Passado a Limpo

Caso da habilitação do montepio do funcionário dos Correios em 1915

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da USP doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP professor e pesquisador visitante na Universidade da California (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

31 de julho de 2014, 8h00

Spacca
Arnaldo Godoy [Spacca]O montepio era um modelo substancialmente previdenciário que decorria de um decreto de 1890, e que suscitou inúmeras discussões, a exemplo do caso que se apresenta. Para uma compreensão do problema — a habilitação do montepio por parte de funcionário do correio que havia falecido — explica-se, em primeiro lugar, no que consistia o já mencionado montepio. É de um substancial estudo de um juiz federal que colho a síntese que segue:

O Decreto 942-A, de 31 de outubro de 1890, criou o Montepio Obrigatório dos Empregados do Ministério da Fazenda, assegurando o pagamento de pensão às famílias do empregado público civil e do militar falecido em exercício ou na aposentadoria ou reforma (art. 31) e no caso de perda do emprego em virtude de condenação judicial (art. 17, parágrafo único). Os empregados públicos civis e os militares que já pertenciam ao Montepio Geral de Economia tinham a faculdade (e não obrigatoriedade) de também contribuírem para este Montepio do Ministério da Fazenda (art. 3º, §2º), daí por que embora fosse ele destinado precipuamente aos empregados civis, abrangia também alguns militares. A contribuição mensal para o Montepio do Ministério da Fazenda, descontada em folha, era de um dia de remuneração (art. 12), sendo devida assim pelos empregados e militares ativos, bem como pelos aposentados ou reformados que ganhassem mais de 1.200$000 anuais (art. 3º). No seu turno, o valor da pensão era de 50% da remuneração (art. 31). Importante aqui destacar que também o Montepio do Ministério da Fazenda previa contribuição dos pensionistas, limitada à hipótese de pensão por perda do emprego em virtude de condenação judicial e montando em um dia do valor da pensão (art. 17, parágrafo único)[1].

No caso submetido ao Consultor-Geral da República pelo Ministro da Fazenda, ainda na República Velha, cuidava-se da pretensão de uma viúva em relação ao montepio deixado pelo marido, que fora funcionário dos Correios, em São Paulo. O funcionário havia sido demitido, e reintegrado, por duas vezes. Indagava-se quanto à reintegração. Isto é, se haveria uma nova relação do interessado com o montepio, uma mera continuidade de relação anterior.

Além do que, o óbito ocorreu em 8 de março de 1909, enquanto que o requerimento para pagamento das pensões do montepio datava de 5 de junho de 1914. Como se lê, quanto a esse pormenor, o Consultor-Geral entendeu prescritas as pensões devidas há mais de cinco anos do requerimento, com exceção das pensões devidas aos herdeiros menores de idade.

Constatou-se também que algumas quotas do montepio não haviam sido recolhidas pelo funcionário dos Correios. Por isso, deveriam ser calculadas, para que se fizesse o acerto. Por outro lado, as quotas não haviam sido recolhidas por responsabilidade do funcionário dos Correios, pelo que os herdeiros não poderiam ser prejudicados.

O texto elaborado pelo Consultor-Geral sintetiza o problema, que foi enfrentado de modo rotineiro e burocrático. Segue o parecer:

Gabinete do Consultor-Geral da República. – Rio de Janeiro, 19 de fevereiro de 1915.

Exmo.  Senhor Ministro de Estado dos Negócios da Fazenda. – Arthur de Ávila, praticante da Administração dos Correios de São Paulo, duas vezes demitido e reintegrado, faleceu, em funções daquele cargo, em 28 de março de 1909. Só em 5 de junho de 1914 sua viúva promoveu a habilitação para os efeitos do montepio.

Foram expedidos os títulos, mas, divergindo o Tesouro do modo por que a Diretoria de Contabilidade considerou o caso, e tido o finado funcionário como contribuinte novo, sob o fundamento de haver perdido o direito ao montepio anterior na segunda exoneração que lhe havia sido dada, foram os títulos devolvidos e de novo enviados ao Tesouro com a respectiva apostila.

