Aniversário ilustre

Manoel Gonçalves Ferreira Filho — as oito décadas de um constitucionalista

Autores

  • José Levi Mello do Amaral Júnior

    é professor associado de Direito Constitucional da USP professor do mestrado e do doutorado em Direito do Ceub livre-docente doutor e mestre em Direito do Estado procurador da Fazenda Nacional cedido ao TSE e secretário-geral da Presidência do TSE.

  • Carlos Bastide Horbach

    é advogado em Brasília professor doutor de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da USP e professor do programa de mestrado e doutorado em Direito do UniCEUB.

  • Roger Stiefelmann Leal

    é professor doutor de Direito Constitucional na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo visiting scholar na Harvard Law School (2019) e doutor em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo.

21 de junho de 2014, 11h11

Neste dia 21 de junho, completa 80 anos um dos mais importantes autores do Direito Constitucional brasileiro. Nascido em 1934, graduou-se pela Faculdade de Direito da USP em 1957, seguindo imediatamente para os estudos de pós-graduação na Universidade de Paris — ainda não dividida, por números, em várias unidades —, onde obteve em 1960, sob orientação do célebre doyen Georges Vedel, o título de doutor em Direito, o que não era comum no Brasil de então.

De volta a São Paulo no início da década de 1960, desenvolveu sua atividade advocatícia aliada à vida acadêmica, inicialmente na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, depois, na sua Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, pela qual se tornou livre docente em Direito Constitucional no ano de 1964, defendendo tese intitulada O Estado de Sítio.[1]

Em 1969, ante a aposentadoria de Candido Mota Filho, concorreu à cátedra de Direito Constitucional na Faculdade de Direito da USP, vencendo — com a já clássica tese Do processo legislativo (Saraiva, 7a edição, 2012) — concurso de que também participaram outros três renomados juristas: José Loureiro Junior, José Luiz de Anhaia Mello e José Afonso da Silva.[2] Assim, aos 35 anos, tornava-se Manoel Gonçalves Ferreira Filho professor titular da mais tradicional escola jurídica brasileira.

Nos 35 anos seguintes, até sua aposentadoria compulsória em 2004, desenvolveu em toda sua plenitude as atividades de professor: lecionou na Graduação e no pioneiro Curso de Pós-Graduação em Direito da USP, bem como em universidades europeias; orientou dezenas de mestrandos e doutorandos, formando uma rede de discípulos que se estende por todo o Brasil e pelo exterior; publicou mais de 20 trabalhos monográficos e centenas de artigos em revistas científicas brasileiras e estrangeiras; atuou como palestrante e parecerista; e foi o mais jovem diretor da Faculdade de Direito da USP e presidente do Conselho Federal de Educação. Em 1998, foi agraciado com o título de doutor honoris causa pela Universidade de Lisboa, passando a integrar um seleto grupo de acadêmicos como Duguit, Josserand, Gilberto Freyre, entre outros.

Ao lado de suas atividades acadêmicas e na advocacia, Manoel Gonçalves Ferreira Filho também desempenhou importantes cargos políticos e administrativos na república brasileira, inclusive respondendo pelo Ministério da Justiça e exercendo, por um mandato, as funções de vice-governador do estado de São Paulo. Foi, em diferentes ocasiões, secretário de Estado em São Paulo e chegou a exercer o cargo de senador da República.

Aposentado, Manoel Gonçalves Ferreira Filho continuou a atuar na Faculdade de Direito da USP, mantendo, até o presente momento e para a felicidade de seus alunos, as aulas na pós-graduação stricto sensu e a orientação de novas dissertações e teses. Em 2009, recebeu, por deliberação da Congregação da Faculdade de Direito da USP, o título de professor emérito.

