Constituição e Poder

Confusão de funções e submissão ao Executivo agravam crise do Congresso

Autor

  • Marco Aurélio Marrafon

    é advogado professor de Direito e Pensamento Político na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) doutor e mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) com estudos doutorais na Università degli Studi Roma Tre (Itália). É membro da Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst).

16 de junho de 2014, 15h11

Na coluna do dia 2 de junho procurei apresentar o diagnóstico do modelo atual de organização psíquica “sem limites”. Ele tem formado o neosujeito, que tem dificuldade de lidar com regras em um mundo hiperindividualista, e gerado disfunções na democracia contemporânea.

Anotei que um dos efeitos imediatos desse ambiente de alta fragmentação de valores e complexidade social era a grave crise de legitimidade das instituições, pois aumentou a tensão entre “ser” e “dever ser”, entre a adequação das convicções individuais a sistemas normativos gerais.

Na reflexão de hoje avançarei nessa temática, com especial foco na crise de representação política que atinge de modo mais intenso o Congresso Nacional, enquanto locus de materialização normativa da vontade democrática em um sistema político e eleitoral que tenta aliar presidencialismo de coalizão com as exigências de bem-estar social constitucionalmente determinadas.

Descrença nas instituições
A democracia representativa liberal clássica apresenta sinais de esgotamento. Partidos políticos parecem ter perdido o controle da agenda política e do atendimento das demandas públicas. É notável sua dificuldade de agregar e canalizar os votos recebidos de modo a organizar as lutas sociais com objetivos de transformação. Por isso, revelam-se necessários urgentes mecanismos de renovação e oxigenação.

Mesmo os sindicatos têm sofrido questionamentos contundentes acerca de sua representatividade. Tem se tornado comum a chamada “quartelada sindical”, isto é, a ação de grupos de pessoas sindicalizadas, em geral minoritários, que, na defesa de seus interesses, não seguem as deliberações coletivas. Agem da maneira que melhor lhes convém — vale tudo em nome do seu/meu direito —, não raro em prejuízo da manutenção de serviços essenciais à população, gerando impasses na solução de conflitos e tornando impraticável a negociação entre o setores envolvidos, o que prejudica os próprios trabalhadores.

Nesse contexto, a crise de legitimidade do Congresso Nacional brasileiro completa um perigoso quadro de descrença nas instituições que pode servir de pretexto para a ascensão de ideias autoritárias.

Podemos notar os sinais dessa crise i) no acesso ao Poder Legislativo (o sistema proporcional combinado com grande número de partidos e permissão de coligação tem sofrido severos questionamentos); ii) na análise dos extratos sociais e econômicos dos representantes em relação aos representados (o que de imediato revela a baixa representação da comunidade negra e das mulheres); iii) no funcionamento da instituição em si, no âmbito do sistema político nacional.

Cada um desses tópicos de investigação demanda estudos profundos. Por ora, farei um novo recorte: enfatizarei o terceiro ponto, relativo ao exercício satisfatório de suas competências constitucionais.

O Parlamento moderno possui funções básicas de controle e fiscalização, além da atividade legislativa propriamente dita. Em geral, no Estado de Direito cabe ao Legislativo: i) aprovar e controlar o orçamento público e sua execução; ii) fiscalizar a aplicação dos recursos financeiros, combatendo a corrupção; iii) atuar como juiz em situações atípicas (p.ex. impeachment do Presidente da República); iv) promover investigações parlamentares (p. ex. CPIs); v) discutir grandes temas nacionais, levando demandas populares ao Executivo ; vi) inovar legislativamente no sistema constitucional, considerada sua função típica.

Já há aqui um primeiro apontamento em relação à transformação dos representantes parlamentares em legisladores. O cientista politico Giovanni Sartori lembra que na origem do Parlamento moderno, a ideia de onipotência do legislador não significava grande discricionariedade na criação de leis. Tanto no modelo ingles do rule of law quanto na democracia francesa de índole rousseauniana, o Legislativo deveria concretizar o direito previamente existente por meio de leis que seriam muito mais reveladas do que propriamente criadas — inclusive, a fase do law making era precedida de uma etapa mais teórica, do law finding[1].

Na visão do professor italiano, além de sobrecarga das demandas normativas — que se não forem atendidas levam à insatisfação e à falta de legitimidade da instituição —, o câmbio de paradigma sobre o significado do papel legislativo do Parlamento causou grande confusão de funções e perda da eficácia do que é especificamente a função parlamentar.

Para o autor, essa mudança promoveu efeitos negativos. Os parlamentos absorveram a função de criar o direito e promoveram inflação legislativa, permitindo a afirmação de uma concepção voluntarista do fenômeno jurídico aliada à ideia de que governar é igual a legislar: “O Parlamento adquiriu a atribuição de legislar sobre uma enorme quantidade de procedimentos de natureza particular, administrativa ou mesmo meramente regulamentar. Daí o governo se sente obrigado a governar legislando – prática que equivale a mal governar e mal legislar”[2].

