Passado a Limpo

O pedido de indenização de víuva de construtor de estrada de ferro em 1912

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da USP doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP professor e pesquisador visitante na Universidade da California (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

12 de junho de 2014, 8h00

Spacca
Arnaldo Godoy - 21/11/2013 [Spacca]Em 1912 o Consultor-Geral da República respondeu a uma consulta formulada pelo ministro da Viação e Obras Públicas, referente a viúva que pretendia receber da União indenização por despesas que o marido fizera em construção de estrada de ferro no Rio Grande do Sul. O caso registra o nível da particularidade de questões que passavam pela Consultoria-Geral da República.

Lê-se no parecer de Rodrigo Octávio que o finado havia contratado com a Administração a construção de fragmento de estrada de ferro no Rio Grande do Sul. Havia acordado que deteria direitos de exploração de parte da estrada por 10 anos. Prestou caução, iniciou a obra e chegou a concluir parte considerável da extensão do trecho avençado. Faleceu, no entanto, antes do término da obra.

Não havia previsão contratual para o evento morte ocorrido. Assim, pura e simplesmente, considerou-se rescindido o contrato, com o falecimento do contratante. A viúva pretendeu receber meação, ou a manutenção do contrato ou, ainda, indenização pelo que o marido havia gasto na construção da obra.

A Administração reconheceu valores devidos, adequadamente apurados, e deu início a procedimento para pagamento. Os herdeiros foram chamados. A viúva compareceu à chamada, com toda a documentação exigida.

No entanto, sustentou Rodrigo Octávio, a viúva não detinha legitimidade para pleitear o recebimento dos valores apurados. O Consultor-Geral da República opinou que a viúva não representava o espólio. É que a documentação apresentada fora produzida em Juízo de Órfãos e Ausentes, que não detinha competência para oficiar no caso, porque não havia interesse de menores ou de interditos.

Além do que, o de cujus fora domiciliado em outra comarca que, rationae loci, detinha competência em tema de sucessão do referido. Havia testamento produzido em outra comarca, com testamenteiro devidamente nomeado. Nula, assim, a nomeação da viúva como titular do espólio, dado, entre outros, o testamento deixado pelo de cujus. Segue o parecer.

Gabinete do Consultor Geral da República – Rio de Janeiro, 22 de dezembro de 1912.

Senhor Ministro de Estado da Viação e Obras Públicas. – A questão submetida ao meu honrado antecessor pelo Aviso nº 167, de 4 de outubro de 1911, importa em verificar se D. Anunciação Coelho Alegre, que se diz viúva de Carlos Alegre, apresentou provas bastantes para legitimá-la perante a Administração Pública como pessoa competente para tratar de interesses da herança daquele finado, transigir sobre eles a receber a importância de tal transação.

Do respectivo processo, que acompanha aquele Aviso, se apura que em 30 de março de 1899 o Governo Federal contratou com Carlos Alegre a conclusão de um trecho do prolongamento da Estrada de Ferro de Porto Alegre a Uruguaiana, entre Carvoracy e Alegrete, obra que deveria ficar terminada no prazo de um ano, fazendo-se-lhe, pelo mesmo ato, concessão por 10 anos de uso e gozo da mesma estrada entre Uruguaiana e Alegrete.

O contratante e concessionário fez uma caução de 10 contos, entrou com as quotas de fiscalização, na importância de 2:910 $, e pôs mão á obra, já tendo concluído em tráfego 9.390 metros quando faleceu no dia 26 de novembro de 1899.

Não contendo o contrato cláusula alguma sobre o caso de falecimento do contratante, foi ele considerado virtualmente rescindido. Suspensos os serviços de construção e tráfego, foi este, entre Uruguaiana e Inhanduhy, provisoriamente contratado com a Brazil Great Southerm Railway Company.

Entretanto, a viúva de Carlos Alegre, ressalvando os seus direitos de meeira e herdeira de seu finado marido, requereu que fossem acautelados os interesses respectivos. A esse requerimento deu o então Ministro da Viação o despacho de 30 de janeiro de 1900, que reconhecendo que do contrato apenas decorriam direitos e obrigações pessoais, considerou extintos em relação ao contratante pelo fato de sua morte.

Em virtude dessa decisão, não tendo sido mantido o contrato com a viúva conforme esta requereu, foi aberta concorrência para conclusão das obras e tráfego da estrada, o que tudo tinha sido objeto do contrato de Carlos Alegre, serviços esses que afinal passaram a mãos de terceiros.

Não me cabe aqui apreciar se essa solução foi jurídica. Estamos simplesmente em face do fato e é dele que decorre a situação atual a respeito de que me compete emitir opinião.

Considerando rescindido o contrato de Carlos Alegre, pensou então sua viúva em se fazer indenizar das despesas feitas por seu marido com a construção contratada. Os termos dessa reclamação foram devidamente estudados, sendo afinal apurado, como correspondente às obras executadas pelo finado Carlos Alegre, a quantia de 165:179$211, conforme as medições finais feitas logo após o falecimento do contratante, por ordem do respectivo engenheiro fiscal.