Dentre seus orientandos de Doutorado e de Mestrado, destacam-se: o atual presidente do Tribunal de Justiça do estado de São Paulo, José Renato Nalini (Doutorado e Mestrado); o atual presidente do Tribunal de Justiça Militar do estado de São Paulo, Paulo Adib Casseb (Doutorado); uma ex-procuradora-geral do estado de São Paulo, Anna Cândida da Cunha Ferraz (Doutorado e Mestrado); o atual procurador-geral do estado de São Paulo, Elival da Silva Ramos (Doutorado); vários professores titulares, como Alvacir Alfredo Nicz, da UFPR (Doutorado e Mestrado), Cezar Saldanha Souza Junior, da UFRGS (Doutorado e Mestrado) e Elival da Silva Ramos, da USP (Doutorado); o atual diretor da Escola Judicial da Costa Rica, Marvin Carvajal Pérez (Doutorado); e vários desembargadores, juízes, procuradores, advogados e professores de diversas instituições de ensino superior.

Essa simples e sintética descrição dos importantes feitos desse jurista, porém, não permite caracterizar, em toda grandeza, sua personalidade e sua influência para o constitucionalismo brasileiro.

Manoel Gonçalves Ferreira Filho é um pesquisador incansável, dedicado “ao estudo e à meditação”, que se mantém atento e atualizado em relação às diferentes tendências do Direito Constitucional ocidental. Por outro lado, é um agudo crítico dessas mesmas tendências, sabendo delas retirar o que têm de relevante e denunciando, sempre com fina ironia, o que têm de embuste. É um raro caso em que, para utilizar a conhecida frase de Pascal que ele mesmo cita com frequência, a “cabeça bem cheia” e a “cabeça bem feita” se completam perfeitamente.

Pensador articulado e independente, pode se dar ao luxo de repudiar o “politicamente correto”, em nome da verdade e da precisão da análise jurídica e histórica. Nesse sentido, por exemplo, não deixa de lembrar autores clássicos brasileiros quando analisa a teoria dos princípios ou de mencionar referências centenárias quando do exame das supostas novidades do chamado neoconstitucionalismo.[3]

A profundidade e a erudição de suas reflexões, porém, não são camufladas por uma linguagem hermética, uma vez que tem Manoel Gonçalves Ferreira Filho a clareza de exposição e de escrita característica daqueles que dominam, com maestria, o assunto de que tratam. Esse traço de suas obras faz com que seja um autor amplamente acatado nos cursos de Graduação, estando seu Curso de Direito Constitucional na 39a edição. É curioso ver os jovens alunos do primeiro semestre da Faculdade de Direito da USP se referirem com familiaridade ao “livro do Manecão”, como descontraída e carinhosamente chamam o lendário professor titular de Direito Constitucional, mesmo sem o conhecer pessoalmente.

Tendo percorrido todos os assuntos do Direito Constitucional, é possível identificar na obra de Manoel Gonçalves Ferreira Filho um tema central: a democracia. Uma simples revisão dos títulos de suas obras monográficas indica essa preocupação constante com o tema da democracia. Seus livros dedicam-se, por exemplo, a questões como a defesa do Estado e das instituições democráticas (o já mencionado O estado de sítio, 1964), os organismos partidários (Os partidos políticos nas Constituições Democráticas, 1966), o processo de elaboração das leis (Do processo legislativo, 1968) ou as condições de governo das democracias contemporâneas (Constituição e Governabilidade, 1995), sem mencionar as outras obras específicas sobre a democracia, como A democracia possível (1972), Sete vezes democracia (1977), A reconstrução da democracia (1979) e A democracia no limiar do século XXI (2001).

Nesse último livro, que o autor considera um possível encerramento do ciclo iniciado com A democracia possível, faz ele um comentário cuja reprodução se impõe, como indicativo de sua preocupação com o tema e da polêmica que suas opiniões despertam:

“É, sem dúvida paradoxal (e para mim supinamente injusto) que um pensamento nuclearmente democrático, preocupado com a análise do que favorece, ou desfavorece, a sua concretização, tenha sido — como ainda é — apontado como antidemocrático, ‘fascista’ ou coisa parecida por parte da intelligentsia brasileira. Talvez decorra isso de não ser ela muito inteligente e por isso incapaz de compreender o que não se enquadra na vulgata que repete piamente. Mais provavelmente, isto resulta de seu viés marxista, ou, ao menos, marxisante. E nisto está outro paradoxo porque, como Marx não foi um democrata, nem em seu pensamento há lugar do governo pelo povo, os anti-democratas são eles…”.[4]

