Direito Comparado

Homens vestidos de Harry Potter e homem da gola rolê: terá futuro a universidade?

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Junior

    é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP) com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

18 de junho de 2014, 8h00

Spacca
Cena 1: O homem de gola rolê e a cerimônia estilo Harry Potter
O calor era intenso. Todos vestiam-se como personagens de um livro de Harry Potter, esse “clássico” da literatura contemporânea, com becas negras, chapéus exóticos e faixas coloridas. Do palco central, ergueu-se o homem de gola rolê e calças jeans, coberto pela beca e sem chapéu. Tratava-se de uma cerimônia de colação de grau. Aquelas pessoas estavam em uma das maiores universidades do mundo, reconhecida por sua elevada colocação nos rankings acadêmicos. Ele não era um professor, muito menos um aluno, no entanto, coube-lhe a honra de proferir o discurso aos formandos, algo semelhante à preleção de um paraninfo em uma universidade brasileira.

Suas palavras iniciais foram plenas de sarcasmo: “Estou aqui, honrado por poder participar da cerimônia de colação de grau em uma das melhores universidades do mundo. Mas, verdade seja dita: eu nunca concluí a graduação e isto aqui é o mais próximo do que eu já cheguei de uma formatura”. Ele não se conteve e interrompeu o texto com uma risada curta, mas bastante explícita sobre o que aquilo tudo significava para o paraninfo. O discurso prosseguiu. Ele se propôs a contar três histórias. Ou melhor, um resumo de sua vida.

A primeira história ensinava como e porque ele largou a Faculdade, irritado com a mediocridade do meio e de seus membros. As causas de sua desistência estavam em suas origens sociais: seus pais adotivos eram pessoas da classe trabalhadora e eles lutaram para que seu filho estudasse naquela universidade. Todo o dinheiro de uma vida seria usado para que o homem da gola rolê e do blue jeans surrado pudesse chegar à universidade. Ele, porém, jogou tudo para o alto e abandonou o curso. O paraninfo disse que foi uma escolha assustadora, mas que se tratou de uma de suas “melhores decisões”.

Sim, é isso, caro leitor, o paraninfo disse a um enorme grupo de jovens, os quais passaram 3 ou 4 anos em bancos universitários, muitos deles com histórias pessoais muito parecidas com a sua, que desistir da faculdade foi uma das melhores coisas que já fez na vida.

Volte-se ao discurso. Segundo o paraninfo, a vida fora da universidade revelou-se duríssima: ele dormia no chão do quarto de amigos e comprava comida com o dinheiro obtido com a devolução de garrafas de refrigerantes. Nessa jornada, ele aprendeu muito sobre caligrafia. Dez anos depois, quando ele projetou seus primeiros produtos, essa experiência foi fundamental para torná-los únicos e desejados pelas pessoas.

Em seguida, ele comentou sobre o crescimento vertiginoso de sua empresa e, depois, como ele foi demitido aos 30 anos de idade. Ele, porém, continuava a amar profundamente o que fazia. E sua demissão foi também uma coisa excepcional em sua vida.

A formação de uma família, o recomeço na indústria de entretenimento e a construção de uma nova empresa ocuparam a parte intermediária de sua narrativa.

A terceira história, com a qual ele concluiu o discurso, teve como moral a perspectiva de que a vida é finita e que é necessário focar em coisas que realmente valham a pena. Esse sentimento foi reforçado pelo diagnóstico de um câncer no pâncreas. Para ele, a morte era uma das “mais belas invenções”, porque ela permite “renovar a vida”. Em razão disso, ele aconselhou os jovens estudantes a não serem dogmáticos, a acreditarem em si mesmos e a viver com foco no que realmente é importante.

Ao final, o paraninfo foi copiosamente aplaudido pela imensidão de jovens que ali estiveram para ouvi-lo no ano de 2005.

O paraninfo chamava-se Steve Paul Jobs, nascido na californiana cidade de São Francisco, no ano de 1955, e falecido em 2011. Não é preciso dizer que ele fundou a Apple e que revolucionou o mundo das telecomunicações e da informática com suas geniais ideias. Muitos leitores devem acompanhar esta coluna pelo visor de seu iphone da Apple.

O discurso de Steve Jobs foi proferido na Leland Stanford Junior University, mais conhecida pela forma sincopada de Universidade de Stanford, uma das maiores do mundo. Essa instituição foi criada em 1892, graças à benemerência de Leland Stanford, que nomeou a universidade em honra de seu filho. Stanford foi um dos “barões gatunos” norte-americanos do século XIX, como ficaram conhecidos os grandes magnatas que enriqueceram coma exploração de ferrovias, petróleo e telecomunicações, usando de métodos bem pouco regulares, para se dizer o menos.

