Diário de Classe

A Filosofia no Direito e as condições
de possibilidade do discurso jurídico

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14 de junho de 2014, 8h01

Spacca
Tradicionalmente, os juristas buscam responder questões como “o que é o Direito?”, “qual o seu sentido hoje?”, “por que o Direito?”, “o que é a filosofia do Direito?”, “para que teoria do Direito?” Da mesma forma, também se ocupam de temas ligados às teorias da Justiça e às principais correntes do pensamento jurídico ao longo dos séculos, através das quais propõem, diariamente, inúmeras análises metodológicas e descrições históricas do direito na sociedade, demarcando-se as mudanças significativas dos modelos existentes.

Todavia, a reconciliação promovida pelo constitucionalismo do segundo pós-guerra entre o Direito, de um lado, e a Filosofia, de outro, exige que se reconheça a necessidade de ultrapassar a simples filosofia do Direito — que objetifica o Direito, a partir de um pensamento já instituído e alheio à dinâmica da história que nega a reflexão da incompletude e impossibilita o desvelar do fenômeno jurídico — e pensar a Filosofia no Direito, tal qual proposto ineditamente por Lenio Streck e Ernildo Stein, no ano de 2003, em conferência por ambos ministrada no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná.

Isso, contudo, requer alguns cuidados, conforme alerta o ilustre filósofo, haja vista que as aplicações da Filosofia no Direito são ora consideradas um corpo estranho, ora assimiladas como algo que é próprio do Direito e que pouco, ou quase nada, tem a ver com a Filosofia propriamente: “ou encontramos um modo de pensar a relação entre Filosofia e Direito em uma nova dimensão, ou permanecemos na corrida interminável de um Direito que se especializa para esconder o impasse de seu vazio” (STEIN, Ernildo, Exercícios de fenomenologia. Ijuí: Unijuí, 2004, p. 153-154).

A fim de auxiliar na compreensão desta problemática, Stein distingue, didaticamente, três tipos de filosofia:

(a) a filosofia de ornamentação, ou cosmética, predominante no mundo, através da qual se produz um conjunto de textos, que podem ser impressos, cuja utilidade, normalmente, encontra-se ligada à citação daquilo que interessa, seja num sermão, num discurso de paraninfo, ou num arrazoado jurídico;

(b) a filosofia de orientação, através da qual se produz um trabalho filosófico, um pequeno texto sobre a moral, a estética, a metafísica, etc., sem que haja compromisso com um método ou com um paradigma determinado, mas que se mostra de maior utilidade, principalmente aos pedagogos, antropólogos, economistas, juristas e outros tantos, que procuram uma orientação para certas questões fundamentais, isto é, serve àqueles que precisam se apoiar numa passagem filosófica interessante;

(c) a filosofia que funda paradigmas de racionalidade, que é a verdadeira filosofia, através da qual cada filósofo trilha não apenas o seu projeto, mas também trilha os filósofos da história da filosofia, na medida em que está voltada, especialmente, para a inauguração de certos standards de racionalidade, ou melhor, para a produção de algo que, antes, na filosofia, não aparecia desta maneira, isto é, para a produção de um elemento que se torna uma espécie de uma matriz de inteligibilidade específica, que representa um determinado método, um modo de filosofar, um projeto filosófico, uma teoria da verdade, enfim, um paradigma de racionalidade.

Nesse contexto, o problema reaparece de outro modo, na medida em que — diferentemente do suposto pelo sentido (demasiado) comum dos juristas — a Filosofia não serve de ornamento para o discurso jurídico e, muito menos, de orientação, ou refúgio, para as perplexidades decorrentes dos limites e tentativas de fundamentação do Direito. Da mesma forma, tampouco se pode compactuar com o pensamento jurídico de que é possível encontrar na lógica da argumentação, de caráter puramente axiomático-dedutivo, a principal função da filosofia.

