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Financiamento de Campanha por empresas exige segurança jurídica

Autor

  • Heleno Taveira Torres

    é professor titular de Direito Financeiro e chefe do Departamento de Direito Econômico Financeiro e Tributário da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) presidente da Associação Brasileira de Direito Financeiro (ABDF) e advogado.

11 de junho de 2014, 8h00

Spacca
Todas as celeumas recentes em torno do “financiamento de campanhas eleitorais”, em grande parte, têm origem no descumprimento sistemático pelo próprio Congresso do regime de limites para as campanhas por partidos ou candidatos. De nada adianta toscos exercícios de vaticínios ou videntismos apocalípticos sobre o que gera mais ou menos corrupção no sistema eleitoral. Não é este o papel do jurista ou do homem público comprometido com as instituições do seu tempo. O certo é que o Congresso, que tem poderes para limitar gastos de campanhas segundos os cargos e as peculiaridades locais, até hoje, nunca exerceu esta competência.

E como o céu é o limite nos gastos atuais das campanhas políticas, somente empresas sedentas por negócios com o Estado são capazes de suportar os custos extravagantes das eleições políticas, a fomentar uma indústria gigantesca de sofisticados meios de difusão, mídia eletrônica e marketing, jornalistas e artistas remunerados a peso de ouro, comitês em regiões nobres, locações de aviões e todo tipo de meios de transportes, alimentação e formas várias de publicidade. Não é este o modelo de uma democracia que se pretende consolidar como participativa e adequada para atingir as melhores escolhas de quem decidirá os rumos do país.

A eficiência do sistema eleitoral será atingida ao escolher os quadros mais qualificados da política, e não aqueles dos candidatos mais ricos, individualmente, ou que sejam os mais hábeis na captação de riquezas. A culpa, definitivamente, não será do empresário, que financiará os candidatos conforme os critérios que julgar mais coerentes com seus interesses setoriais, ao menos enquanto vigora a permissão da lei. Tampouco se pode generalizar e semear desconfiança sobre todos os eleitos.

Resgatar a capacidade do sistema eleitoral de determinação da veracidade do pleito e da melhor escolha dos candidatos segue como o desafio da atualidade do nosso sistema eleitoral, para que os políticos com mandatos sejam evidências concretas de representatividade, e para que a democracia seja um princípio concretizado, não um valor simbólico. Se o país deseja mudanças, que os eleitores façam suas escolhas conscientes e responsáveis, pois disso depende a própria continuidade do Estado. Não são apenas campanhas que devem mudar, com redução de custos, mas a própria forma de compreender a função das campanhas eleitorais e o que delas se espera.

As campanhas políticas podem ter baixo custo, não ter qualquer empresa envolvida, e nelas campear a fraude e todo tipo de uso abusivo do poder econômico ou de qualquer outro meio de influência. Ilustra-o muito bem o excepcional documentário: “Porta A Porta – A Política Em Dois Tempos” (2009), do cineasta pernambucano Marcelo Brennand. Entretanto, o grau é muito diferente com o que se passa no nível das campanhas nacionais com financiamentos milionários, nos quais as chances de práticas de “rent seeking” ou demandas de “pork barrel”, dentre outras, são frequentes.

Quanto aos limites das campanhas, o artigo 17-A da Lei 9.504, de 30 de setembro de 1997, ao cuidar da “Arrecadação e da Aplicação de Recursos nas Campanhas Eleitorais”, prescreve que o Congresso deverá fixar até o dia 10 de junho de cada ano eleitoral o limite dos gastos de campanha para os cargos em disputa, observadas as circunstâncias locais. Contudo, “não sendo editada lei até a data estabelecida, caberá a cada partido político fixar o limite de gastos, comunicando à Justiça Eleitoral, que dará a essas informações ampla publicidade.” Com isso, o Congresso Nacional deixa de exercer sua função de árbitro dos limites financeiros das eleições, transferindo seus poderes para que os partidos o definam livremente.

Aparentemente, ao Tribunal Superior Eleitoral cumpriria uma burocracia de simplesmente dar “publicidade” aos limites fixados pelos próprios partidos. Na prática, porém, ocupa-se aquele tribunal da necessidade de regular os critérios e procedimentos a serem adotados, por meio do seu poder regulamentar, tão bem estudado por Manoel Carlos de Almeida Neto, no seu excepcional “Direito Eleitoral Regulador”. Desse modo, ainda que o TSE deseje manter-se deferente ao Congresso, a anomia na matéria impõe uma ação reguladora necessária, pela renúncia tácita aos limites de gastos para as eleições.

