Constituição e Poder

O Direito entre a segurança dos precedentes e a legitimidade da Justiça

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9 de junho de 2014, 22h11

Spacca
Distanciando-se do sonho tão nobremente acalentado por Hans Kelsen, de uma teoria do direito que prescindisse de todo e qualquer direito positivo, isto é, de uma teoria que não precisasse de qualquer ordem jurídica concreta para explicar o fenômeno do direito, no Direito Constitucional, entretanto, tem-se concordado com o fato de que os princípios próprios do Estado de Direito e os direitos fundamentais, ainda que dispostos em abstrato, aparentemente, apenas se permitem compreender e explicar de forma adequada quando consideradas constituições e sistemas políticos historicamente existentes. Daí a exigência do professor Canotilho de uma teoria constitucionalmente adequada.

Dizendo-o com Jürgen Habermas, os princípios jurídicos do Estado Democrático assim como os direitos fundamentais apenas podem ser interpretados e incorporados em ordens jurídicas concretas, ou seja, através do seu direito constitucional positivado. Em outros termos, não se pode compreender esses princípios senão por intermédio da realidade constitucional como de fato existente, através de suas instituições e processos políticos concretos.

Essa constatação é de fundamental importância, uma vez que as variadas ordens jurídicas não apenas representam variadas conformações da realização de direitos e princípios existentes em diversas experiências constitucionais, como também refletem teorias e paradigmas jurídicos diversos[1]. Entretanto, não obstante essa necessária consideração da realidade, há que se concordar com Habermas quando afirma que uma teoria da justiça que pretenda sustentar-se do ponto de vista normativo e que queira harmonizar-se, para além das instituições e tradições existentes, com princípios de uma sociedade verdadeiramente justa ou, pelo menos, bem ordenada, certamente, terá que responder, de forma racional, como relacionar a ordem jurídica concreta com uma ideia de direito que se possa justificar racionalmente [2]. Sem isso o que costumeiramente se irá verificar – olhem para o Brasil – é a presença de teorias jurídicas completamente desconectadas da realidade, paradoxalmente, convivendo com processos decisórios que se revelam absolutamente descompromissados com qualquer padrão coerente de justiça e correção.

A tarefa de conformar uma eventual teoria do direito (racionalmente legítimo) com a realidade vivenciada em qualquer país é, entretanto, absolutamente difícil, pois exatamente nesse plano, segundo Habermas, emerge a tensão historicamente reiterada entre a efetividade e a validade (diríamos, legitimidade) do direito. Dificilmente, teorias da justiça permitem-se adaptações consistentes a sutilezas de fenômenos normativos concretos e, mais dificilmente ainda, ordens jurídicas existentes aceitam conformar-se a padrões de teorias racionalmente construídas.

Nós, os operadores do Direito (advogados, juízes e promotores) conhecemos bem as dificuldades que se apresentam para todos que pretendam alcançar, por intermédio da jurisdição, um correto equilíbrio entre a segurança jurídica, que se deve esperar de decisões judiciais, e o anseio absolutamente humano de que essas mesmas decisões nos possam convencer de que são, para além de ajustadas a precedentes judiciais, legítimas e corretas para o caso concreto. No preciso dizer de Habermas, a nossa experiência e prática do Direito têm permanentemente sido marcadas pela tensão (Spannung) entre facticidade e validade (legitimidade), que se revela como tensão entre a segurança jurídica e a exigência de que órgãos jurisdicionais tomem decisões corretas atualizadas, por assim dizer, para o caso concreto[3]. De fato, não há magistrado que não se confronte com a seguinte aporia: como realizar a justiça no caso concreto sem romper a coerência com a normalidade (repetição) de decisões preteritamente proferidas, nomeadamente, quando nos pareça impossível a confirmação de ambos os vetores?

