Necessidade de autonomia

A Advocacia-Geral da União é instituição transversal aos poderes

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14 de junho de 2014, 10h22

O desenrolar histórico da Advocacia-Geral da União (AGU) de 1988 até os dias atuais é a demonstração didática de que a ordem jurídica não se aperfeiçoa automaticamente com um mero ato de vontade do Constituinte. 

Aprovada em 1988 a Constituição da República em vigor, ainda hoje persiste no meio jurídico, entre magistrados, advogados e juristas em geral, uma percepção sobre a AGU não muito diversa daquela que se encontrava positivada durante o regime político-constitucional antigo: tratar-se-ia de mero órgão das estruturas do Poder Executivo. É como se representasse um nada jurídico o fato de o Constituinte de 1988 ter inovado severamente no desenho dos poderes e funções do Estado, inserindo a Advocacia Pública no rol das “Funções essenciais à justiça”, ao lado do Ministério Público, da Defensoria Pública e da Advocacia em geral, e transversalmente aos três poderes clássicos: Legislativo, Executivo e Judiciário.

Aliás, autores mil já escreveram rios de tinta sobre o caráter essencialmente conservador e reativo dos aplicadores do Direito, que atrasam a efetivação do novo e postergam a superação do velho. Assim, normalmente, instalado um regime despótico em substituição a um democrático, a comunidade jurídica continua aplicando o regime democrático. E o contrário também é verdadeiro: instalado um regime democrático em substituição um regime despótico, a comunidade jurídica continua aplicando o regime despótico. 

E no caso da AGU não poderia ser diferente: a comunidade jurídica e os órgãos e publicações oficiais continuam a encará-la acriticamente, décadas após a aprovação da Constituição de 1988, como um órgão do Poder Executivo, mais ou menos nos termos do que previsto pelo revogadíssimo art. 32 do Decreto-lei 200, de 1967, que colocava a então “Consultoria-Geral da República” como um órgão integrante da própria Presidência da República. 

Exemplo disso é o tratamento conferido pelo Diário Oficial da União à Advocacia-Geral da União, que é tratada como um órgão da Presidência da República.

Já no sítio eletrônico mantido pela Presidência da República, a AGU é qualificada como um Ministério

Por sua vez, coroando a incoerência informacional dos órgãos oficiais, mas, enfim, acertando dessa vez, no sítio da AGU, a instituição é tratada de forma constitucionalmente adequada, como uma estrutura transversal aos três poderes: “Teve o Constituinte o cuidado de situar a Advocacia-Geral da União fora dos três Poderes da República, não para que formasse um ‘quarto poder’, mas para que pudesse atender, com independência, aos três Poderes, tendo presente que a representação judicial da União – função essencial à Justiça -, confiada à nova Instituição, envolveria os três Poderes da República.”

Ou seja, se no Diário Oficial da União, a AGU é tida como um órgão da Presidência da República e se no sítio eletrônico da Presidência da República a AGU é classificada como um Ministério, no sítio da AGU está dito corretamente que sua natureza não é ministerial, mas de Função Essencial à Justiça, “fora dos três Poderes da República”.

Na prática, a informação do sítio eletrônico mantido pela Presidência da República e a classificação da AGU no Diário Oficial da União dão sobrevida à legislação pré-1988, deseducam a sociedade e cometem a impropriedade de violar não somente a Constituição, como também a Lei Ordinária 10.683, de 28 de maio de 2003, que dispõe sobre a organização da Presidência da República e dos Ministérios, pois a AGU não está relacionada em nenhum dos incisos do art. 25[1] que contempla o rol de Ministérios existentes, nem no rol dos órgãos que compõem a Presidência da República constante do art. 1°[2] da referida lei ordinária federal.

Em rigor, conquanto seja o Advogado-Geral da União, o chefe da AGU, enquadrado pela norma do inciso III, do parágrafo único, do art. 25, da Lei Ordinária 10.683, de 2003, como um “Ministro”, referida Lei não o trata como titular de um Ministério. Além disso, é o Advogado-Geral da União, e não a instituição que o tem por chefe, que está relacionado como órgão de assessoramento imediato ao Presidente da República, nos termos do inciso VI do §1° do art. 1° da Lei Ordinária 10.683, de 2003[3].

Frise-se também que a Lei Complementar no 73, de 10 de fevereiro de 1993, que instituiu a Lei Orgânica da Advocacia-Geral da União, não a trata como um ministério nem confere o tratamento de ministro ao Advogado-Geral da União.