Antes de Steve Jobs, muitos homens bem-sucedidos no mundo dos negócios nunca concluíram cursos superiores ou mesmo jamais tiveram oportunidade de neles ingressar. O discurso do self-made man não é novo. Quem se dispuser ao ouvir os 14 minutos de preleção de Jobs, em Stanford, encontrará ali muitos dos elementos comuns a essa ideologia: acreditar em si mesmo, não desistir após os fracassos e amar o que se faz. Amar profundamente, como gostam de enfatizar adverbialmente os norte-americanos.

A trajetória de fuga da universidade é muito semelhante a outros “barões gatunos” de nosso tempo, como Bill Gates (Microsoft) e Mark Zuckerber (Facebook). A novidade de seu discurso, no entanto, está em que não há notícias de que um magnata, com equivalente nível de influência ao de Jobs, tenha desmoralizado com tanta ironia o sentido e a importância da universidade e da formação universitária para as novas gerações. É claro que muitos empresários bem-sucedidos, em privado, criticam a universidade e desdenham da utilidade do conhecimento ali adquirido. Mesmo esses, porém, nunca atacaram publicamente essa instituição como o fez Steve Jobs. Ao contrário, eles costumam doar generosas quantias para as universidades. A propósito, Stanford, Harvard, Cornell e outras instituições norte-americanas levam os nomes de empresários que as dotaram de meios indispensáveis a sua criação.

O discurso de Jobs, na mais importante cerimônia de uma universidade, o ritual de passagem dos aprendizes de feiticeiros, foi suave, comovente e persuasivo. A ironia estava em tudo: no local, nas circunstâncias, na cara dos anfitriões (os professores universitários, que jamais conseguirão o êxito de Jobs no mundo real) e na humilhação de terem de ouvir aquelas palavras e risadas sarcásticas de um homem que disse a centenas de alunos que só venceu na vida porque abandonou aquele ambiente.

Cena 2: O professor japonês e o papel da docência universitária
Um amigo, o professor Gabriel Nogueira Dias, contou-me uma história muito interessante: há 15 anos, na Alemanha, ele conversou com um professor japonês, que lecionava em uma prestigiosa Faculdade de Direito norte-americana, e dele ouviu uma desoladora descrição sobre a docência superior nos Estados Unidos. Mais e mais, segundo o professor japonês, o docente transformava-se em um educator e um entertainer.

Os alunos chegavam aos bancos universitários sem uma formação básica em matéria de comportamento social, sobre como se portar em ambientes públicos e sem noções de valores éticos. Os milhares de professores de ensino fundamental e médio no Brasil sabem do que eu estou a falar. Com pais ocupadíssimos em razão de suas carreiras profissionais, aos professores restou a missão (para a qual não são pagos e não têm formação específica) de lhes oferecer também a educação que se aprendia outrora em casa. Segundo o professor japonês, esse papel havia sido atribuído aos docentes universitários, que perdiam tempo precioso com a transmissão do saber técnico (para o que eles eram remunerados) e tinham ainda de agir como educators e não como professors.

A decadência, narrada pelo professor japonês, não se resumia a isso. Exigia-se ainda dos docentes universitários que fossem entertainers. Não bastava preparar-se, estudar a sério, pesquisar e lecionar com base em estruturas e fundamentos epistemológicos sérios. Era preciso que o docente fosse cool, atraísse os alunos com piadas, que lhes contasse historinhas, que agisse como se a sala de aula fosse um misto de palco de stand-up comedy e um programa estilo talk show. Ensinar coisas que realmente importariam para a vida profissional seria algo chato e desinteressante. Falar de leis, textos constitucionais, de História do Direito, de Filosofia do Direito ou de Direito Comparado? Eis algo aborrecido e chato. Sem os recursos de um bom entertainer, não se conseguiria manter os alunos atentos. De preferência, era bom que o professor usasse de métodos audiovisuais e não enchesse muito os discentes com conteúdos “pesados”.

Cena 3: Turistas sem fronteiras
Uma matéria de Davi Lira e Ocimara Balmant, publicada no IG São Paulo, de 6-6-2014, com o título “Bolsista no exterior põe estudo em segundo plano e adere ao ‘Turismo sem Fronteiras’”, descreve como alguns estudantes brasileiros, integrantes do programa federal de bolsas em universidades estrangeiras (Ciência sem Fronteiras), estão convertendo seus períodos de intercâmbio no exterior em verdadeiras oportunidades de turismo.

