Dignidade humana

Nova emenda acerta ao punir uso do trabalho análogo à escravidão

Autor

  • Gustavo Filipe Barbosa Garcia

    é doutor e livre-docente pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo especialista e pós-doutor em Direito pela Universidad de Sevilla. Atua como professor universitário advogado e consultor jurídico. Foi juiz do Trabalho das 2ª 8ª e 24ª Regiões procurador do Trabalho do Ministério Público da União e auditor fiscal do Trabalho. Membro da Academia Brasileira de Direito do Trabalho.

8 de junho de 2014, 9h26

As formas de exploração trabalho humano evoluíram da escravidão, passando pela servidão e corporações de ofício, surgindo a relação de emprego, principalmente com o advento da Revolução Industrial[1].

Na Grécia, Roma e Egito da Antiguidade, o regime da escravidão era a principal forma de exploração do trabalho humano, estando inserido na estrutura do sistema econômico da época. Os escravos, os quais juridicamente eram considerados objeto de direito, trabalhavam nas tarefas braçais mais árduas, as quais não eram consideradas dignificantes ao cidadão livre.

O chamado “trabalho análogo à condição de escravo”, verificado no presente, apresenta diferenças em face da escravidão acima indicada. Esta existiu, em nosso país, até a época do Brasil Império, tendo a Lei Áurea, de 13 de maio de 1888, decretado a abolição da escravatura.

O art. 2º da Convenção 29 da Organização Internacional do Trabalho, de 1930, aprovada pelo Brasil e promulgada pelo Decreto 41.721, de 25.6.1957, ao tratar do tema, assim dispõe: 

“Para os fins da presente Convenção, a expressão ‘trabalho forçado ou obrigatório’ designarátodo trabalho ou serviço exigido de um indivíduo sob ameaça de qualquer penalidade e para o qual ele não se ofereceu de espontânea vontade”. 

Como se pode notar, nessa concepção, o trabalho escravo era o trabalho forçado em sentido estrito, ou seja, exigido sob a ameaça de sanção, com violação da liberdade de vontade. Portanto, o conceito mais tradicional de trabalho escravo equiparava-o ao trabalho forçado, dando destaque à restrição da liberdade de locomoção e de trabalho.

De acordo com o art. 1º da Convenção 105 da OIT, de 1957, ainda sobre a abolição do trabalho forçado, ratificada pelo Brasil e promulgada pelo Decreto 58.822, de 14.7.1966: 

“Qualquer membro da Organização Internacional do Trabalho que ratifique a presente convenção se compromete a suprimir o trabalho forçado ou obrigatório, e a não recorrer ao mesmo sob forma alguma; a) como medida de coerção, ou de educação política ou como sanção dirigida a pessoas que tenham ou exprimam certas opiniões políticas, ou manifestem sua oposição ideológica, à ordem política, social ou econômica estabelecida; b) como método de mobilização e de utilização da mão-de-obra para fins de desenvolvimento econômico; c) como medida de disciplina de trabalho;d) como punição por participação em greves;e) como medida de discriminação racial, social, nacional ou religiosa”. 

No plano internacional, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, prevê que “ninguém será mantido em escravidão ou servidão; a escravidão e o tráfico de escravos serão proibidos em todas as suas formas” (art. IV).

Mais recentemente, o trabalho degradante, caracterizado por péssimas condições de labor, inclusive sem a observância das normas de segurança e medicina do trabalho, também é visto como uma das modalidades do trabalho análogo à condição de escravo.

Assim, o trabalho escravo ou análogo à condição de escravo passou a ser um gênero, tendo como espécies o trabalho forçado e o trabalho degradante. Ambos são considerados atentatórios à dignidade da pessoa humana, como essência dos direitos humanos fundamentais[2].

Efetivamente, o art. 149 do Código Penal, com redação determinada pela Lei 10.803/2003, assim tipifica o crime de redução à condição análoga à de escravo: 

“Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhados forçados ou a jornada excessiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto.
Pena – reclusão, de 2 (dois) a 8 (oito) anos, e multa, além da pena correspondente à violência.
§ 1º Nas mesmas penas incorre quem:
I – cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho;
II – mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho.
§ 2º A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido:
I – contra criança ou adolescente;
II – por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem”.

 No âmbito da Organização Internacional do Trabalho, a Convenção 182, de 1999, ratificada pelo Brasil e promulgada pelo Decreto 3.597/2000, no art. 3, “a”, prevê que as “piores formas de trabalho infantil” abrange “todas as formas de escravidão ou práticas análogas à escravidão, tais como a venda e tráfico de crianças, a servidão por dívidas e a condição de servo, e o trabalho forçado ou obrigatório, inclusive o recrutamento forçado ou obrigatório de crianças para serem utilizadas em conflitos armados” (destaquei).

