Segunda Leitura

O crime organizado é pouco conhecido e estudado nas escolas de Direito brasileiras

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

8 de junho de 2014, 8h00

Spacca
O curso de Direito deve dar ao aluno uma visão ampla das relações jurídicas e, sem desprezar o passado, prepará-lo para sua atuação profissional na atualidade e no futuro. Neste sentido, já se avançou muito. O MEC acompanha e fiscaliza os cursos, exigindo qualidade. Cada vez mais os professores devem ter títulos acadêmicos (por exemplo de mestre). Em algumas Faculdades de Direito todos têm o título de doutor (por exemplo, USP e UFPR). Alunos participam de Projetos de Iniciação Científica – PIBIC, que lhes abre a mente para a investigação, matérias complementares, obrigatórias ou facultativas, são ofertadas e as monografias de final do curso (TCC) obrigam a um estudo mais profundo.

No entanto, há setores nos quais o avanço depende mais da atuação do professor do que do órgão de controle. E daí a diferença entre o bom e o ruim fica pouco definida. Uma faculdade que não tenha Direito Ambiental no seu currículo escolar está defasada. Um professor de Direito Administrativo, que não fale de políticas públicas ou de agências reguladoras, precisa reciclar-se. Um professor de Direito Penal, que não discuta o crime organizado, deveria pedir aposentadoria e dedicar-se à jardinagem, seu tempo passou.

O crime individual sempre existiu. Já a ação organizada é, no Brasil, algo recente. Para Rodrigo Carneiro Gomes “a existência do crime organizado é uma demonstração de um poder paralelo não legitimado pelo povo, que ocupa lacunas deixadas pelas deficiências do Estado Democrático de Direito e demonstra a falência do modelo estatal de repressão à macro-criminalidade” (O crime organizado na visão da Convenção de Palermo, Del Rey, 2ª edição, página 3)

O Promotor antimáfia italiano Fausto Zuccarelli, em entrevista para o jornal O Estado de São Paulo, observou que “muitos não se deram conta de que o crime organizado é tão perigoso quanto o terrorismo, porque distorce o mercado, aumenta a riqueza de poucos e a pobreza de todos os outros e, terceiro, atenta contra os direitos humanos. Se a segurança não é garantida, direitos fundamentais à vida e à liberdade estão ameaçados” (4.de maio de 2009, página A6).

Organizações criminosas são as constituídas em caráter permanente, através de um sistema hierárquico e de comunicação interna restrita, tendo por objetivo o lucro econômico e a proteção recíproca entre seus membros e familiares. Elas se dedicam a apenas algumas espécies de delitos, como o tráfico de entorpecentes, sonegação fiscal, extorsão, contrabando, tráfico de armas, jogos de azar e corrupção. A lavagem de dinheiro é parte e consequência destas condutas. As organizações criminosas nada têm a ver com bandos e quadrilhas a que se referia o artigo 288 do Código Penal, na antiga redação.

Quando se fala em crime organizado ou organização criminosa, o nome que nos vêm à mente é Máfia. No Brasil ele se tornou adjetivo, pode significar qualquer tipo união de pessoas para atividade ilícita. A chamada “Cosa Nostra” nasceu no sul da Sicília, Itália, como uma resistência dos lavradores contra os proprietários rurais. Suas decisões são tomadas por órgão de cúpula colegiado e seus membros submetem-se à “Lei do Silêncio”, firmando pacto de sangue. Atua através de infiltração nos órgãos do Estado e, para tanto, financia estudos de pessoas sem recursos, as quais, evidentemente, terão o dever de retribuição posteriormente. Na cidade de Palermo, cerca de 80% dos estabelecimentos comerciais pagam uma taxa de proteção (pizzo) à Máfia.

Outra organização criminosa é a Camorra, de Nápoles. Sua origem é urbana e ela é fragmentada em grupos diversos, não havendo um órgão de cúpula que os unifique. Um dos negócios mais rentáveis da Camorra é a coleta de lixo. No fim de 2007, uma greve conduzida pela Camorra levou Nápoles ao caos. O livro Gomorra, viagem no império econômico e no sonho de domínio da Camorra, de Roberto Saviano, tornou-se filme, e retrata a gravidade da situação. Segundo o jornal Gazeta do Povo, a partir de 1990 milhões de toneladas de lixo tóxico teriam sido enterradas na região norte de Nápoles, contaminando o solo, o lençol freático e gerando grande incidência de câncer na região (10 de fevereiro de 2014, caderno New York Times, página 4).