Ao invés de estudar com seriedade, passando seus dias nas bibliotecas e nos laboratórios, um grupo desses estudantes, financiados pelo Governo Federal, dedicam a maior parte do tempo a viajar como mochileiros pela Europa. As razões disso são bem fáceis de serem identificadas: um misto de complexo de “ex-metrópole”, que dá aos discentes terceiro-mundistas um tratamento mais complacente, e um sistema universitário inclusivo.

Na maior parte da Europa, os cursos de graduação (em Direito, para se ficar em um âmbito conhecido pelos leitores) têm turmas com 100, 200, 300 ou 400 alunos em sala de aula. É comum serem ministradas as aulas em andares distintos, com uma parte da turma acompanhando as lições por um telão e a outra no mesmo andar onde fica o professor. O comparecimento às aulas não é algo com que os docentes se preocupem. Em alguns países, como a Alemanha, as notas das disciplinas têm baixa relevância, pois o que define o futuro profissional é a aprovação (com boas notas) no Segundo Exame de Estado. Quando os alunos querem protestar, eles fazem uma “greve de zelo”, ou seja: comparecem em massa às aulas, como que a provar a impossibilidade de todos estarem presentes em simultâneo.

Mais que isso tudo, o modelo europeu foi construído para que todos os que assim o queiram possam ter acesso a um ensino superior público. A entrada na universidade não é tão problemática quanto sair e ter uma boa formação. Como as estatísticas de pessoas com diploma superior são elevadíssimas, sem comparadas aos padrões brasileiros (que mal alcançam 20% da população), a disputa dá-se em outro nível e é muito mais dura, pois se parte de uma condição de igualdade na origem e de desigualdade pelo mérito, ao longo da trajetória acadêmica. Nessa realidade, não há o espírito de corpo tão comum nas Faculdades de Direito brasileiras, que une muitos dos alunos contra o docente sério e exigente. Nos países ricos, quem não quer estudar terá o resultado prático disso na dura seleção pelo mercado.

Cena 4: O vermelho e o negro
Para muitas gerações, desde a segunda metade do século XIX, o curso universitário foi uma das maneiras mais respeitadas (e respeitáveis) de se ascender socialmente. Antes dessa época e mesmo durante o século XX, os meios tradicionais para um filho das classes campesinas, operárias ou da baixa classe média encontrar espaços na monolítica estrutura social de muitos países era a carreira das armas ou a vida eclesiástica. Aos interessados sobre esse tema, sugiro a leitura do livro Le Rouge et le Noir (O Vermelho e o Negro), do francês Stendhal, cujo subtítulo é autoexplicativo: “Crônica do século XIX”. A personagem principal, um jovem e inteligente filho de camponeses, vê-se diante da difícil escolha entre a vida militar (com seu uniforme vermelho) ou a clerical (com sua batina negra).

A universidade foi o novo caminho que se abriu para essas pessoas, sem a renúncia e as limitações vocacionais da milícia e da igreja. O escritor Lima Barreto, ele mesmo um exemplo dessa luta das classes baixas por ocupar um lugar ao sol no Brasil recém-convertido em uma república que muito cedo trairia as promessas de seus fautores, em Triste fim de Policarpo Quaresma, revela a força de um título de bacharel no final do século XIX. A personagem Coleoni, o imigrante italiano, que enriquecera desde seu primeiro ofício, como um simples quitandeiro, desejava casar sua filha única, Olga. Por mais méritos que ele possuísse, como self made man, Coleoni ansiava que Olga se casasse com um “doutor”, ainda que este não possuísse um centavo, até porque, pensava ele, “eu tenho e as coisas se acomodam”. Vale transcrever o resto de seu pensamento:

Ele se havia habituado a ver no doutor nacional, o marquês ou o barão de sua terra natal. Cada terra tem a sua nobreza; lá, é visconde; aqui, é doutor, bacharel ou dentista; e julgou muito aceitável comprar a satisfação de enobrecer a filha com umas meias dúzias de contos de réis”.

Cena Final: E o vento levou?
Estruturada em cenas, que aparentemente não guardam conexão entre si, a coluna de hoje compartilha com o leitor uma angústia e algumas dúvidas.

Com quase 1.200 cursos de Direito no Brasil, graças a um processo de democratização do ensino superior, que pode ser interpretado de maneira positiva ou de maneira negativa, além da introdução de mecanismos de acesso diferenciado por meio de quotas nas instituições públicas, tem-se tornado frequente a denúncia das mazelas da universidade brasileira, o que se tornaria mais evidente com a queda de nossas instituições em rankings internacionais de qualidade. Mais que isso: são apontados como modelos os cursos jurídicos norte-americanos, eles mesmos em forte crise nos dias de hoje e cuja estrutura mais se assemelha a de uma pós-graduação do que a de um curso de graduação, o que torna bastante problemática qualquer comparação.