Fixado este ponto, foi pelos competentes funcionários desse Ministério sugerido o alvitre de ser a questão liquidada pelo pagamento dessa quantia, uma vez obtida a prova de quem seria a pessoa competente para representar os interessados nessa liquidação e feita renúncia de qualquer outra reclamação a respeito deste caso.

Na conformidade desse alvitre proferiu o Ministro de então o despacho de 21 de outubro de 1910, mandando convidar os herdeiros de Carlos Alegre a comparecerem à Diretoria de Obras, por si ou por meio de seus representantes legais, a fim de dizerem sobre o alvitre proposto. Apresentou então D. Anunciação Coelho Alegre, na qualidade de viúva e inventariante de Carlos Alegre, os requerimentos de 24 de outubro de 1910 e de 9 de junho de 1911, nos quais, dizendo-se pronta a assinar o acordo sugerido, pedia que lhe fosse entregue a quantia apurada, na qualidade de inventariante, meeira e única herdeira, obrigando-se ainda a prestar contas no respectivo inventário.

Esses requerimentos da viúva de Carlos Alegre foram instruídos, o primeiro com:

1º) alvará do Juízo da 1º Vara de Órfãos e Ausentes desta Capital autorizando-a entrar em acordo com o Governo e nomeando corretor para receber a respectiva importância e,

2º) certidão do termo de inventariante;

E o segundo com:

3º) certidão, passada pelo Escrivão do inventário, nesta cidade, e pelo qual se vê que foram publicados editais com o prazo de 90 dias, chamando os herdeiros de Carlos Alegre, não tendo comparecido pessoa alguma pretendendo essa qualidade, e,

4º) procuração, passada em tabelião pela dita senhora, conferindo plenos poderes a Manfredo Coelho.

Assim expostos os fatos e tendo estudado atentamente os papéis que acompanharam o referido Aviso, parece-me fora de dúvida que não se pode reconhecer na requerente qualidade para representar o espólio de Carlos Alegre.

O Juízo de Órfãos e Ausentes desta cidade é incompetente para nele se processar o inventário de Carlos Alegre, não só porque não existem herdeiros menores ou interditos, nem começou o inventário por arrecadação do curador de ausentes, casos únicos em que poderia o inventário correr por aquela Vara; como porque não era domiciliado o inventariado nesta cidade, mas no Estado do Rio Grande do Sul, e o juízo do inventário é o domicílio do de cujus.

Entretanto quando assim não fosse, em geral, ainda insanavelmente nulos seriam os atos praticados pelo referido Juízo, por isso que, dos documentos que acompanharam o ofício de 1º de junho de 1908, do Sr. Diretor da Repartição Federal de Fiscalização de Estradas de Ferro, se evidencia que:

1º) Carlos Alegre faleceu com testamento que foi aberto na cidade de Uruguaiana;

2º) nesse testamento declara que estava separado da mulher desde 1879, nomeia testamenteiro, faz legado e reconhece dívida;

3º) na mesma cidade se iniciou o inventário, sendo testamenteiro e inventariante Luiz Bettinelli;

4º, procedeu-se á partilha dos bens do finado na qual foi considerada herdeira a mãe de Carlos Alegre, sendo certo, entretanto, que no testamento ele declarou que seus pais eram mortos.

Acresce que o Governo não poderia desconhecer a qualidade de Luiz Bettinelli para representar o espólio de Carlos Alegre, pois foi ao procurador dele nessa qualidade que, deferindo-se um requerimento por ele feito, foi entregue, em 27 de dezembro de 1900, a caução de 10 contos que o finado Carlos Alegre havia feito (Aviso do Ministro da Fazenda nº 86, de 28 de setembro de 1900, transcrito neste processo a fl. 12 v. e 13 e informação de fl. 12 v.).

Em vista do exposto é evidente que nula é a nomeação de inventariante de D. Anunciação Coelho Alegre, como nulo é o alvará exibido.

Carlos Alegre morreu com testamento e seu inventário corre na cidade de Uruguaiana, Juízo da Provedoria e Casamentos, cartório do escrivão Antonio Ferreira do Couto.

Só com autorização desse Juízo, onde legalmente se devem apurar quais são os herdeiros e interessados no espólio, se poderá regularmente liquidar as responsabilidades do Estado para com Carlos Alegre.

Tal é, Senhor Ministro, o meu parecer que submeto ao vosso esclarecido critério.

Devolvendo-vos os papéis que acompanharam o vosso mencionado Aviso, tenho a honra de vos reiterar os meus sentimentos de elevada estima e distinta consideração. – Rodrigo Otávio. 

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    é livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC- SP e advogado, consultor e parecerista em Brasília, ex-consultor-geral da União e ex-procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

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