Novo CPC

Afastamento de precedente não pode continuar sendo regra

Autor

  • Dierle Nunes

    é advogado doutor em Direito Processual professor adjunto na PUC Minas e na UFMG e sócio do escritório Camara Rodrigues Oliveira & Nunes Advocacia (CRON Advocacia). Membro da Comissão de Juristas que assessorou na elaboração do Novo Código de Processo Civil na Câmara dos Deputados.

4 de junho de 2014, 6h02

A percepção do reforço do uso de precedentes no sistema brasileiro e as tendências de seu dimensionamento no novo Código de Processo Civil (CPC) tornam imperativa a análise dos problemas recorrentes no seu uso, com o fim de se buscar sua mitigação ou supressão. Aspectos que a reforma legislativa não resolverá.

Torna-se corriqueira a busca de estabilidade e vinculatividade mediante técnicas de padronização decisória (causa piloto) para se dimensionar a litigiosidade repetitiva que assola nosso país.[1] Apesar de não concordarmos com este movimento de padronização, nos moldes como ele vem sendo estruturado, o mesmo tem se tornado cada vez mais inexorável ao permitir o uso de julgados, como motivação decisória, de modo superficial.[2]

Dentro deste complexo quadro, um problema recorrente entre nós são as frequentes “brigas” de poder entre órgãos do poder judiciário.

A interlocução entre juízes no curso de um mesmo processo seria uma virtude de nosso sistema, mas esta não traz a permissão de uma anarquia interpretativa, que permitiria cada juiz aplicar entendimentos subjetivos, sem coerência e integridade,[3] que não auxiliarão em nada na busca de estabilidade decisória (não engessamento) que se busca.

Não podemos permitir que o afastamento do precedente (departure) continue sendo a regra, sob pena de aumento da litigância, necessidade de mais juízes e mais advogados e de ineficácia do sistema.[4]

O fenômeno de juízes desprezarem o(s) fundamento(s) determinante(s) (ratio decidendi) de um precedente, por evidente insurgência pessoal, sem integridade e coerência, como se estivessem num marco zero interpretativo,[5] em todas as instâncias,[6] vem se tornando uma praga sistêmica, que impede maior respeitabilidade do direito jurisprudencial em nosso país.[7]

Ademais, não se percebe a necessária utilização da “técnica decisória da ressalva de entendimento” num sistema que pretende levar a sério o uso do direito jurisprudencial.

Isto porque a adoção de uma interpretação dinâmica do contraditório dinâmico (art. 5, LV, CRFB/88),[8] fortalecida no CPC Projetado como premissa interpretativa de todo seu sistema comparticipativo/cooperativo[9] (art 7º e 10),  exige que seus institutos (todos) permitam a indução de um perfil dialógico entre todos os sujeitos processuais.

O que não se percebe é que na medida que se busca delinear uma adoção adequada dos precedentes no Brasil, quando se pretende viabilizar a estabilidade decisória legítima, com o respeito adequado aos enunciados de súmula, jurisprudência e precedentes dos Tribunais (prioritariamente Superiores), faz-se mister pensar na possibilidade dos juízes de primeiro e segundo grau tornarem-se interlocutores importantes para os Tribunais Superiores no sentido de permitir um constante aprimoramento do direito.

Tal se justifica pelo fato de que Novo CPC estabelecerá a necessidade dos juízes seguirem os entendimentos dos Tribunais Superiores, mas sem que tal aplicação possa se dar de modo mecânico e com impedimento de que o juízo prolator da decisão promova a possibilidade de melhoria do sistema, sob pena de reduzi-lo a um autômato.

Ao ser o juiz um dos sujeitos do contraditório moderno e comparticipativo, ele também deve poder auxiliar na formação dos precedentes, seja concordando com sua aplicação, seja distinguindo e superando (quando possível), seja apresentando contrapontos para que o tribunal leve em consideração novos argumentos, mesmo que seja instado a aplicar o padrão decisório das Cortes Superiores.

Ao se partir deste pressuposto, por exemplo, caso o órgão jurisdicional constate a existência de fundamento novo, não levado em consideração na formação de enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente, aplicará o atual entendimento e explicitará as razões que determinariam novo entendimento, a ressalva de entendimento.

Nestes termos, seria possível, mediante esta modalidade de contraditório judicial, entre os órgãos do poder judiciário, viabilizar e fomentar a superação (overruling) e promover a mantença do debate e da independência interna na magistratura. Os juízes, apesar de serem compelidos a seguir o entendimento dos tribunais, poderão continuar a exercer a reflexão sobre o acerto ou erro da jurisprudência, inclusive promovendo a provocação de um debate de aprimoramento (constante) do ordenamento jurídico.