Como reação a um suposto atraso nos métodos de ensino no Direito ou ao oferecimento de um conteúdo mais denso, surgem experiências marcadas pela busca desenfreada de espaços midiáticos para se divulgar resultado de certas “pesquisas” inconsistentes. É a ciência do factoide em lugar de uma ciência capaz de produzir algum conhecimento mensurável e controlável.

Muito bem. O discurso de Steve Jobs, com sua risada irônica e a frase retumbante de que abandonar Stanford foi uma das melhores coisas que ele já fez na vida, não deve atrair para o falecido bilionário norte-americano a crítica dos acadêmicos ultrajados. Ele venceu por seus méritos, como um bom self made man, e ainda conseguiu, com seu blue jeans, esconder a face dura da exploração que marca seu empreendimento capitalista. Nada mais típico da era dos “burgueses boêmios”, inaugurada nos anos 1990 por gente como ele e Bill Gates.

A desmoralização do mainstream universitário, levada a efeito por Steve Jobs, constituiu-se em um efeito direto da transformação dos professores em educators e entertainers. O que de bom se pode aprender com essas pessoas? Que conhecimento, a não ser o conhecimento “fofo”, se pode adquirir de um professor que não pode transmitir a seus alunos algo mais do que um resumo das notícias do dia anterior ou discutir o que está na Wikipedia? O sucesso de Jobs, Gates e Zuckerber é apenas a face visível de um modelo universitário em crise. Mas, como Stanford e outras universidades americanas conseguem-se manter nas principais posições das listas de excelência acadêmica? A resposta é dinheiro, muito dinheiro, para investir em pesquisa e em publicações em latim (digo, inglês, o latim de nosso tempo), além de altos percentuais de alunos e professores (bem remunerados) que fazem a diferença. Em geral, esses grupos são formados por imigrantes ou pessoas extremamente disciplinadas, que fogem da massa que hoje ocupa a maior parte das instituições de ensino superior.

O professor japonês, com 15 anos de antecedência, descreveu uma realidade que finalmente chegou ao Brasil, embora ainda com grande espaço para se dilatar, na medida em que temos vergonhosos índices de escolaridade superior, apesar dos grandes esforços governamentais dos últimos 20 anos.

Os estudantes brasileiros, uma pequena minoria, por certo, que transformaram o “Ciência sem Fronteiras” em “Turismo sem Fronteiras”, são muitos deles oriundos de classes sociais desfavorecidas. Gerações e gerações de brasileiros, antes deles, com enorme esforço e grandes sacrifícios, graças à universidade conseguiram romper as barreiras sociais que os impediam de melhorar a vida de suas famílias. O legado desse sacrifício histórico parece que se perdeu.

O conhecimento dá ao ser humano a magnífica capacidade de transformação da realidade social e de sua própria realidade. Quantas famílias não sacrificaram o futuro de alguns filhos, em favor de um deles, escolhido para ser o que se salvaria do destino de pobreza e miséria? Jobs, o magnata de nosso tempo, recusou-se a ver as economias de uma vida de seus pais serem dizimadas para custear uma universidade que pouco ou nada lhe acrescentaria.

O Brasil tem hoje a grande oportunidade de decidir qual o rumo tomará. O exemplo de nações como os Estados Unidos, que são ricas e conseguem suprir as deficiências de seu modelo educacional superior com muito dinheiro e um exército de reserva de professores e discentes dedicados, não pode ser transposto para uma nação como a nossa. Os modelos chinês e sul-coreano deveriam ser examinados com maior seriedade. Nesse cenário, o Direito parece ter-se convertido na ponta de lança desse processo de transformação da universidade em um espaço no qual se paga muito por um conhecimento que pouco ou nenhum retorno trará na vida de seus estudantes.

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Esta coluna celebra o segundo ano de publicação de “Direito Comparado” no espaço nobilíssimo da revista eletrônica Consultor Jurídico. Uma vez mais, o colunista deixa registrados seus agradecimentos à equipe liderada pelo jornalista Marcio Chaer. E, para se manter a tradição, optou-se por uma coluna diferente neste dia singular. Aos leitores, pelo apoio, pelo carinho e pelas críticas, o muito obrigado de sempre.
 

Autores

  • é advogado da União, professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

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