A respeito do tema, cabe fazer referência ao seguinte julgado do Supremo Tribunal Federal: 

“Penal. Redução a condição análoga a deescravo. Escravidão moderna. Desnecessidade decoação direta contra a liberdade de ir e vir. Denúnciarecebida.

Para configuração do crime do art. 149 do Código Penal,não é necessário que se prove a coação física da liberdade de ir e vir oumesmo o cerceamento da liberdade de locomoção, bastando a submissãoda vítima ‘a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva’ ou ‘a condiçõesdegradantes de trabalho’, condutas alternativas previstas no tipo penal.A ‘escravidão moderna’ é mais sutil do que a do séculoXIX e o cerceamento da liberdade pode decorrer de diversosconstrangimentos econômicos e não necessariamente físicos. Priva-se alguém de sua liberdade e de sua dignidade tratando-o como coisa e não como pessoa humana, o que pode ser feito não só mediante coação, mastambém pela violação intensa e persistente de seus direitos básicos,inclusive do direito ao trabalho digno. A violação do direito ao trabalhodigno impacta a capacidade da vítima de realizar escolhas segundo a sualivre determinação. Isso também significa ‘reduzir alguém a condição análoga à de escravo’.

Não é qualquer violação dos direitos trabalhistas queconfigura trabalho escravo. Se a violação aos direitos do trabalho éintensa e persistente, se atinge níveis gritantes e se os trabalhadores sãosubmetidos a trabalhos forçados, jornadas exaustivas ou a condiçõesdegradantes de trabalho, é possível, em tese, o enquadramento no crimedo art. 149 do Código Penal, pois os trabalhadores estão recebendo otratamento análogo ao de escravos, sendo privados de sua liberdade e desua dignidade.Denúncia recebida pela presença dos requisitos legais.” (STF, Pleno, Inq 3.412/AL, Rel. Min. Marco Aurélio, Red. para acordão Min. Rosa Weber, m.v., DJE 12.11.2012).

 Por fim, é importante salientar que a Proposta de Emenda à Constituição 57-A/1999 foi aprovada recentemente pelo Congresso Nacional. No Senado Federal, houve o acréscimo da necessidade de regulamentação legal quanto à expropriação da propriedade em razão do trabalho escravo.

Com isso, o art. 243 da Constituição da República passa a prever que as propriedades rurais e urbanas de qualquer região do país onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas ou a exploração de trabalho escravo, nos termos da lei, devem ser expropriadas e destinadas à reforma agrária e a programas de habitação popular, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras sanções previstas em lei, observado, no que couber, o disposto no art. 5º da mesma Constituição. 

Ademais, qualquer bem de valor econômico apreendido em decorrência do tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e da exploração de trabalho escravo deve ser confiscado e reverter a fundo especial com a destinação específica, na forma da lei.

O direito de propriedade, assegurado no art. 5º, inciso XXII, da Constituição da República, como é evidente, deve ser exercido de forma lícita, não abusiva, devendo atender a sua função social (art. 5º, inciso XXIII, art. 170, inciso III, da CRFB/1988), o que não ocorre no caso da utilização para a prática de trabalho escravo.

O próprio art. 186 da Constituição Federal de 1988 prevê que a função social é cumprida quando a propriedade rural atende, de forma simultânea, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: aproveitamento racional e adequado; utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; observância das disposições que regulam as relações de trabalho; exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.

Justifica-se, portanto, a modificação constitucional acima referida, pois o trabalho análogo à condição de escravo, que é o trabalho escravo da atualidade, é a antítese do trabalho decente, que respeita o princípio da dignidade da pessoa humana.

 


[1] Cf. GARCIA, Gustavo Filipe Barbosa. Curso de direito do trabalho. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014. p.29-30.

[2] BRITO FILHO, José Cláudio Monteiro de. Trabalho com redução à condição análoga à de escravo: análise a partir do tratamento decente e de seu fundamento, a dignidade da pessoa humana. In: VELLOSO, Gabriel; FAVA, Marcos Neves (Coord.).Trabalho escravo contemporâneo: o desafio de superar a negação. São Paulo: LTr, 2006. p. 132.

 

 

Autores

  • Brave

    é doutor e livre-docente pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, especialista e pós-doutor em Direito pela Universidad de Sevilla. Atua como professor universitário, advogado e consultor jurídico. Foi juiz do Trabalho das 2ª, 8ª e 24ª Regiões, procurador do Trabalho do Ministério Público da União e auditor fiscal do Trabalho.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!