Como informa Bustamante ao comentar o sistema inglês, a necessidade de respeito ao precedente não induz o juiz ou tribunal à impossibilidade do mesmo dialogar com a corte que formou o precedente:

“Fora da House of Lords, aliás, a prática de rever os próprios precedentes é ainda considerada expressamente proibida, de sorte que, se uma corte inglesa de apelação tiver posicionamento contrário ao seu próprio precedente, deve, ao invés de revê-lo, conceder leave to appeal e remeter o processo para a corte superior. Esse é, com efeito, o entendimento reiterado por Lord Bingham em um caso de discrepância entre os tribunais ingleses acerca da aplicação da Convenção Européia de Direitos Humanos: “Como Lord Hailsham observou, ‘em questões jurídicas, um certo grau de certeza é ao menos tão valioso quanto uma parte de justiça ou perfeição’. Esse grau de certeza é mais bem alcançado ao se aderir, mesmo no contexto convencional, a nossas regras sobre precedentes judiciais. Será com certeza ônus dos juízes revisar os argumentos convencionais dirigidos a eles, e se eles considerarem um precedente vinculante inconsistente, ou possivelmente inconsistente, com as authorities de Strasbourg, eles podem expressar suas opiniões e dar trânsito à apelação [leave to appeal], como a Court of Appeal fez aqui. Leap-frog appeals podem ser apropriados. Nesse sentido, na minha opinião, eles se desincumbem de seu dever estabelecido pelo Act de 1998. Mas eles devem seguir o precedente vinculante, como também fez a Court of Appeal nesse caso”.[10]

Ou seja, na opinião do Lord Bingham, que talvez seja um dos mais influentes juízes ingleses nos últimos 50 anos, nos casos em que a Corte de Apelação divergir da Suprema Corte (principalmente em questões que se refiram à aplicação da lei ou da Convenção Européia de Direitos Humanos) ela tem a obrigação de revisar e considerar os argumentos das partes, mas deve se ater à regra do precedente. Deve, também, se estiver convencida da pertinência do argumento, ela própria conceder o Leave to Appeal (que normalmente é dado pela Suprema Corte).

Esta possibilidade de diálogo entre juízes é uma das grandes virtudes dos países que usam precedentes com força gravitacional há bem mais tempo que nós.

Em adaptação a tal situação do common law, seria cabível aos juízes, entre nós, a aplicação do precedente com a ressalva de entendimento na fundamentação.

Em face disso, no III Fórum de Processualistas Civis do Rio de Janeiro de 25 a 27 de abril, se editou o enunciado 168 de seguinte teor: “(art. 521, § 1º) A decisão que aplica precedentes, com a ressalva de entendimento do julgador, não é contraditória. (Grupo: Precedentes)”, ou seja, sem que caibam embargos declaratórios na hipótese em que o juiz apresentar seu entendimento dissonante acerca do caso para ‘conversar’ com a corte superior.

Deste modo, o magistrado não se portará de modo decisionista e com subjetivismo, mas poderá ressalvar seu entendimento dissonante acerca do modo como o Tribunal Superior vem tratando a matéria.

No entanto, ainda é muito comum os juízes desconhecerem esta técnica de julgamento e proferirem decisões embasadas em entendimentos pessoais e subjetivos (sem distinguishing ou overruling), que certamente desafiarão recursos com grande chance de êxito.

De tudo aqui narrado, percebemos que os problemas da aplicação do direito jurisprudencial no Brasil, ainda desafiam mudanças relevantes no modo como tratamos e aplicamos os julgados dos Tribunais.

Apesar do novo CPC trazer inovações da maior relevância para o trato da temática, ainda necessitaremos mudar de modo consistente práticas recorrentes que impedem a tão almejada estabilidade decisória legítima, na qual a coerência e a integridade se tornem pressupostos decisivos no uso do direito jurisprudencial.

Uma advertência final há de ser feita. Vivemos uma época na qual os entendimentos dos Tribunais superiores vêm obtendo cada vez maior importância.

No entanto, tal aumento vem sendo acompanhado de um paulatino movimento de estreitamento de seu acesso, sempre fundamentado em argumentos utilitaristas, como o da trágica PEC 209, de criação da repercussão geral[11] para o Recurso especial para o STJ,[12] que há muito vem denunciando o amigo José Miguel Garcia Medina, até porque “essa consequência é extremamente preocupante, tendo em vista que o percentual de recursos providos pelo STJ passa de 30% em relação a alguns tribunais estaduais (resultados apontados pelo Justiça em Números referentes ao ano de 2010)”.[13]

Sabemos que o Judiciário acaba servindo a dois senhores, ora em sentido contramajoritário em prol de direitos fundamentais, ora como espaço de mantença de ideais hegemônicos dos grupos dominantes (ativismo judicial seletivo).[14]

Assim, os precedentes e os Tribunais de precedentes precisam inclusive ser analisados com base neste pressuposto téorico e na ressalva emblemática, de Laura Nader, que as elites se esforçarão para restringir o acesso aos Tribunais quando eles se tornarem uma arena para a efetiva mudança social. [15]


[1] Pontue-se que defendo, há bons anos no Brasil, que somente é possível resolver o problema da quantidade de processos ajuizados com o trato das causas das litigiosidades eis que o sistema processual, no mais das vezes, lida somente com suas consequências.

