Distorções no Direito

Ficções adotadas como regras podem afastar a incidência da realidade

Autor

  • Diogo Rais

    é advogado professor de Direito Eleitoral no Mackenzie e doutor e mestre em Direito Constitucional pela PUC-SP.

10 de junho de 2014, 6h53

A tentativa de aplicar uma norma jurídica sem atentar à sua finalidade tende a gerar distorções no direito. O Supremo Tribunal Federal enfrentou uma situação dessas durante o julgamento do Recurso Extraordinário 758.461 em maio deste ano. Estava em questão se a súmula vinculante 18 do STF se aplicava para vedar mandato consecutivo da viúva de ex-prefeito. No caso concreto, o prefeito do município de Pombal (PB) eleito em 2004 faleceu no curso do mandato, sendo sucedido até o final do mandato, pelo vice-prefeito. Nas eleições de 2008 a viúva concorreu contra esse vice-prefeito e venceu as eleições. Após o cumprimento integral do mandato, ela foi reeleita em 2012.

Porém, o Tribunal Superior Eleitoral indeferiu o seu registro de candidatura para este novo mandato determinando o imediato afastamento do cargo, sob a alegação de que a eleição de 2012 configuraria um terceiro mandato, ou seja, aplicando a inelegibilidade reflexa e a vedação de terceiro mandato pelo mesmo núcleo familiar. Essa decisão parece incoerente com a manifestação que o TSE havia exposto na Consulta 54-40, de extrema semelhança com o caso do município de Pombal, em que não aplicou a inelegibilidade reflexa. O Tribunal, porém, entendeu que se tratavam de casos distintos e que deveria ser indeferido o registro da candidatura da prefeita de Pombal, com base na Súmula Vinculante 18 do STF e o art. 1.571 do Código Civil.

A questão foi ao Supremo Tribunal Federal em janeiro de 2013, no qual o presidente em exercício ministro Ricardo Lewandowski, suspendeu a decisão de afastamento, retornando ao cargo a prefeita de Pombal.

Sob relatoria do ministro Teori Zavascki na 2ª Turma do STF, a decisão liminar foi mantida, assim como foi mantida a requerente no cargo de prefeita de Pombal, contrariando a decisão original do TSE e negando a aplicação da inelegibilidade reflexa que veda a reeleição. Em 22 de maio deste ano a questão foi levada ao Plenário e confirmada por unanimidade afastando a aplicação da Súmula Vinculante 18 do STF.

No TSE os ministros que defenderam a tese vencedora entenderam que a súmula vinculante 18 não diferenciou o motivo da dissolução, ao passo que o Código Civil traz o evento morte como um dos motivos de dissolução, portanto, segundo a tese vencedora neste caso no âmbito do TSE, deveria ser aplicada a súmula vinculante não afastando a inelegibilidade reflexa. Essa decisão foi revertida pelo STF levando em conta que o evento da morte não integra as decisões intencionais de agente que visam burlar as regras eleitorais. O enunciado da súmula vinculante em questão é uma norma contra fraude eleitoral e perpetuação da manutenção do poder político nas mãos de oligarquias familiares. Levando em conta ainda que a atual Prefeita teve que concorrer contra aqueles que conduziram o mandato do seu falecido marido, não havia uma continuidade da manutenção do poder nas mesmas mãos.

O STF se atentou aos detalhes do caso concreto, enquanto o TSE deu força preponderante às ficções jurídicas. Como já foi escrito em outra oportunidade (RT n. 942, p. 253-6) o problema é que as ficções, sejam jurídicas ou não, serão sempre ficções e adotadas indiscriminadamente como regras, podem afastar a incidência da própria realidade. Neste caso a candidata já era viúva daquele que poderia gerar a inelegibilidade, já possuía nova família (inclusive com filhos) havia concorrido (e vencido) o próprio sucessor de seu ex-marido (o antigo vice-prefeito) compondo — por óbvio — chapa diversa daquela iniciada pelo marido já falecido, e no presente caso, buscou o registro de sua candidatura à reeleição, no mínimo, após quatro anos do falecimento do ex-prefeito, ou seja, em uma situação em que a pessoa que seria a fonte da inelegibilidade reflexa estava falecida há mais de um mandato e a candidata foi vitoriosa na reeleição aplicava-se a vedação ao terceiro mandato, considerando — fictamente — que o primeiro mandato teria sido dela e não do ex-marido, por isso entre um e outro, fico com o autor de A Caçada ao Outubro Vermelho Tom Clancy ao afirmar que: “a diferença entre ficção e realidade é que a ficção tem que fazer mais sentido”. 

Autores

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    é doutorando em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo com Bolsa do Projeto "CNJ Acadêmico" da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) em parceria com o Conselho Nacional de Justiça e em convênio com a Universidade Presbiteriana Mackenzie, Mestre em Direito Constitucional pela PUC-SP com cursos de extensão em Justiça Constitucional na Université Paul Cézanne. Colaborador do Supremo em Pauta da Direito GV.

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