A lei deixa claro que sanções serão aplicadas sempre que possam ser provadas fraudes que resultaram em gastos superiores aos valores máximos de gastos declarados nos pedidos de registro de candidatos, pelos partidos e coligações, como prescreve o artigo 18, e cujo parágrafo 2º aduz que “gastar recursos além dos valores declarados nos termos deste artigo sujeita o responsável ao pagamento de multa no valor de cinco a dez vezes a quantia em excesso”. Diante disso, pela falta de fixação legislativa do limite das campanhas, tudo fica a depender do controle sobre os valores declarados.

Por parte da empresa que doa, porém, remanesce a preocupação quanto ao limite da respectiva doação, sobre o que pouco ou nenhuma segurança jurídica a ampara. Nesse particular, a ação de órgãos do Estado não poderia ser mais contraditória. Se fosse certa a argumentação — falsa por premissa — de que campanhas financiadas por empresas seriam o ideal e preferível para evitar “caixa dois” e ocultações, então a interpretação da lei não seria restritiva como tem sido, acompanhada de aberta perseguição aos doadores como se estes fossem agentes de crimes só por fazer doações a campanhas políticas.

Enquanto perdurar o regime legal autorizativo do artigo 81 da Lei 9.504/97, porém, deve-se aplicar o direito com justiça e rigores de segurança jurídica para aqueles que, com confiança jurídica no sistema, decidem contribuir, por ideologia ou por interesses.

Por conseguinte, urge que se empregue interpretação especificadora dos reais limites da lei eleitoral, segundo seus valores e princípios, sob a égide de um princípio de boa fé. Isto, sem prejuízo dos controles sobre eventuais ilícitos cometidos.

A definição do limite a ser doado por pessoa jurídica em campanhas eleitorais encontra-se no parágrafo 1º do artigo 81, da Lei 9.504/97, a saber:

“Artigo 81. As doações e contribuições de pessoas jurídicas para campanhas eleitorais poderão ser feitas a partir do registro dos comitês financeiros dos partidos ou coligações.

§ 1º. As doações e contribuições de que trata este artigo ficam limitadas a dois por cento do faturamento bruto do ano anterior à eleição.”

Destarte, o limite individual, por empresa, será aquele de 2% sobre o faturamento bruto do ano anterior à eleição. Enquanto não concluído o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 4650, proposta pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, que visa a definir restrições ao financiamento de campanhas eleitorais (Leis 9.096/1995 e 9.504/1997), importa saber qual o conceito do termo faturamento bruto, que não se vê definido em lei “eleitoral”, mas tem sido buscado naquelas de caráter tributário, quanto ao PIS/Cofins, por se tratar de equivalente à sua base de cálculo, de forma absolutamente inadequada e conflitante.

Um exemplo do alcance deste problema é o crescente número de ações distribuídas no TSE que visam discutir as sanções relativas à superação do limite imposto pela Legislação Eleitoral, em casos de doação de pessoas jurídicas para o financiamento de campanhas. Essas ações chegam ao TSE, majoritariamente, com a pretensão discutir o conceito de “faturamento bruto”, já que a divergência doutrinária e jurisprudencial sobre seu conceito é manifesta. Essa discussão está presente em casos nos quais a pessoa jurídica sofre multa e outras medidas sancionatórias, por ultrapassar o limite imposto pela lei, seja por empresas de grupos econômicos e holdings.

A jurisprudência insiste em adotar a concepção de “faturamento bruto” como equivalente à de “receita bruta”, em paralelo ao regime do PIS/Cofins.

Segundo o artigo 81 da Lei 9.507/94, a fonte lícita da doação e a necessidade do efetivo recebimento da receita gerada pela atividade econômica da pessoa jurídica, em conjunto, definem a validade da doação. A Lei eleitoral, porém, não delimitou o conceito de “faturamento bruto”, que necessita ser construído a partir de outros com diferentes amplitudes, como Faturamento Bruto, Receita Bruta e Receita para fins contábeis.

Deveras, entre o conceito de “faturamento bruto” como simples soma algébrica de todas as “faturas emitidas” e aquele das contribuições ao do PIS/Cofins, preferível, este, mas unicamente para algumas empresas, segundo o setor de atuação, pela suposta “ampliação” para a noção de “receita bruta”. Ocorre, porém, que a legislação do PIS/Cofins traz uma série de restrições a receitas que compõem a base de cálculo, persistem regimes especiais de redutivos da base de cálculo e o próprio Supremo já reconheceu receitas que não a integram, como é o caso das “receitas financeiras”. Portanto, a seguir com esse critério, as injustiças serão sempre frequentes, em face da (i) contrariedade de valores que informam a lei tributária (base de cálculo deve ser especificada na lei) e a lei eleitoral (ao não fazer restrição, supõe-se que seja a noção contábil que informa a apuração do lucro da empresa), do (ii) caráter discriminatório sobre contribuintes e empresas doadoras, além de (iii) arbitrário, pois a lei eleitoral nunca determinou semelhante aplicação por analogia.