Na Calábria o crime organizado é comandado pela `Ndrangheta, organização menos conhecida, porém mais impenetrável que a Máfia. O poder é exercido por famílias de sangue ('Ndrine), devendo o filho mais velho assumir o poder, quando vago. Seus membros são discretos, não ostentam riqueza. A `Ndrangheta está em plena ascensão e, segundo consta em reportagem de 23 de abril passado, já tem ramificações no Brasil.

A Itália é o berço das organizações criminosas, mas o México, nelas, atingiu o mais alto grau de desenvolvimento. Os carteis do narcotráfico abastecem o rico mercado norte-americano. Grupos organizados contam com a participação de ex-policiais e do Exército. O território mexicano é dividido entre temidos cartéis, como Los Zetas, Familia Michoacana, Sinaloa e outros. No ranking das 10 cidades mais violentas do mundo em 2004, cinco encontravam-se no México.

No Brasil a Lei 12.850, de 2013, no seu artigo 1º, parágrafo 1º, dispõe: “Considera-se organização criminosa a associação de 4 (quatro) ou mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos, ou que sejam de caráter transnacional”.

A organização criminosa mais tradicional é o Comando Vermelho, que foi criada em 1979, no presídio da Ilha Grande, Angra dos Reis, RJ, através da união de presos comuns e presos políticos, estes transmitido àqueles lições de profissionalismo, como administração financeira dos recursos e táticas de guerrilha. Também do Rio de Janeiro é a AMA, sigla de Amigos dos Amigos. Ela encontra-se em processo de ascensão e disputa espaços com o Comando Vermelho e com o Terceiro Comando Puro. Este grupo é uma dissidência do Terceiro Comando e teve origem no ano de 2002. Todas sofrem as consequências do processo de pacificação das comunidades existentes nos morros cariocas e não possuem uma liderança que as una.

Em São Paulo o crime organizado está nas mãos do Primeiro Comando da Capital (PCC). Segundo consta, o PCC “é a maior organização criminosa do Brasil. O grupo comanda rebeliões, assaltos, sequestros, assassinatos e narcotráfico. A facção atua principalmente em São Paulo, mas também está presente em 22 dos 27 estados brasileiros, além de países próximos, como Bolívia e Paraguai”. O grupo é regido por um Estatuto com 18 artigos e no ano de 2006 instaurou um conflito no Estado de São Paulo, com dezenas de mortes de policiais e suspeitos, o qual, aparentemente, acabou em um acordo informal.

O desafio do crime organizado nada tem a ver com o combate à criminalidade comum. Nas palavras do juiz federal Sérgio Moro “não basta, para prevenir ou reprimir o crime, a imposição de prisão ao criminoso. O que é essencial é privá-lo dos ganhos decorrentes de sua atividade, ou seja, sequestrar e confiscar o produto do crime” (Confisco de bens: velho conceito na ordem do dia, jornal O Estado de S. Paulo, 26 de julho de.2008, caderno Aliás, página J5).

O Brasil, a respeito, conta com legislação moderna e adequada. A Lei da Lavagem de Dinheiro (Lei 12.683/2012) criminaliza no artigo 1º a conduta de “ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal”, permite o confisco imediato dos bens do investigado ou de interpostas pessoas suspeitas, responsabiliza aqueles que, mesmo eventualmente, prestem assessoria em operações financeiras (por exemplo, imobiliárias) e admite a alienação antecipada dos bens apreendidos. Não é pouca coisa. Por outro lado, a Lei 12.694, de 2012, possibilita ao juiz convocar e decidir através de um colegiado nos processos em que vislumbre a possibilidade de risco pessoal. Por exemplo, a sentença poderá ter autores e não apenas um.

Aí está posto o problema e os operadores do Direito não podem continuar a ignorá-lo. É preciso boa doutrina (por exemplo, Advocacia e Lavagem de Dinheiro, Rodrigo Sanchez Rios, e Crime Organizado e Lavagem de Dinheiro, Fausto De Sanctis), inclusão da matéria nos cursos de formação das Academias de Polícia e, acima de tudo, políticas públicas na área. O crescimento das organizações criminosas sempre está ligado à ausência do Estado.

Autores

  • Brave

    é desembargador federal aposentado do TRF 4ª Região, onde foi corregedor e presidente. Mestre e doutor em Direito pela UFPR, pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da USP, é professor de Direito Ambiental no mestrado e doutorado da PUC-PR. Vice-presidente para a América Latina da "International Association for Courts Administration - IACA", com sede em Louisville (EUA). É presidente do Ibrajus.

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