[2] THEODORO JR., Humberto. NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre. Breves considerações da politização do judiciário e do panorama de aplicação no direito brasileiro – Análise da convergência entre o civil law e o common law e dos problemas da padronização decisória. Revista de Processo, vol. 189, novembro 2010; NUNES, Dierle. Processualismo constitucional democrático e o dimensionamento de técnicas para a litigiosidade repetitiva. A litigância de interesse público e as tendências “não compreendidas” de padronização decisória. Revista de Processo, vol. 199, setembro 2011.

[3] DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

[4] SUMMERS, Robert S.; ENG, Svein. Departures from precedent. In Interpreting precedents: a comparative study. Edited by D. Neil MacCormick and Robert S. Summers, Aldershot: Ashgate, 1997. p. 519-520.

[5] Cf. STRECK, Lenio. A Katchanga e o bullying interpretativo no Brasil. Acessível em: http://www.conjur.com.br/2012-jun-28/senso-incomum-katchanga-bullying-interpretativo-brasil

[6] Vide recentes decisões do STF: BAHIA, Alexandre Melo Franco. BACHA, Diogo; IOTTI, Paulo. STF viola igualdade com decisões diferentes sobre renúncia. http://www.conjur.com.br/2014-mai-13/stf-viola-igualdade-decisoes-diferentes-renuncia-mandato

[7] NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre Melo Franco. Formação e aplicação do Direito Jurisprudencial: alguns dilemas. Revista do TST, vol. 79, n. 2, 2013. Acessível em: https://www.academia.edu/6267445/Dierle_Nunes_e_Alexandre_Bahia_-_Formacao_e_aplicacao_do_Dir._Jurisprudencial_-_Revista_do_TST

[8] THEODORO JR, Humberto; NUNES, Dierle. Uma dimensão que urge reconhecer ao contraditório no direito brasileiro: sua aplicaçao como garantia de influência e não surpresa. cit.

[9] Vide. NUNES, Dierle. Direito Constitucional ao Recurso. Rio de janeiro: Lumen Juris, 2006. NUNES, Dierle. Processo jurisdicional democrático. Curitiba: Juruá, 2008.

[10] BUSTAMANTE, Thomas. Teoria do Precedente Judicial: A justificação e a aplicação de regras jurisprudenciais. São Paulo: Noeses. 2012, p. 425-426.

[11] Caso esta absurda restrição seja aprovada a CRFB passará a ter a seguinte redação: “Art. 105 […]§ 1o. O Superior Tribunal de Justiça não admitirá recurso especial sem que o recorrente demonstre a relevância das questões de direito federal infraconstitucional discutidas no caso. § 2o. A rejeição da relevância da questão federal depende da manifestação de quatro quintos dos membros do órgão competente, devendo ser apreciada em até noventa dias. § 3o Acolhida a relevância, o recurso especial será submetido a julgamento em até doze meses. Superado este prazo, os recursos sobrestados na origem deverão ser encaminhados ao Superior Tribunal de Justiça para julgamento. § 4o Serão tidas como relevantes as questões de direito federal que tenham repercussão econômica, política, social ou jurídica e que ultrapassem os interesses subjetivos da causa. § 5o Incluem-se entre as questões consideradas relevantes a divergência da decisão recorrida com súmula do Superior Tribunal de Justiça. § 6o Não cabe recurso especial nas causas com valor inferior a 200 (duzentos) salários mínimos, salvo se houver divergência entre a decisão recorrida e súmula do Superior Tribunal de Justiça. § 7o Para demonstração da relevância das questões de direito federal infraconstitucional, aplicam-se as mesmas disposições legais referentes à demonstração de repercussão geral para admissibilidade do recurso extraordinário. Art. 105-A. O Superior Tribunal de Justiça poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de quatro quintos dos membros do órgão fracionário competente, após reiteradas decisões sobre a matéria, aprovar súmula que, a partir de sua publicação, constituir-se-á em impedimento à interposição de quaisquer recursos contra a decisão que a houver aplicado; bem como proceder à sua revisão ou cancelamento. §1o. A súmula terá por objetivo a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública, que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica. § 2o. A aprovação, revisão ou cancelamento de súmula poderá ser provocada originariamente perante o Superior Tribunal de Justiça por aqueles que podem propor a ação direta de inconstitucionalidade. § 3o. São insuscetíveis de recurso e de quaisquer meios de impugnação e incidentes as decisões judiciais, em qualquer instância, que deem a tratado ou lei federal a interpretação determinada pela súmula impeditiva de recurso. (NR)”

[12]http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1252220&filename=Tramitacao-PEC+209/2012

[13] MEDINA, José Miguel Garcia. STJ precisa aumentar número de ministro. http://www.conjur.com.br/2012-mar-14/stj-aumentar-numero-ministros-vez-reduzir-recursos

[14] NUNES, Dierle. TEIXEIRA, Ludmila. Acesso à justiça democratico. Brasilia: Gazeta Jurídica, 2013. 86 et seq.

[15] NADER, Laura. The life of the law: anthropological projects. Berkeley: University of California Press. 2002.

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    é advogado, doutor em Direito Processual, professor adjunto na UFMG e PUCMinas e sócio do escritório Camara, Rodrigues, Oliveira & Nunes Advocacia.

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