Senso Incomum

O ativismo, o justo, o legal e a Lesão por Esforço Epistêmico Repetitivo

Autor

31 de julho de 2014, 8h00

Spacca
caricatura lenio luis streck 02 [Spacca]Catar o mínimo e o escondido: onde ninguém mete o nariz, aí entra o meu!
Definitivamente devo estar com LEER (Lesão por Esforço Epistêmico Repetitivo), problema seríssimo que assola o processo de reflexão, mormente quando o ambiente externo demanda mais e mais esforços de (in)compreensão. Isto porque sou como Machado de Assis: “gosto de catar o mínimo e o escondido. Onde ninguém mete o nariz, aí entra o meu, com a curiosidade estreita e aguda que descobre o encoberto”.

Escrever sobre o estado d’arte do direito em um país de modernidade tardia e com um ensino jurídico standard(tizado) implica desconforto. Daí a constatação da minha LEER. Essa minha Lesão por Esforço Epistêmico Repetitivo se agrava quando tenho de aguentar apreciações feitas a meia-boca sobre o que escrevo; muitos leitores que leem a orelha do texto e depois “perdem a timidez e vão à luta”, desancando o articulista. De todo modo, não são maioria. Mas estão se multiplando. Estejamos atentos. Mientras, faz escuro, mas eu canto, como dizia o poeta.

Mas, no fundo, entendo os comentários irados, destemperados, enfim, os Discursos Epistêmicos de Ódio (os EDH – epistemic discourses of hatred). São discursos ideológicos, que, na verdade, repetem o mecanismo do senso comum. Ideológicos porque partem de um corpus de representações pré-fixadas sobre o mundo, no interior do qual raciocínios pequeno-gnosiológicos são apresentados como universalizantes. Mesmo que o receptor da mensagem saiba que não tem razão ou que, quem sabe, o emissor possa ter razão, ele não reflete, não racionaliza a temática, preferindo construir blindagens contra novos horizontes de sentido. Trata-se da SCG (Síndrome do Casulo Gnosiológico) a partir do qual, mesmo sabendo que 2+2 são 4, preferem sustentar, como em um debate político vulgar, que 2+2 são 5 ou 8. E contra isso nada pode ser feito. Por vezes, trata-se de uma razão cínica, como diria Sloterdijk (invertendo a frase de Marx, que dizia “eles não NÃO sabem o que fazem, mas fazem mesmo assim, ele diz: eles SABEM o que fazem e assim mesmo continuam fazendo); já, em outras, é alienação mesmo. Aí não tem saída, porque uma pessoa alienada, ALI-É-NADA. And I rest my case.

Sigo.  E para contar que a Rádio Justiça me pediu para falar sobre uma decisão do Tribunal de Justiça do Maranhão, que, por intermédio da 3ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Maranhão (TJ-MA), por unanimidade, reconheceu como união estável o relacionamento de uma mulher que ingressou na Justiça pleiteando direitos patrimoniais após o falecimento de um homem casado com outra pessoa e com quem manteve um relacionamento paralelo por 17 anos. Ou seja, o TJ-MA reconheceu como válida a coexistência de uma união estável paralela ao casamento, dizendo ser legal um concubinato adulterino.

Examinei a decisão e concedi a entrevista à simpática Radio. A decisão do TJ-MA é daquelas que simbolizam bem (ou mal) o ativismo judicial que tanto aqui denuncio. Aliás, não há no mundo um ativismo do tipo que tem aqui. É como a Myrciaria cauliflora (nome científico da jabuticaba). Só dá em terrae brasilis.