Ao proporcionar a efetivação de expectativas de condutas sancionadas pelo Estado, confirmando orientações e precedentes já pacificados, o direito vigente concretiza o ideal da segurança jurídica; por outro lado, através de processos racionais de disposição e aplicação do direito, atento às circunstâncias especiais do caso concreto e aos princípios fundamentais de uma ordem justa, confere-se legitimidade àquelas expectativas de condutas então estabilizadas. O juiz e os demais órgãos jurisdicionais, portanto, têm que demonstrar que suas decisões, além de não desconsiderarem sua própria jurisprudência ou os precedentes de outros tribunais, simultaneamente, mostram-se corretas e legítimas para o caso concreto à luz de princípios de uma ordem jurídica que se pretende justa – à luz dos princípios e valores básicos hoje positivados na própria Constituição).

A dificuldade, contudo, na sempre sábia advertência de Habermas, desse encontro entre a ideia de direito e a realidade normativa decorre, em primeiro lugar, do fato de que nem sempre os procedimentos de aplicação e disposição do direito se verificam de forma simples.

Por um lado, é certo que o princípio da segurança jurídica exige, no dizer de Habermas, decisões tomadas consistentemente com um padrão mínimo de coerência com precedentes já pacificados. Contudo, não se pode negar, o magistrado acaba tendo de buscar coerência no quadro de uma ordem jurídica que se apresenta como um entrelaçamento obscuro de pretéritas decisões do legislador ou da jurisprudência, ou, no caso do Commom Law, segundo tradições existentes num sistema de direito consuetudinário. Em outras palavras, nem sempre a jurisprudência, ou mesmo o direito legislado, promove e atende o postulado da segurança jurídica. Refira-se o caso brasileiro, em que os tribunais, inclusive os superiores, não parecem muito predispostos a homenagear sua própria jurisprudência.

Por outro lado, a exigência de legitimidade (ideia de uma ordem justa) reclama decisões que não podem apenas harmonizar-se com o tratamento de casos análogos no passado, ou com o sistema jurídico vigente, pois também devem ser de fato fundamentadas racionalmente de tal modo que possam ser aceitas como decisões racionais pelo conjunto dos que compartilham aquela ordem jurídica. Em outros termos, vinculando-se por assim dizer ao horizonte de um futuro presente (Habermas), o juiz pretende conferir validade às suas decisões também à luz de regras e princípios legítimos. Nem sempre as circunstâncias do caso concreto permitem a sua subsunção, sem mais, à lógica e à normalidade de uma jurisprudência construída no passado com base em situações aparentemente análogas. Por isso, avalia Habermas, querendo ou não, em alguma medida, se exige das autoridades judiciais que, ao fundamentar suas decisões, se emancipem das contingências do contexto de surgimento das normas jurídicas que concretamente devem aplicar[4] para atualizar o padrão de justiça e correção de suas decisões.

Dificilmente um juiz aceitaria proferir uma decisão que, não obstante prestando homenagem à jurisprudência prevalecente, considerada a conjuntura histórica de sua decisão, fosse considerada abertamente injusta. Ainda que mediatamente, a decisão judicial, embora ajustada do ponto dos precedentes, deve legitimar-se do ponto de vista de critérios mínimos de uma visão atualizada de justiça. Mesmo no Commom Law, abra-se a porta para essa atualização. Só assim, com um mínimo de legitimidade e correção, numa ordem democrática, as decisões jurídicas podem, a médio e a longo prazo, pretender obediência[5]. Aliás, dessa dependência da ordem jurídica a um mínimo de aceitação e legitimidade junto aos seus destinatários nem mesmo Hans Kelsen ousaria dissentir.

Em outras palavras, contemporaneamente, um sistema de aplicação do direito já não se sustenta apenas com a demonstração da efetiva consistência interna do processo de tomada de decisão em relação a precedentes, exigindo-se-lhe, além disso, que suas decisões alcancem demonstrar que também se justificam no plano externo, ou seja, hoje as decisões jurídicas têm que demonstrar racionalmente que, além de atenderem ao critério da segurança jurídica, justificam-se também do ponto de vista da correção e legitimidade do itinerário e dos princípios perseguidos[6]. Portanto, os princípios que, anteriormente, se limitavam a servir de premissas para outras decisões, já agora, sobretudo em sistemas normativos complexos, onde costumeiramente se põem em colisão, revelam-se eles próprios carentes de justificação.

