    é mestre e doutora em Direito Estado e Constituição pela UnB professora associada do mestrado e doutorado em Direito das Relações Internacionais do UniCeub assessora do ministro Edson Fachin (STF) e membro do Centro Brasileiro de Estudos Constitucionais (CBEC).

21 de junho de 2014, 8h01

As tensões entre normas constitucionais e normas internacionais e as suas consequências para a vida dos cidadãos de um determinado Estado Constitucional evidenciam a importância de se discutir este tema na atualidade.

Não é por acaso que esta semana reuniram-se, em Oslo, na Noruega, os membros da Associação Internacional de Direito Constitucional em um Congresso Mundial que tinha como proposta de tema geral: “Os desafios constitucionais – entre o global e o local”.[1]

É evidente que não mais se sustenta o conceito clássico e a vivência tradicional do Estado-Nação, como expressão da soberania, tal como compreendido historicamente pelas civilizações ocidentais desde o século XVIII. No século XXI, está cada vez mais assente que a base das identidades locais está muito relacionada à relação entre o universal e o particular, entre o todo e as partes.

O que tem movimentado a reflexão constitucional mundo afora, nas últimas décadas, é o pressuposto de que a fragilidade do conceito de ‘Estado Soberano’ apresenta-se uma realidade muito próxima, de modo que se revela importante e pertinente a revisitação dos elementos clássicos do Estado-Nação, o que pode instigar curiosidade acerca dos desdobramentos do que se convencionou chamar de Estado Constitucional Cooperativo.[2]

Numa tentativa sintetizadora de suas ideias acerca do modelo de Estado Constitucional Cooperativo, Peter Häberle apresenta a imagem do Estado Constitucional contemporâneo como aquela da comunidade universal dos Estados Constitucionais, ou seja, um contexto em que os Estados Constitucionais não existem mais para si mesmos, mas, sim, como referências para os outros Estados Constitucionais membros de uma comunidade.

Acredito que somente uma concepção instrumental de soberania pode justificar qualquer exercício de poder. Nesse sentido, compartilho com Markus Kotzur, aluno de Peter Häberle, a ideia de soberania como um conceito que se funda na autodeterminação do ser humano como elemento central de sua própria dignidade e de seu papel como cidadão ativo do Estado Constitucional.[3]

Isso quer dizer que assim como o Estado existe para o ser humano e o poder nele exercido deve sempre estar limitado pelo paradigma humanista[4], a soberania existe a favor da liberdade, não podendo ser utilizada como escudo contra os direitos humanos garantidos pela ordem internacional.

Os pactos internacionais de direitos humanos, tal como a Carta Europeia de Direitos Humanos, concretizam e dão mais força à ideia de soberania. Isso porque, do ponto de vista dos direitos humanos, a soberania não está definida pelo poder ilimitado do Estado, mas por uma atuação dos poderes internos do Estado em direção à concretização dos direitos humanos.

O possível reconhecimento de que o Estado Constitucional contemporâneo não mais é soberano, em face de suas inserções no plano da comunidade mundial, não tem o condão de desnaturar o seu papel nesta comunidade internacional, num exercício de autorreconhecimento contínuo, não mais pela força de seus exércitos, mas pela força de suas pautas institucionais e culturais influenciadoras das práticas globalizadas.

O julgamento dos RE 466.343, RE 349.703 e HC 87.585 foi o mais emblemático da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal para exemplificar como a Corte Suprema brasileira tem enfrentado a questão da tensão entre Direito Constitucional e Direito Internacional, bem como da necessária e permanente dialética entre o local e o global, no que diz respeito à eficácia das normas jurídicas nacionais e internacionais.

O receio por parte de alguns ministros do Supremo Tribunal Federal de que o reconhecimento de eficácia às normas internacionais poderia conduzir ao enfraquecimento da própria identidade nacional ficou evidente em seus votos.

O ministro Cezar Peluso, relator do RE 466.343, anotou com precisão a questão debatida: aferir se a possibilidade de prisão civil, inerente à ação de depósito, numa expressa exceção constitucional, poderia ser estendida ao devedor fiduciante, equiparado a depositário infiel pela legislação infraconstitucional brasileira.

Como é possível notar da descrição feita pelo ministro Peluso sobre o objeto da discussão jurídica posta, ele não visualizou, no RE 466.343, discussão relevante acerca da incidência (ou não) das normas internacionais no caso, de modo que o seu voto foi no sentido da impossibilidade de equiparação da alienação fiduciária em garantia ao contrato de depósito. Com isso, o ministro Peluso recusou a necessidade de se invocar o Pacto de San José dd Costa Rica para afastar a prisão civil do devedor fiduciante.

Verifica-se que, muito embora o ministro Peluso tivesse consciência da tensão existente entre os ordenamentos interno e internacional no caso, a sua opção inicial foi por pautar e resolver a questão a partir de outros aspectos.