Ou seja, o TJ-MA (ler aqui), decidiu contrariamente à legislação e à Constituição. A decisão capitaneada pelo desembargador Lourival Serejo considerou plausível o pedido formulado pela apelante para participar das partilhas dos bens do companheiro falecido, uma vez que o relacionamento preenchia todos os requisitos necessários para configurar a união estável, tais como a convivência pública, contínua e duradoura, estabelecida com o objetivo de constituir família, conforme prevê o artigo 1.723 do Código Civil. Lourival disse que sua tese ultrapassa antigos paradigmas marcados pelo patriarcalismo. Sua frase emblemática: “Entre as novas formas de famílias hoje existentes despontam-se as famílias paralelas. Se a lei lhes nega proteção, a Justiça não pode ficar alheia aos seus clamores”. Mas, se a lei lhes nega a proteção, quem deu ao magistrado a autorização para “fazer outra lei”? Diz, ainda, que a lei é muito rigorosa por tratar as uniões fora do casamento com muito rigor… Hum, hum. Pergunto: O magistrado teria sido eleito pelo povo, conforme a Constituição, que diz que todo o poder emana…do povo? Iria sugerir ao eminente magistrado algumas doses de Dworkin, especificamente, no que tange a distinção entre polices e principles, donde exsurge a diferença de fundamentação entre a atividade do legislador e a do juiz, respectivamente.

Voltando. A Constituição coloca o casamento em primeiro plano a qualquer outra união. Não é porque eu quero. Está lá, bem claro. Isso porque, embora refira que a união estável é reconhecida como entidade familiar, acrescenta que a lei deve facilitar a conversão dela em casamento. Ou seja, dá especial proteção ao casamento. Do jeito que o TJ do Maranhão decidiu, a impressão que se tem é a de que, fazendo uma leitura mais ampla da decisão, está equiparando uma união extraconjugal a casamento, e isso não é possível.

Como diz meu amigo Adalberto Hommerding, magistrado e doutor em direito, “daqui a pouco vão decidir que é possível o sujeito casar duas vezes (o que te confesso, não sei se é bom ou horrível), pois se os fatos sobrepõem-se à Constituição e ao Código Civil, como referiu o desembargador Lourival, então o casamento não vale mais nada mesmo”. E acrescento eu: não é de admirar que o Código Civil esteja refém de um pamprincipialismo. Depois da elevação da afetividade a princípio (sic) normativo, nada mais surpreende; portanto, no caso do reconhecimento do concubinato adulterino, deve ter sido utilizado um “novo” princípio (sic), algo como “o afetuoproprietatis”, a propriedade adquirida com o afeto…

A decisão, em suma, é inconstitucional. E mais: se é reconhecida, para fins de proteção do Estado, a união estável (já nem discutimos mais se entre homem e mulher, ou entre homem e homem, mulher e mulher etc.), a união tem de ser "estável", atendendo todos os seus requisitos legais. O nosso preclaro desembargador diz que é conditio sine qua non estar a pessoa separada de fato, conforme o que diz o Código Civil, para que se possa caracterizar a união estável, mas, em razão de um caso específico, subjetivamente, "vence" a lei e permite que seja reconhecida a união estável de alguém casado e não separado de fato. TJ-MA 7×1 na lei. Goleada. Quebrou a universalidade. Quebrou a tradição (Gadamer). Quebrou a cadeia da história institucional (Dworkin). Criou uma nova narrativa não agindo como um intérprete-autor. Mas pergunto: Com base em quê? E, por quê? Porque sim?

Há um acórdão do TJ-RS que espanca as dúvidas. Vejamos:

UNIÃO ESTÁVEL. PRESSUPOSTOS. AFFECTIO MARITALIS. COABITAÇÃO. PUBLICIDADE DA RELAÇÃO. PROVA. PRINCÍPIO DA MONOGOMIA 1. Não constitui união estável o relacionamento entretido sem a intenção clara de constituir um núcleo familiar. 2. A união estável assemelha-se a um casamento de fato e indica uma comunhão de vida e de interesses, reclamando não apenas publicidade e estabilidade, mas, sobretudo, um nítido caráter familiar, evidenciado pela affectio maritalis. 3. Não é permitido, no nosso ordenamento jurídico, a coexistência de dois casamentos ou de uma união estável paralela ao casamento ou de duas uniões estáveis paralelas. 4. Constitui concubinato adulterino a relação entretida pelo falecido com a autora, pois ele estava casado com outra mulher, com quem convivia. Inteligência do art. 1.727 do Código Civil. 5. Não comprovada a entidade familiar, nem que a autora tenha concorrido para aquisição de qualquer bem, a improcedência da ação se impõe. Recurso desprovido. (Apelação Cível Nº 70057311425, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, Julgado em 26/02/2014)