Portanto, independentemente de se analisar sob a ótica constitucional ou legal a questão do enquadramento na estrutura do Estado Brasileiro da Advocacia-Geral da União, não se pode conferir a essa instituição o status de Ministério ou de órgão da Presidência da República, como se observa infelizmente no sítio da Presidência da República e no Diário Oficial da União. Que a Lei Ordinária 10.683, de 2003, trate o Advogado-Geral da União como “Ministro”, colocando-o como órgão de assessoramento imediato ao Presidente da República, sem que esse tratamento decorra necessariamente dos termos constitucionais, é circunstância que não autoriza de qualquer forma os órgãos oficiais de informação a tratar a instituição AGU como um órgão integrante da estrutura do Poder Executivo.

O certo é que, dado o caráter reativo e conservador do meio jurídico, nem mesmo um quarto de século foi suficiente para se consagrar a percepção extraível diretamente da geografia da Constituição de que a AGU é uma instituição transversal aos três poderes. O Diário Oficial da União e o sítio da Presidência da República estão aí para provar que o ultrapassadíssimo art. 32 do Decreto-lei 200, de 1967, ainda sobrevive de forma absolutamente inaceitável, qual uma fantasma do Ancien Régime.

Com a palavra, o Congresso Nacional, que tem a oportunidade de, discutindo amplamente a PEC 82, de 2007, de autoria do ex-magistrado e ex-Deputado Flávio Dino, na forma do brilhante substitutivo de autoria do Deputado Lelo Coimbra (PMDB/ES), conferir explicitamente à Advocacia Pública a garantia de autonomia para bem desempenhar suas funções constitucionais de promover a representação judicial e extrajudicial de todos os poderes e funções da República, e de prestar consultoria e assessoramento ao Poder Executivo.

Assim, com a aprovação da PEC 82, quem sabe, os redatores do Diário Oficial da União e do sítio da Presidência da República e a comunidade jurídica em geral tomarão acordo quanto à natureza jurídica da AGU, sepultando, de vez, os fantasmas do regime pré-1988.


 

[1] Art. 25. Os Ministérios são os seguintes: I – da Agricultura, Pecuária e Abastecimento; II – do Desenvolvimento Social e Combate à Fome; III – das Cidades; IV – da Ciência, Tecnologia e Inovação; V – das Comunicações; VI – da Cultura; VII – da Defesa; VIII – do Desenvolvimento Agrário; IX – do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior; X – da Educação; XI – do Esporte; XII – da Fazenda; XIII – da Integração Nacional; XIV – da Justiça; XV – do Meio Ambiente; XVI – de Minas e Energia; XVII – do Planejamento, Orçamento e Gestão; XVIII – da Previdência Social; XIX – das Relações Exteriores; XX – da Saúde; XXI – do Trabalho e Emprego; XXII – dos Transportes; XXIII – do Turismo; e XXIV – da Pesca e Aquicultura.

[2] Art. 1o A Presidência da República é constituída, essencialmente: I – pela Casa Civil; II – pela Secretaria-Geral; III – pela Secretaria de Relações Institucionais; IV – pela Secretaria de Comunicação Social; V – pelo Gabinete Pessoal; VI – pelo Gabinete de Segurança Institucional; VII – pela Secretaria de Assuntos Estratégicos; VIII – pela Secretaria de Políticas para as Mulheres; IX – pela Secretaria de Direitos Humanos; X – pela Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial; XI – pela Secretaria de Portos; e XII – pela Secretaria de Aviação Civil. XIII – pela Secretaria da Micro e Pequena Empresa. § 1o Integram a Presidência da República, como órgãos de assessoramento imediato ao Presidente da República. I – o Conselho de Governo; II – o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social; III – o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional; IV – o Conselho Nacional de Política Energética; V – o Conselho Nacional de Integração de Políticas de Transporte; VI – o Advogado-Geral da União; VII – a Assessoria Especial do Presidente da República; X – o Conselho de Aviação Civil. § 2o Junto à Presidência da República funcionarão, como órgãos de consulta do Presidente da República: I – o Conselho da República; II – o Conselho de Defesa Nacional. § 3o Integram ainda a Presidência da República: I – a Controladoria-Geral da União.

[3] A AGU, nos termos do art. 131 da Constituição, presta consultoria e assessoramento jurídico não apenas ao Presidente da República, mas a todo o Poder Executivo.
 

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