Por outro lado, o ministro Gilmar Mendes, em longo voto-vista sobre o tema, preferiu enfrentar a questão da tensão entre normas internacionais e normas internas desde logo, sustentando a tese de que os tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil eram dotados de natureza jurídica supralegal, com o poder de revogar a legislação infraconstitucional com eles incompatível, não importando se tal legislação fosse anterior ou posterior ao ato de ratificação.

Com esse raciocínio, aduziu o ministro Gilmar Mendes que desde a ratificação pelo Brasil, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (especialmente seu artigo 11) e da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica – artigo 7º, 7) não haveria mais fundamento legal para a prisão civil do depositário infiel. Como conclusão, posicionou-se o ministro Gilmar Mendes no sentido de que o caráter supralegal dos diplomas normativos internacionais implicava a paralisação da eficácia das normas infraconstitucionais com eles incompatíveis, de modo que, desde o ano de 1992, não mais havia base legal para a prisão civil do depositário infiel no Brasil.

A ministra Carmen Lúcia acompanhou as teses centrais, tanto do voto do ministro Cezar Peluso (a da não equiparação da situação de devedor fiduciante com a de depositário infiel) quanto do ministro Gilmar Mendes (a da impossibilidade — em face do princípio da proporcionalidade — de se dar interpretação extensiva às normas que restringem/limitam a liberdade). Não firmou posição específica sobre a natureza das normas de Direito Internacional e sua possível tensão com a legislação infraconstitucional nacional.

O ministro Ricardo Lewandowski, na mesma linha da Ministra Carmen Lúcia, também acompanhou os votos dos ministros Cezar Peluso e Gilmar Mendes, reafirmando a distinção ontológica entre os dois negócios jurídicos em questão (contrato de depósito e alienação fiduciária em garantia), bem como a proibição de interpretação dada às restrições que se colocam aos direitos e liberdades individuais.

Já o ministro Joaquim Barbosa, em seu voto, partiu da premissa de que, se a Constituição Federal de 1988 não incluiu expressamente a alienação fiduciária em garantia entre as exceções à vedação da prisão civil por dívida, não poderia o legislador ordinário fazê-lo. Explicou que o fato de se estar diante da liberdade individual (“talvez a mais preciosa das liberdades fundamentais do ser humano”) inibia a conformação restritiva que o legislador ordinário impôs no caso concreto em discussão. Por fim, acompanhou o voto do relator, mas sustentou que a primazia conferida pelo sistema constitucional brasileiro à dignidade da pessoa humana induzia, diante de um conflito entre normas internas e normas internacionais, a que fosse dada preferência à norma mais favorável ao indivíduo.

O ministro Ayres Britto, por sua vez, reafirmou a tese de que as duas ressalvas contidas no artigo 5º, LXVII, da Constituição de 1988 devem ser interpretadas restritivamente, ou seja, ele também não admitiu a possibilidade de equiparação do depositário infiel ao devedor fiduciante por interpretação analógica. Mas, diante da tese da supralegalidade dos tratados internacionais, afirmou que “quando uma lei ordinária versa para proteger um tema tratado pela Constituição como direito fundamental se torna bifronte ou ambivalente. Ela é ordinária formalmente, porém é constitucional materialmente, daí a teoria da proibição de retrocesso.”

Com essa observação, o ministro Carlos Britto posicionou-se pela afirmação dos Direitos Humanos e sua prevalência no ordenamento jurídico nacional, ainda que se considerassem as normas de Direito Internacional apenas como leis ordinárias. Foi uma posição marcada pela diplomática posição de que pouco importa o reconhecimento formal de hierarquia constitucional ou supralegal às normas de Direito Internacional de Direitos Humanos, tendo em vista que tais normas devem ser consideradas pelo Estado e Sociedade brasileiras como integrantes de seu patrimônio jurídico e social.

Relembrando a história da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal quanto ao tema, o ministro Marco Aurélio reafirmou seu voto (vencido no Plenário da Corte, em sua composição anterior) no sentido de que, ainda que fosse possível confundir a figura do devedor fiduciante com a figura do depositário infiel (premissa com a qual ele jamais concordara), o fato de o Brasil ter assinado o Pacto de San José da Costa Rica implica a suplantação da legislação regulamentadora do texto constitucional quanto ao depositário infiel.

A posição de Marco Aurélio foi no sentido de prestigiar a da força normativa das normas internacionais de direitos humanos como, no mínimo, normas supralegais, a qual teria o condão de recusar vigência a qualquer norma infraconstitucional com ela incompatível.