Mas, como a jabuticaba não está apenas no TJ-MA, também no TJ-RS existiu já uma decisão similar à do TJ-MA, em que o Judiciário diz que decidiu dar parte da herança à concubina adulterina, a partir de um raciocínio salomônico – sic (Apelação Cível 70047138060). Bom, se era salomônica, não era jurídica. Simples, pois.

O simbolismo da decisão
Pode-se perguntar: sim, mas qual é a importância de uma decisão desse quilate que, ativista e sociologisticamente, decide em favor de uma pretensa “justiça” a favor de uma senhora que foi concubina de um cidadão? A primeira questão: justo para quem? Esse é o busílis do problema. Nosso país é useiro e vezeiro em utilizar argumentos “fáticos” para derrubar a legislação. No direito do trabalho existe até mesmo um princípio (sic) chamado da “primazia da realidade”. Se a moda pega…

Algumas decisões invocam a facticidade que derruba a legislação… Isso provocaria a entrada em campo da proibição de non liquet. Ora, essa história do non liquet deve ser examinada com cuidado. Por vezes, é utilizado para justificar qualquer coisa. Aliás, não há non liquet. As situações que dizem respeito aos relacionamentos concubináticos, etc, estão já devidamente regulamentados. Daí a existência de coisas acacianas, como: se a união estável (que pode ser equiparada ao casamento) exige a prova da ruptura, é exatamente isso que não existiu no caso concreto, porque a mancebia ocorreu durante quase duas décadas. Logo, não havia o requisito legal para se apropriar de qualquer herança, que é a união estável.

O que impressiona, portanto, não é o fato. Mas a sua simbologia. Quando o judiciário se arvora como arauto da justeza e da correção legal pela via da facticidade, ele está, em vez de avançar, atrasando o progresso do direito. Como escrevi na coluna passada, no final do século XIX é que se poderia justificar uma espécie de “socialismo processual” (lembram de Menger e Klein?). Pois é. Hoje isso parece ser uma espécie de direito retrô, algo como um woodstock tardio do direito.

Algumas posturas no direito costumam dizer que isso “é fazer teoria crítica” (igual ao neoconstitucionalismo à brasileira). Ora, “descobrir” que os juízes não são neutros e que eles não são máquinas é estroinar com a inteligência dos juristas mais atilados. E colocar mais de um século de filosofia no lixo. Ora, Ihering já sabia de tudo isso. Philipe Heck também. E o que dizer dos juízes da “Escola do Direito Livre”? Eles sabiam que o juiz não é máquina, que “é humano como nós” e outros blá blá blás. A questão é que o caldo engrossa nos séculos XX e XXI. Se “a vontade” supera “a razão”, a questão é: como controlar essa vontade? Portanto, o ponto não é explicar a vontade incontrolada e, sim, como evitar que a vontade (e suas decorrências, como ideologias, gostos, desejos, etc) se sobressaia sobre a lei. Como evitar que “o que eu penso sobre o mundo seja utilizado como fator de decisão sobre o direito dos outros”, mormente quando-a-lei-diz-o-contrário?

Vou me repetir: direito não é moral. Direito não é sociologia. Direito não é filosofia. Direito é um conceito interpretativo e é aquilo que é emanado pelas instituições jurídicas, sendo que as questões a ele relativas encontram, necessariamente, respostas nas leis, nos princípios constitucionais, nos regulamentos e nos precedentes que tenham DNA constitucional, e não na vontade individual do aplicador (mesmo que seja o STF).