Assim, conclui que “o princípio de governo controlado e submetido às leis se transformou no princípio bem distinto de governar por meio de leis, multiplicando-as e inflacionando-as”[3].

Dominação da agenda pelo Executivo
Além do potencial de crise gerado pela sobrecarga de funções e confusão de seu papel institucional, o presidencialismo brasileiro (considerado de coalizão[4]), combinado com um modelo político típico de Estado de Bem-Estar Social, fez com que o modo de produção legislativa se adaptasse às exigências do projeto constitucional instituído em 1988 e tornasse necessária grande participação do Chefe do Executivo na produção legislativa.

A Constituição de 1988 estabeleceu um leque muito abrangente de direitos fundamentais de natureza social, além daqueles da clássica concepção liberal. Tais direitos sociais envolvem direitos de participação e obrigações que o Estado deve prestar à população. Isso faz com que haja maior demanda de atuação positiva do Executivo na realização de políticas públicas que garantam a eficácia desses direitos.

Assim, em oposição ao Estado liberal, com maior centralidade do Poder Legislativo, o Estado de Bem-Estar social legitima a atuação preponderante do Executivo, atribuindo grande responsabilidade governamental ao Presidente da República, que passa a participar do processo legislativo fazendo uso do amplo rol de competências exclusivas na iniciativa de leis (art. 84 da Constituição) e das medidas provisórias (artigo 62).

Além disso, por meio das coalizões partidárias, o presidente utiliza os partidos aliados e o seu próprio como instrumentos de aprovação dos projetos de leis que atendam aos interesses governamentais.

A pauta do Parlamento passa, então, a ser dominada pela agenda do Executivo e, se o Congresso exercer constantemente seu poder de veto, instaura-se uma grave crise de governabilidade, com impasses entre os poderes e paralisação da máquina estatal.

Para que isso não ocorra, por vezes temos presenciado estratégias de cooptação parlamentar que ultrapassam as razões públicas – mais um motivo para a crise de legitimidade — mas que têm garantido ao Executivo alto controle da elaboração normativa, tanto em relação à taxa de sucesso (isto é, percentual de projetos de interesse do governo aprovados pelo Congresso Nacional) quanto em relação à taxa de dominância da agenda política (relativo ao índice de aprovação dos projetos de iniciativa do governo em comparação àqueles de iniciativa de outros atores políticos levados à deliberação e à votação).

Nos cálculos de Limongi relativa ao período de 20 anos contados a partir do fim do regime militar, “A disciplina média da base do governo — proporção de deputados filiados a partidos que receberam pastas ministeriais que votaram em acordo com a indicação expressa do líder do governo — é de 87,4% nas 842 votações ocorridas no período. A variação entre presidentes é pequena: a menor média foi registrada sob Sarney, com 78,4%, e a maior, 90,7%, no segundo governo de Fernando Henrique. O governo Lula, para dissipar falsas imagens, contou com apoio médio de 89,1% dos deputados da base do governo em 164 votações.” (Disponível aqui

Estudos do Núcleo de Pesquisa de Políticas Públicas da USP — NUPPs, em especial a análise dos dados pesquisados por José Álvaro Moisés, mostram resultados semelhantes: a taxa de dominância ultrapassa 85% e a taxa de sucesso é ainda mais alta. (Disponível aqui)

No contexto brasileiro, a sobrecarga (e confusão) de funções é um dos fatores que fazem com que o papel de controle e fiscalização não seja adequadamente cumprido e, no plano legislativo, prevalece a dominação da agenda parlamentar pelo Executivo.

Daí a crise da função legislativa do Parlamento que deixou, há muito, de ser o locus adequado de produção normativa legítima e democrática, dando lugar forma de governo calcada no Poder do Executivo.

As estratégias de cooptação parlamentar não raro oportunistas e baseadas em pactos nada republicanos, contribuem para esse quadro de descrença e ausência de legitimidade institucional.

Isso não significa, porém, sua inutilidade ou a defesa da implantação de democracia direta e plebiscitária. Repensar mecanismos de aproximação e diálogo com a sociedade e resgatar a complementaridade entre democracia participativa e representativa são caminhos mais promissores.


[1] Conferir: SARTORI, Giovanni. Elementos de teoría política. Trad. M. Luz Morán. Madrid: Alianza Editorial, 2010. p. 218-223.

[2] Ibidem, p. 218. (tradução livre do texto em espanhol).

[3] Idem.

[4] ABRANCHES, Sergio. Presidencialismo de coalizão: o dilema institucional brasileiro. In: Dados: Revista de Ciências Sociais, vol. 31, n. 1, Rio de Janeiro: IUPERJ, p. 3-55, 1988.

Autores

  • é presidente da Academia Brasileira de Direito Constitucional – ABDConst, Professor de Direito e Pensamento Político na Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ e Advogado.

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