Isto porque, como se viu, existe uma diferença fundamental — descoberta apenas quando da revolução kantiana, com o surgimento da teoria do conhecimento e a superação/inversão da relação objetivística — entre o discurso ordinário, em que se encontram as linguagens naturais e as linguagens científicas, e o discurso filosófico, que tem uma linguagem própria e especial (a linguagem filosófica), vinculada justamente a partir de uma matriz de inteligibilidade, isto é, de um determinado método filosófico.

Conforme aduz Stein, é preciso uma espécie de núcleo paradigmático, ou standard de racionalidade, para que se possa aplicar, adequadamente, a Filosofia. Isso se mostra importante, sobretudo, quando se fala de sua aplicação aos campos do Direito, da Psicologia, da Antropologia, da Economia, da Psicanálise etc., de modo que, enquanto predominar a aplicação das filosofias de ornamentação e de orientação nos campos das ciências humanas, nada se estará fazendo além de apenas complicar os textos das ciências humanas, visto que, assim sendo, não há nenhum tipo de articulação filosófica propriamente válida: é, justamente, por isso que não existe Filosofia do Direito, ou Filosofia da Psicologia, por exemplo, simplesmente porque se utiliza um filósofo.

Dito de outro modo, sempre que se quiser aplicar a filosofia a um determinado campo — por exemplo, no Direito, na Psicanálise, na Política — é necessária a utilização daqueles autores que inauguraram certos paradigmas filosóficos, isto é, autores que fundaram standards de racionalidade ou matrizes de inteligibilidade.

A partir disso, pode-se compreender que o grande problema relativo à Filosofia no Direito encontra-se atrelado, ao fim e ao cabo, ao fato de o jurista se mover, geralmente, no raso da filosofia, que é a linguagem comum, natural, científica — positivista, no caso do Direito —, negligenciando esta dobra sobre a qual ela se estrutura e cujas consequências são incontornáveis para se pensar e aplicar o direito.

Nessa linha, Stein ensina que a Filosofia possui um papel fundamental no nível do discurso jurídico, uma vez que apenas ela é que pode trazer os elementos que constituem não só o campo conceitual e argumentativo do Direito, mas, sobretudo, o espaço em que ele se move, que é sustentado, ao fim e ao cabo, pelo modo como se realiza a Filosofia:

“Essas formas de standards de racionalidade apresentados como transcendentais não clássicos […] são as condições de possibilidade de qualquer conhecimento empírico ou de caráter não filosófico. Ao escolhermos, portanto, uma Filosofia para pensar o fundamento do discurso jurídico, temos de ter presente a natureza do standard de racionalidade que elegemos. Explicitá-lo significa descobrir, no Direito, um discurso que subjaz, como dimensão hermenêutica profunda, ao processo lógico-discursivo do sistema jurídico. Em geral, verificaremos que o Direito carrega consigo uma espécie de standard de racionalidade ingênuo. Isso quer dizer que a dogmática jurídica tende e reproduzir a diferença entre a racionalidade I e a racionalidade II, ou entre a racionalidade de caráter entificador quando busca a validação do discurso jurídico” (STEIN, op. cit., p. 161).

É preciso entender, portanto, que é inadmissível continuar acreditando ser possível fazer Direito sem Filosofia. O Direito é, inevitavelmente, Filosofia aplicada; e a Filosofia, por sua vez, não é mero ornamento ou orientação, mas, sim, condição de possibilidade. Ou melhor: poder-se-ia até mesmo dizer que, para o estudo do Direito, a Filosofia, mais especificamente no que diz respeito aos paradigmas de racionalidade atrelados ao fenômeno jurídico, é tão importante como, para o estudo da física ou da engenheira, é a matemática.

Dito de outro modo, apenas através da filosofia no direito é que se torna possível pensar pós-metafisicamente o Direito, superando a afirmação baseada na diferença entre uma semântica jurídica, que trata dos objetos jurídicos no mundo, e a uma semântica filosófica, que não trata de objetos — de que no Direito não se pensa, uma vez que o Direito não se move no mesmo nível linguístico da Filosofia.

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