Sei que o réu (o legislador) e nem o Poder Executivo (que pode remeter projetos de lei e emitir decretos e medidas provisórias) não se ajudam muito. A feitura das leis no Brasil é realmente um processo salsicheiro. Lobbies baratos (no sentido de baixo-clero) e caros (no sentido dos interesses envolvidos fazem com que o processo legislativo ande muito mal, bastando ver o que, há poucos dias, fez o Senado, que, atendendo a uma guilda de interessados diretos no butim, aprovou a facilitação da revalidação dos diplomas de outros países no que tange à pós-graduação, com o que diplomas de final de semana tirados, por exemplo, em Ciudad del’Este passarão a valer em terrae brasilis com processo facilitado – na verdade, um processo “tipo gambiarra”). Afinal, terrae brasilis tem Myrciaria cauliflora (nome científico da jabuticaba). Só aqui!

Mas, mesmo assim, ainda há uma Constituição que deve ser respeitada. Se o legislativo se dobra às pressões de grupos, guildas, súcias e outros quetais, sempre temos ainda as arguições de inconstitucionalidade. E aqui entra o nosso trabalho. Por isso, fundamentalmente, deveríamos apostar na doutrina, que deveria fazer constrangimentos epistemológicos sobre o judiciário, para que este valorize e leve o texto da Constituição a sério.

Mas, atenção: não deve o Judiciário dar maus exemplos, fazendo ele mesmo dribles hermenêuticos na legislação. Isso não fica bem. E incentiva o parlamento a fazer a mesma coisa. E quem perde é a democracia. Simples assim!

Paro por aqui, porque a LEER está me incomodando! E quem sofre de (e com a) LEER, sabe do que estou falando…!

Um post scriptum : as canetas ungidas para concursos!
Coloquei um linimento (refiro-me ao velho Linimento Pagé) e, via oral, ingeri uma dose reforçada de Emulsão Scott para aplacar minha LEER, abrindo espaço para um post scriptum. É que meu amigo Astor Wartchow me mandou, indignado, um link sobre um “novo produto” vendido por uma igreja (neo)pentescostal (ou sei-lá-que-classificação): trata-se da caneta ungida para concursos. Vale a pena ver. Genial. Como ninguém pensou nisso antes? Talvez aí esteja a solução para os quiz shows em que se transformaram os concursos. Só com caneta santa. Houve uma época em que a Igreja católica vendia lascas da cruz de Cristo (tantas, que já chegara a uma floresta…). Lembro-me de uma historinha do Tio Patinhas, em que Donald, entrando em um museu, aponta para uma relíquia: os ossos de Cristo quando criança.

Genial a alegoria dos ossos de Cristo, não? Que cabe para a “caneta santa”. Vou vender sacolas (ungidas e santas) para estocar comida. E vou fundar uma dissidência da Igreja da Verdade Real. Sugiro que o mesmo pastor do vídeo (ou outro) unja (sic) os resumos e resumões, os resumos plastificados e os manualões de direito simplificados e/ou facilitados. Ou vender “água para concursos”: na hora da compra, o utente já ganha uma garrafa d´agua santa para umedecer a capa (claro que, no caso dos resumos plastificados, é possível ser mais generoso com a água). Li na Bíblia, na parte do Apocalipse – bem nas entrelinhas da minha versão em sânscrito clássico-neo-tardelino – que o caos viria no dia em que, em um determinado país de modernidade tardia, depois de uma derrota em um torneio em que os inimigos atirariam sete bombas em algo que tinha sete metros de largura, alguém venderia canetas ungidas para passar em concursos públicos.  O que mais estaria faltando, principalmente depois que, em Estado desse mesmo país, uma ONG ganhou nove milhões só para atualizar o cadastro de pessoas carentes (claro que alguém recebia uma mesada por isso)? Temos chance ainda?

Cartas para a coluna (que serão devolvidas devidamente “ungidas”). 

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!