A confirmar este entendimento, o mesmo TSE, que já adotou conceito de “faturamento bruto” como relacionado com aquele de “receita bruta”, haurido do Direito Tributário para ser usado como critério de norma sancionatória do Direito Eleitoral, já fixou o entendimento segundo o qual as multas eleitorais não são de natureza tributária, tornando a equiparação dos conceitos ainda mais discutível.

Outro aspecto a se observar é a inexistência da expressão “faturamento bruto” na legislação das contribuições ao PIS e à Cofins, que estabelece apenas conceitos de “faturamento”, “receita” e “receita bruta”. Ao tempo que a Lei 9.507/94 refere-se a “faturamento bruto”, o legislador demonstra ter escolhido expressão com deliberada intenção de afirmar significado diverso daquele conceito entabulado pela legislação tributária. Destarte, não se justifica, com a devida licença daqueles que pensam de modo diverso, como é o caso de decisões do STF, que o conceito de “faturamento bruto” seja equivalente ao de “receita bruta”, inerente ao regime do PIS/Cofins.

Não há dúvidas que a segurança jurídica subjetiva impõe que sejam observados os princípios da boa-fé e confiança, assim como aquele do in dubio pro reu, que não podem ser abandonados, quando ilícitos são imputados a quem cumpre os requisitos materiais definidos na lei e demonstra que sob a égide da apuração contábil para determinação do lucro da empresa sua doação verifica-se no limite de 2% sobre o faturamento bruto do ano anterior à eleição.

Como dito, o termo “faturamento bruto” pode restringir-se ao mero “faturar”, que significa extrair faturas, ou ao somatório das diversas faturas, que corresponde à designação das mercadorias ou artigos vendidos, com a indicação da quantidade e espécie, além do respectivo preço. Seria este o sentido mais restritivo do termo.

De outra banda, Bulhões Pedreira define receita como a "quantidade de valor financeiro, originário de outro patrimônio, cuja propriedade é adquirida pela sociedade empresária ao exercer as atividades que constituem as fontes do seu resultado". E prossegue: "Receita é valor financeiro cuja propriedade é adquirida por efeito do funcionamento da sociedade empresária. As quantidades de valor financeiro que entram no patrimônio da sociedade em razão do seu financiamento e capitalização não são receitas: na transferência de capital de terceiros a sociedade adquire apenas o poder de usar o capital; na de capital próprio adquire a propriedade de capital destinado a aumentar seu capital estabelecido". Nesta vertente, as receitas podem ser derivadas do exercício da função empresarial ou de outras fontes, previstas para o custeio da atividade produtiva da empresa. No primeiro caso, se a empresa produz outro tipo de bem econômico, a sociedade vende ou fornece produtos recebendo em contraprestação "receita bruta" de venda de bens ou de serviços, enquanto valor financeiro cuja disponibilidade adquire com a venda dos bens ou prestação dos serviços.

O “faturamento” era utilizado como base de cálculo das contribuições para a se-guridade social, nos termos do artigo 195, I, ‘a’ da Constituição Federal, até a edição da Emenda Constitucional 20/98, que modificou o dispositivo constitucional para incluir o termo “receita”.

O “faturamento” tem campo semântico assaz diverso do conceito genérico de "receita", o qual, inclusive, encontra-se positivado, abrangendo, além da receita obtida com a comercialização ou prestação de serviços — que são as chamadas receitas operacionais (artigo 187, III, da Lei 6.404/1976). Desde o julgamento da Ação Direta de Constitucionalidade 1, o STF delimitou que o conceito de faturamento cinge-se à receita de venda de mercadorias e prestação de serviços.

Contudo, a forma hoje utilizada pela Cofins e pelo PIS/Pasep contempla várias restrições à forma de apuração da base de cálculo, como as receitas financeiras propriamente ditas, ou seja, as auferidas pela pessoa jurídica em aplicações financeiras ou por meio de contratos de mútuo.

