Observatório Constitucional

Razões de ordem jurídica e social propiciam ativismo judicial no Brasil

Autor

  • José dos Santos Carvalho Filho

    é doutorando em Direito Público pela Sciences-PO/Aix-Marseille Université (França) professor de Processo Constitucional da Escola de Direito de Brasília (EDB-IDP) e chefe de gabinete de ministro do Supremo Tribunal Federal.

14 de junho de 2014, 8h00

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É muito preocupante o nível do ativismo judicial no Brasil. Embora o fortalecimento do Judiciário e da justiça constitucional se trate de fenômeno mundial, aqui a intensidade da relação que esse poder estabelece com as instâncias políticas clássicas é muito mais forte do que na maioria das experiências do Direito Comparado.

Várias peculiaridades do constitucionalismo brasileiro podem justificar essa circunstância, mas duas merecem especial destaque: a extensão da Constituição e a abertura procedimental da jurisdição constitucional.

Ao lado do reconhecimento da Constituição como elemento estruturante do Estado e fundamento de validade, direto ou indireto, de todos os atos dos poderes públicos, precisou-se estabelecer órgão responsável pela verificação de compatibilidade entre a norma fundamental e os atos que nela se legitimam. Nessa conjuntura, desenvolveu-se o controle de constitucionalidade em vários países do mundo e, consequentemente, instituíram-se órgãos encarregados de tal função (e.g. a Supreme Court norte-americana, o Bundesverfassungsgericht alemão, o Conseil Constitutionnel francês e o Supremo Tribunal Federal).

Ocorre que as particularidades do sistema brasileiro conduziram a uma absorção de competências pelo Supremo Tribunal Federal, quantitativa e qualitativamente, que não se vê em cortes constitucionais estrangeiras.

Com efeito, a existência de Constituição analítica, que estipula extenso rol de direitos fundamentais de baixa densidade normativa — a exemplo do direito social ao lazer — e de princípios com conteúdo indeterminado — como a dignidade da pessoa humana e a eficiência na Administração Pública — propiciou amplo leque de possibilidades para o exercício da jurisdição constitucional no Brasil.

Além disso, a onda de democratização[1] e a facilidade de acesso à Justiça acarretaram aumento na judicialização dos conflitos sociais, em virtude da instituição de juizados especiais, da diversificação de ações constitucionais que podem ser manejadas para provocar controle de constitucionalidade e da concessão de benefícios, como a isenção de custas e a advocacia gratuita e institucionalizada aos necessitados.

Nessa conjuntura, instalou-se um quadro no Brasil no qual a jurisdição constitucional é realidade, os paradigmas de controle são diversos e genéricos e os meios para provocar a atuação judiciária são abundantes.

Em consequência, o Judiciário se fortaleceu e a sua participação no processo de tomada de decisões importantes para a toda sociedade tornou-se frequente. O controle da Justiça sobre a vida política passou a ser tão crescente que nada mais escapa da apreciação judicial.

Além de julgar as típicas querelas entre os particulares ou entre estes e o Estado, o Judiciário, sobretudo o Supremo Tribunal Federal, passou também a intervir diretamente em deliberações políticas, devido à incumbência de dirimir os conflitos políticos que são judicializados.

O acompanhamento do perfil institucional do STF nos últimos anos permite constatar a postura altiva que vem sendo adotada. O órgão serve de instância recursal para as minorias derrotadas em debates no governo, de guardião dos direitos fundamentais dos cidadãos contrários às políticas públicas adotadas e, ainda, de alçada para discussão de questões morais sobre as quais não se chega a consenso no Legislativo e no Executivo.

Dados disponibilizados pelo Supremo Tribunal Federal revelam que 18%[2] das ações de controle concentrado de constitucionalidade são propostas por partidos políticos, o que evidencia o manejo frequente da estratégia de utilização desta Corte como instância de recurso para as minorias políticas manifestarem irresignação e pleitearem nova apreciação de temas, sob enfoque técnico-jurídico.

O recente embate sobre a CPI da Petrobras corrobora essa tese. No caso, houve transferência ao Judiciário de questão tipicamente congressual, uma vez que tanto a oposição quanto a base aliada do governo impetraram mandado de segurança, diante da dificuldade de conciliação para definir o objeto da investigação — enquanto os parlamentares da base aliada (maioria) pretendiam a instalação de uma CPI ampla, para investigar também outras irregularidades, os opositores (minoria) defendiam uma CPI com objeto específico, para evitar tumulto e possibilitar a eficiência do trabalho. Finalmente, foi o Supremo Tribunal Federal que determinou o objeto exclusivo do inquérito.[3]

A atuação do Judiciário também mudou substancialmente no que diz respeito à concretização dos direitos fundamentais, mormente dos direitos de segunda dimensão — sociais, culturais e econômicos —, que normalmente dependem de prestação material do Estado, por meio da realização de políticas públicas, para serem usufruídos.

Certos de que a simples existência de normas constitucionais que consagrem tais direitos não é suficiente, os cidadãos socorrem-se ao Judiciário garantidor de promessas[4], onde contestam tanto a inexistência quanto a ineficiência das políticas públicas. Não são raros os casos em que o Estado é transformado em réu de processo judicial, por meio de questionamentos acerca da constitucionalidade de políticas públicas estabelecidas pelo governo.