Não se poderia, por fim, redigir um texto sobre Manoel Gonçalves Ferreira Filho sem indicar uma de suas mais marcantes qualidades, a generosidade.[5] Mesmo sendo um acadêmico renomado, um jurista reconhecido, não deixa de ter atenção para com seus alunos, costuma citá-los em suas obras e com eles discute suas ideias de modo aberto e franco. Não se coloca em posição olímpica, tão comum no ambiente universitário brasileiro, no qual ainda prevalece a máxima do magister dixit, mas, sim, aprecia a convivência com seus discípulos, que considera verdadeiros colegas, quando não amigos.

Essa qualidade se projeta, ainda, em outra iniciativa que merece ser destacada: o Instituto Pimenta Bueno — “Associação Brasileira dos Constitucionalistas” e seus Encontros Nacionais de Direito Constitucionais. Liderado por Manoel Gonçalves Ferreira Filho, o instituto tem ensejado ambiente fértil de debates sobre os mais variados temas do Direito Constitucional contemporâneo, permitindo que alunos e professores da Faculdade e de outras instituições possam tomar contato com o pensamento de importantes constitucionalistas brasileiros e estrangeiros. Nesse sentido, lança mão do prestígio que conquistou em âmbito nacional e internacional em benefício da comunidade acadêmica de São Paulo e do Brasil.

Talvez seja por tudo isso que, aos 80 anos, Manoel Gonçalves Ferreira Filho permaneça jovem, inspirando em seus alunos e admiradores a certeza de que, em sua companhia, têm um brilhante futuro pela frente. E isso é razão bastante para comemorar!


[1] Sobre a tese de livre-docência em questão, José Afonso da Silva faz as seguintes considerações: “Com o curso de doutoramento na França, (…), aprendeu ele [Manoel Gonçalves Ferreira Filho] a metodologia precisa dos franceses para a realização de obras jurídicas que aplicou já nessa sua monografia, com boa organização doutrinária.” (A Faculdade e meu itinerário constitucional. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 610).

[2] Ainda segundo José Afonso da Silva, comportava-se como “vencedor do concurso o Professor José Luiz de Anhaia Mello”(cf. A Faculdade e meu itinerário constitucional, p. 611), o que demonstra a surpresa com que se deu a vitória do jovem professor de 35 anos.

[3] Para um exemplo dessas percucientes análises, ver o artigo “Notas sobre o direito constitucional pós-moderno, em particular sobre certo neoconstitucionalismo à brasileira”. Revista de Direito Administrativo, vol. 250, 2009, disponível em:

http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/4141/2923

[4] Manoel Gonçalves Ferreira Filho. A democracia no limiar do século XXI, São Paulo: Saraiva, 2001, p. XI.

[5] Generosidade que se manifesta inclusive em relação a possíveis concorrentes, como narra José Afonso da Silva: “Exercia, então, o cargo de Chefe de Gabinete da Secretaria do Interior, quando numa manhã, recebi um telefonema do Maneco, comunicando-me que o Diário Oficial do Estado tinha publicado naquela manhã o edital daquele concurso [de Catedrático de Direito Constitucional da USP]. E, como ele sabia que eu tinha interesse em concorrer, estava me avisando da abertura do concurso pelo prazo de um ano para inscrição. O Maneco foi muito correto comigo, fazendo essa comunicação, sabendo que eu seria um de seus concorrentes. Jamais deixei de reconhecer esse cavalheirismo do meu colega de turma.” (cf. A Faculdade e meu itinerário constitucional, p. 609). Em pelo menos duas outras passagens, José Afonso da Silva aponta a correção de Manoel Gonçalves Ferreira Filho: quando lhe avisou que teria sua inscrição impugnada em concurso para provimento do cargo de Professor Titular de Direito Processual Civil e quando ele próprio, Manoel Gonçalves Ferreira Filho, impugnou tal impugnação, afastando, na Congregação da Faculdade de Direito, qualquer óbice à participação do antigo colega no certame (cf. A Faculdade e meu itinerário constitucional, p. 616).

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