Entretanto, apesar de se haver assim agido por força de despacho do Tesouro, mandou V. Exa. que o caso me fosse submetido para dizer sobre o direito dos habilitandos e sobre a prescrição arguida.

Havendo estudado o processo com a devida atenção, devo dizer Senhor Ministro que discordo da resolução anteriormente tomada em relação ao caso.

O funcionário em questão, exonerado em 17 de abril de 1897, sob o regime do montepio obrigatório, foi reintegrado em 31 de dezembro de 1903.

Não tendo requerido para continuar a contribuir para o montepio, quando exonerado, teria perdido o direito a ele, a menos que ele estivesse em condições de miserabilidade (art. 19 combinado com o art. 17 do Decreto 942 A, de 1890).

Mas, tendo sido, não nomeado de novo, mas reintegrado no seu cargo anterior, parece que deve ser tido como reintegrado no seu cargo anterior, que deve ser tida como reatada, para todos os efeitos, a situação anterior do funcionário, visto como a reintegração é um restabelecimento, uma restituição; e assim, se ele tinha direito ao montepio, quando foi exonerado, não pode deixar de ser reconhecido esse direito após a reintegração. Dos vencimentos atrasados, que lhe deveriam ter sido pagos, dever-se-ia, ex-offício, ter descontado as quotas correspondentes.

Acontece, porém, que, ao ser o funcionário reintegrado estava suspenso o montepio, por força do art. 37 da Lei nº 490, de 16 de dezembro de 1897.

Todavia, não sendo ele um empregado novo, mas antigo, que fora reintegrado, devia ter sido considerado como antigo contribuinte e não como empregado para o qual estaria suspenso o montepio. Parece-me que as quotas de montepio deviam ter sido descontadas de seus vencimentos, e, pelo fato de não o terem sido, não deve ser prejudicado o direito de herdeiros.

Mas, ainda ocorre nova circunstância: o funcionário faleceu em 28 de março de 1909, antes do restabelecimento do montepio obrigatório.

Não vejo, entretanto, em que isso modifique a situação. Funcionário reintegrado, ele trouxe consigo, no reatamento de sua carreira, sua situação jurídica anterior: era um funcionário antigo, sujeito ao regime do montepio obrigatório; falecendo, antes ou depois do restabelecimento desse montepio, seu direito não é afetado de qualquer forma.

Sou, pois, de parecer que deve o funcionário em questão ser tratado como um contribuinte normal do montepio obrigatório. Seu débito para com a Fazenda, pelas contribuições que deixaram de ser descontadas, deve ser apurado e cobrado, e tendo seus herdeiros requeridos a habilitação somente a 5 de junho de 1914 está incontestavelmente prescrita, para os que não forem menores, as pensões anteriores há cinco anos contados essa data, isto é, anteriores a junho de 1909.

O Tesouro considerou o funcionário como um contribuinte novo. Não posso concordar com esse critério; mesmo porque, se ele tivesse sido um funcionário nomeado durante o período de suspensão de montepio, havendo falecido, dentro do mesmo período, é minha opinião que nenhum direito teria seus herdeiros, como já teve ensejo de me pronunciar no parecer dado a V. Exa. em Ofício nº 15 de 26 de janeiro findo, a propósito do montepio requerido pelos herdeiros de Francisco Orlando da Silva.

Mas, o falecido funcionário, tendo sido, não originariamente nomeado, mas reintegrado num cargo que exercia desde o tempo do montepio obrigatório, não pode deixar de ser tido senão como empregado antigo, sujeito a esse regime.

É este Senhor Ministro meu parecer que submeto ao esclarecido critério de V. Exa., a quem devolvendo os papéis que me foram enviados pelo Aviso nº 20, de 29 de janeiro, tenho a honra de reiterar os meus protestos de subida estima e mui distinta consideração. – Rodrigo Otávio.


[1] Roberto Luis Luchi Demo, Breve História Legislativa da Previdência dos Servidores Públicos Civis Federais: Contribuições e Benefícios. Revista do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, v. 21, n. 11, Nov. 2009, pp. 40-41.

Autores

  • Brave

    é livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC- SP e advogado, consultor e parecerista em Brasília, ex-consultor-geral da União e ex-procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

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