Em termos mais sintéticos, confrontadas com as circunstâncias reais de sua aplicação, as normas jurídicas (especialmente, os princípios), que anteriormente apenas se dedicavam a fundamentar outras decisões, passam agora também a submeter-se a um processo de permanente autojustificação, tendo que revelar e defender, sobretudo em casos como de colisão de princípios e direitos fundamentais, o peso e a importância que têm diante das circunstâncias concretas, para, só assim, poderem pretender primazia.

Com extrema prudência, é certo, esse rompimento com tradições postas por tribunais, ou com o ponto de vista com que operou o legislador – passagem, segundo Habermas, de uma perspectiva histórica para um ponto de vista mais sistemático – verifica-se, explicitamente, como já se disse, na transição de uma justificação interna dos julgamentos, que se ampara em premissas já predispostas, para uma justificação das próprias premissas[7]. Hoje, infelizmente, numa ordem jurídica complexa, os próprios princípios, que já formaram o lugar último da pacificação de conflitos, confrontados constantemente com princípios contrapostos e de mesma hierarquia, põem eles próprios a necessidade de justificar-se.

Para o bem ou para o mal, o aplicador da norma já não pode se contentar com as justificações antecipadas pelo legislador e, em casos excepcionais, nos chamados casos difíceis (Dworkin e Alexy), mas só neles (como as colisões de direitos fundamentais), acaba tendo que se afastar do modelo confortável de simples aplicação, que supostamente lhe oferecia o silogismo jurídico, e tem que aceitar os aportes de um procedimento como o da ponderação, que é essencialmente um modelo argumentativo. Aqui, as coisas apenas se complicam, pois, como se sabe, não são poucos – a exemplo do próprio Habermas – aqueles que negam ao método da ponderação a capacidade de reduzir consistentemente as dificuldades e os déficits de coerência dos sistemas normativos complexos.

Além disso, o problema é que o modelo da ponderação vem sendo vítima, como já escrevi aqui diversas vezes, do abuso de quem pretende substituir a legítima e indiscutível vontade do legislador, quando não há margem para dúvida, pela cambiante conformação dos interesses vertidos nos casos concretos (casuísmo). Em qualquer circunstância, e por tudo o que se disse, apenas deixo mais uma vez anotado que os casos em que o magistrado deverá convocar o método da ponderação, através do modelo argumentativo, que toma em consideração as circunstâncias e possibilidades do caso concreto, será sempre e sempre uma exceção entre as exceções[8], que, de qualquer sorte, nunca é demasiado insistir, só se viabiliza diante de uma minuciosa e fundamentada topografia da situação jurídica litigiosa. No mais das vezes, segundo meu modo de ver, depois de muito estudar o tema, o direito passa muito bem sem juízos de ponderação.


[1] Jürgen Habermas. Fäktizität und Geltung: Beiträge zur Diskurstheorie des Rechts und des demokratischen Reschtsstaats. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1998.p. 238.

[2] Jürgen Habermas. Faktizität und Geltung, p. 242. Como afirma o autor, assim disposta a questão, aquilo que, para uma teoria já pronta, se impõe como problema posterior, ou seja, o desenvolvimento de uma ideia como realidade, aqui, numa teoria jurídica, que opera no interior da esfera da validade do direito, apresenta-se como problema de partida.

[3] Jürgen Habermas. Faktizität und Geltung, p. 239-240.

[4] Jürgen Habermas. Faktizität und Geltung, p. 243.

[5] Jürgen Habermas. Faktizität und Geltung, p. 242/3.

[6] Jürgen Habermas. Faktizität und Geltung, p. 242.

[7] Jürgen Habermas. Faktizität und Geltung, p. 243.

[8] Mais uma vez, refira-se como exemplos os casos excepcionais de autênticas colisões de direitos fundamentais.

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