Em 2005, no julgamento do recurso extraordinário 346.084, houve amplo debate no Plenário do STF sobre o faturamento e sua ampliação pelo artigo 3º, parágrafo 1º da Lei 9.718/1998. Nesta oportunidade, pacificou-se o entendimento de que “faturamento” e “receita bruta” são sinônimos e referem-se exclusivamente às receitas de vendas de mercadorias ou prestação de serviços. Em novembro de 2013, ao analisar a base de cálculo das contribuições ao PIS e da COFINS, o STF reiterou o entendimento da jurisprudência consolidada naquela Corte e decidiu que “receita bruta” e “faturamento”, previs-tos no artigo 195, I da Constituição Federal antes da Emenda Constitucional 20/98, são sinônimos, como se vê na ementa do acórdão Agravo Regimental no Recurso Extraor-dinário 684.092-PR, pela relatora, ministra Rosa Weber:

“(…) O entendimento adotado no acórdão recorrido não diverge da jurisprudên-cia firmada no âmbito deste Supremo Tribunal Federal, no sentido de que receita bruta e faturamento são sinônimos, significando ambos o total dos valores aufe-ridos com a venda de mercadorias, de serviços ou de mercadorias e serviços. Precedentes. Agravo regimental conhecido e não provido.”

No final de 2013, em julgamento com repercussão geral, o STF decidiu também que o conceito de receita para fins tributários difere do conceito contábil. Para a incidência das contribuições sobre a totalidade das receitas, na forma do artigo 195, I da Constituição Federal após a edição da Emenda Constitucional 20/98, o conceito de receita é “o ingresso financeiro que se integra no patrimônio na condição de elemento novo e positivo, sem reservas ou condições”. E este é o motivo da nossa perplexidade com qualquer hipótese de equivalência entre estes modelos de aplicação da lei tributária com os valores e ausência de restrições previstas para a aplicação da lei eleitoral. São coisas distintas e inconfundíveis.

A noção de “faturamento bruto”, coetânea com a realidade das empresas doadoras, expressa-se pelo lucro apurado. E, nesse particular, apenas o conceito contábil e mercantil de “receita operacional bruta” pode ser adequado para equilibrar os valores de confiança e de segurança jurídica do doador com os princípios da legislação eleitoral. Esta forma de receita é ajustada pelas diminuições de patrimônio líquido, no item deduções da receita.

A Lei das sociedades anônimas (Lei 6.404/76), em sua “V Seção” distingue a receita bruta e a receita líquida, ao tratar sobre a Demonstração do Resultado do Exercício, nos seguintes termos:

“Art. 187. A demonstração do resultado do exercício discriminará:
I – a receita bruta das vendas e serviços, as deduções das vendas, os abatimentos e os impostos;
II – a receita líquida das vendas e serviços, o custo das mercadorias e serviços vendidos e o lucro bruto;”

A Lei 4.506 de 1964 dispõe sobre o imposto que recai sobre as rendas e proventos de qualquer natureza e, em seu artigo 44, define o conceito de receita operacional bruta e relaciona suas hipóteses, destacando o “produto da venda dos bens e serviços”:

“Art. 44. Integram a receita bruta operacional:
I – O produto da venda dos bens e serviços nas transações ou operações de conta própria;
II – O resultado auferido nas operações de conta alheia;
III – As recuperações ou devoluções de custos, deduções ou provisões;
IV – As subvenções correntes, para custeio ou operação, recebidas de pessoas jurídicas de direito público ou privado, ou de pessoas naturais.”

O conceito de “receita bruta operacional” reflete, assim, com melhor precisão, a capacidade econômica da pessoa jurídica, na medida em que alcança, como “faturamento bruto”, o resultado auferido nas operações de conta alheia; as recuperações ou devoluções de custos, deduções ou provisões; e as subvenções correntes, para custeio ou operação, recebidas de pessoas jurídicas de direito público ou privado, ou de pessoas naturais.

A lei eleitoral exige unicamente que doação seja proveniente de fonte lícita, identificável e que exista, efetivamente, a disponibilidade do doador sobre a quantia doada, para que dela possa dispor sem qualquer abuso de poder econômico, no limite de 2% sobre o faturamento bruto do ano anterior à eleição.

No caso do Direito Eleitoral, em contraposição ao Direito Tributário, deve prevalecer sempre a determinação da real disponibilidade econômica do doador, porquanto o doador deve ter provas de haver recebido, previamente, a receita gerada por sua atividade econômica e que possa dispor desta para a doação. Tendo em vista essa diferenciação de objetivos, o termo “faturamento bruto” contido no artigo 81 da Lei das Eleições deve ser interpretado segundo o conceito de “receita bruta operacional”.

Portanto, para os fins da Lei do Direito Eleitoral, com o intuito de aferir os limites de doação (previsto no artigo 81 da Lei 9.504/97), deve-se partir da efetiva capacidade do doador, sendo irrelevante que a receita seja ou não tributável. Logo, admite-se que os parâmetros informados à Receita Federal possam servir de índice para aferição do faturamento bruto da pessoa jurídica doadora; mas sempre com prevalência da “receita bruta operacional”, prevista na Lei 4.506/64, a partir de provas das empresas doadoras, para determinar o limite legal de faturamento bruto do ano anterior à eleição.
 

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