O ministro Celso de Mello, por fim, relembrou a existência de quatro correntes acerca da natureza jurídica dos tratados internacionais sobre direitos humanos: 1ª) a da supremacia e prevalência das normas internacionais sobre o ordenamento jurídico nacional, inclusive constitucional; 2ª) a do status de norma constitucional às normas internacionais que versem sobre direitos humanos; 3ª) a da paridade normativa entre normas de direito internacional e a legislação infraconstitucional interna (posição que prevalecia no Supremo Tribunal Federal até então); e, por fim, a corrente defendida pel ministro Gilmar Mendes em seu voto, 4ª) a do caráter supralegal das normas internacionais em matéria de direitos humanos.

Celso de Mello posicionou-se no sentido da segunda corrente, afirmando que as normas internacionais de direitos humanos sempre têm natureza constitucional, pois integram o rol de direitos e garantias fundamentais por expressa disposição constitucional.

Entretanto, o debate sobre a tensão entre os ordenamentos interno e internacional está longe de uma posição consolidada do Supremo Tribunal Federal, pois a maioria dos ministros cuidou da questão aqui posta para reflexão apenas de forma tangencial e indireta. Não se pode deixar de registrar, entretanto, que o voto do ministro Celso de Mello no RE 466.343 recebeu posição convergente de mais três ministros, por ocasião do julgamento do HC 87.585, em que a mesma questão, porém com algumas diferenças circunstanciais, foi discutida.[5]

Trata-se de um tema que instiga a renovação, o risco, o novo em matéria de Direito Constitucional. Se o Estado Constitucional clássico já não consegue lidar com as questões de forma tradicional, por meio de suas vetustas teorias e de suas soluções requentadas, o julgamento comentado demonstra que é preciso revisitar as velhas fórmulas interpretativas, é urgente repensar o que significa segurança jurídica e ordenamento constitucional e qual o papel das instituições nacionais nesse debate.

Soberania não pode significar blindagem contra as dificuldades que o reconhecimento de direitos humanos possam induzir nos diversos sistemas constitucionais pátrios. É necessário encontrar novos mecanismos para enfrentar os problemas práticos que a experiência globalizada pode encetar. Nesse sentido, a decisão do Supremo Tribunal Federal, nos referidos precedentes, inequivocamente representou um avanço em relação ao posicionamento anterior da Corte, mas ainda merece desdobramentos jurídicos, políticos e sociais. É isso que estamos vivendo e participando como interlocutores qualificados do processo em construção.

Na verdade, ao assumir a dialética entre os modelos políticos do Estado de Direito clássico, marcadamente legislativo, e o Estado Constitucional Cooperativo, com suas inevitáveis tensões entre as funções do Poder; bem como a tensão entre normas nacionais e as de direito internacional, enfim, entre o local e global, está-se afirmando que há muitas facetas da ‘crise saudável’ que experimenta a própria ideia de Estado (num plano mais abrangente) e de Constituição (num contexto mais específico), bem como dos ativismos políticos evidenciados neste século XXI.

Não há como justificar posições teóricas consolidadas como verdades inquebrantáveis nem muito menos defender arduamente soluções reducionistas para problemas complexos, pois somente a dinâmica da experiência compartilhada, das tensões enfrentadas, dos casos concretos difíceis apresentados é que poderá conduzir-nos para o caminho de nossa própria história.


[1] Trata-se do IX Congresso Internacional de Direito Constitucional patrocinado pela Associação Internacional de Direito Constitucional que ocorreu entre 16 e 20 de junho de 2014, na cidade de Oslo, na Noruega. As informações sobre o Congresso Mundial estão disponíveis em: http://www.iacl-aidc.org/en/events/forthcoming-events/103-oslo-congress-oslo-congress-16-20-june-2014. Acessado em 16/06/14.
[2] Para o conceito de Estado Constitucional Cooperativo vide: HABERLE, Peter. El estado constitucional, trad. Hector Fix-Fierro. México : UnAM, 2003, p 68.
[3] Kotzur, Markus. La soberanía hoy. Palabras clave para un diálogo europeo-latinoamericano sobre un atributo del Estado constitucional moderno. In: Haberle, Peter; Kotzur, Markus. De la soberanía al derecho constitucional común: palabras clave para un diálogo europeo-latinoamericano, Trad. Héctor Fix-Fierro. Mexico : Instituto de Investigaciones Jurídicas de la UNAM, 2003, p. 111.
[4] Neste particular Markus Kotzur faz referência expressa a Hermann Heller em sua obra: Teoria del Estado, Trad. Luis Tobio. México : Fondo de Cultura Econômica, 2002.
[5] Também reconheceram natureza constitucional aos tratados internacionais de direitos humanos a Ministra Ellen Gracie, o Ministro Eros Grau e o próprio Ministro Cezar Peluso, que tinha ficado sem posição definida na primeira assentada. Vale registrar que todos eles atualmente são ministros aposentados do STF.

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