O caso do benefício assistencial de prestação continuada julgado pelo STF em 2012[5] é bastante representativo dessa situação. O Tribunal invalidou política pública que estava em vigor havia cerca de 20 anos e reviu anterior entendimento vinculante seu. Além disso, a Corte não estabeleceu qualquer critério objetivo em substituição, razão pela qual a concessão do benefício assistencial passou a depender de análises subjetivas e casuísticas, ao arrepio do princípio da segurança jurídica.

Inúmeros outros exemplos podem ser encontrados em todas as instâncias jurisdicionais do país, especialmente no tocante à judicialização dos direitos à saúde e à educação.

É imperioso acrescentar ainda que a extensão normativa da Constituição brasileira — extremamente analítica — oportuniza a judicialização de conflitos morais que são caracterizados também como jurídicos. O Judiciário, assim, transforma-se em instância de discussão de temas socialmente conflituosos. Diante da dificuldade de acordos sobre tópicos como aborto e uniões homoafetivas nas instâncias políticas, o debate é transferido para o Judiciário, onde a controvérsia se soluciona por critérios técnicos.

Essa transformação da Justiça em seara de discussão de temas socialmente conflituosos é altamente questionada. Importante corrente doutrinária sustenta que a regra da maioria, em que as decisões são tomadas pelos destinatários da norma, direta ou indiretamente, é a forma mais equitativa para se enfrentar situações de desacordos morais razoáveis.[6] De mais a mais, decisões judiciais frequentemente são tomadas por maioria de votos, então fica destacado o aspecto de mera transferência da deliberação de órgãos democraticamente eleitos a juízes nomeados.

Há agravantes extras para o ativismo judicial no Brasil. Primeiramente, existe uma cultura disseminada no país segundo a qual as soluções para conflitos sociais devem ser buscadas no Judiciário. Jargões como “eu vou te processar” e “eu adotarei as medidas judiciais cabíveis” bem evidenciam isso. A repreensão do corpo social sobre quem age diferentemente reitera o sentimento litigioso: “Eu não acredito que você não processou! Se eu fosse você, não deixaria por isso mesmo e ainda pediria indenização por danos morais!”.

Outrossim, o protagonismo judicial encontra ressonância na sociedade. A população conhece os nomes e os posicionamentos individuais dos membros da Suprema Corte por meio da difusão de julgamentos pela TV Justiça e da construção da imagem de heróis da pátria pela mídia. Em geral, muitas vezes aplaudem-se decisões judiciais sem se refletir sobre os riscos que, a longo prazo, elas representam para a democracia.

Todas essas variáveis influenciam a frequência de comportamentos ativistas no Brasil e devem ser levadas em consideração.

É claro que o fortalecimento do Judiciário é importante para o atual estágio do constitucionalismo brasileiro e para a democracia em sentido material, pois a independência desse poder permite maior resistência a decisões circunstanciais da maioria que violem a Constituição.[7]

Entretanto, o que impressiona atualmente é a ausência de limites concretos para a atuação judicial. Em um contexto de normas constitucionais genéricas, o dever de fundamentação e a argumentação jurídica podem ser facilmente manipulados para se chegar ao resultado pretendido. Assim, o princípio da igualdade, por exemplo, poderia ser invocado como sustentáculo tanto para a consagração de uma política de inserção social de minorias por meio de quotas raciais como para a sua refutação.

O fato é que muito pouco se pode fazer contra uma decisão do Supremo Tribunal Federal, e isso é assaz perigoso, pois o Judiciário ocupa posição de destaque no cenário político brasileiro e caminha para se consolidar como protagonista na resolução de conflitos sociais. Urge, pois, refletir sobre o fenômeno e tentar aperfeiçoar os limites que se lhe impõem, para que não seja instaurada uma juristocracia[8] no Brasil.


[1] O termo “onda” é utilizado por Mauro Cappelletti para apresentar as soluções práticas para os problemas de acesso à justiça (Cf. CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Trad. Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Fabris, 1988, p. 31 e ss.).
[2] Segundo relatório atualizado até 20 de abril de 2014, os partidos políticos brasileiros protocolaram 826 do total de 4.588 ações ajuizadas no STF (Cf. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Relatório estatístico de controle concentrado. Disponível em:
[3] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Mandados de Segurança 32.885 e 32.889, Rel. Min. Rosa Weber. Notícia da decisão disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=265-324>. Acesso em: 25/4/2014.
[4] GARAPON, Antoine. O juiz e a democracia: o guardião de promessas. Rio de Janeiro: Renavan, 1999.
[5] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário 580.963, Rel. Min. Gilmar Mendes, e Recurso Extraordinário 567.985, Rel. Min. Marco Aurélio, ambos julgados em 13/4/2013.
[6] WALDRON, Jeremy. A dignidade da legislação. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 190.
[7] CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Legisladores? Trad. de Carlos Alberto Álvaro de Oliveira. Porto Alegre: Fabris, 1993, p.107.
[8] Termo empregado e desenvolvido por Ran Hirschl, na obra Towards Juristocracy: the origins and consequences of the new constitutionalism. Harvard University Press, 2007.

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