Novo CPC

Doutrina não tem contribuído como deveria na aplicação do Direito

Autores

  • Dierle Nunes

    é advogado doutor em Direito Processual professor adjunto na PUC Minas e na UFMG e sócio do escritório Camara Rodrigues Oliveira & Nunes Advocacia (CRON Advocacia). Membro da Comissão de Juristas que assessorou na elaboração do Novo Código de Processo Civil na Câmara dos Deputados.

  • Helen Almeida

    é advogada mestranda em Direito Processual pela PUC-Minas.

  • Marcos Rezende

    é mestrando em Direito Processual pela PUC-Minas

30 de julho de 2014, 9h51

O papel da doutrina na aplicação do Direito[1] precisa ser revitalizado, porque é a partir de uma teorização adequada que a ciência do Direito se desenvolve e se renova. E no direito processual a situação é ainda mais delicada, em face da proximidade de um Novo Código de Processo Civil.

O círculo vicioso instalado no campo processual, a partir de uma continuada valorização equivocada da “jurisprudência” (ou daquilo que se nomina como tal), impede o aperfeiçoamento da ciência do processo, quando a aplicação do Direito se limita quase exclusivamente a observar o uso de ementas e enunciados de súmulas dos tribunais (descontextualizados dos fatos e de seus motivos determinantes).[2] Constata-se ainda que, no Brasil, não há preocupação por parte dos tribunais, no mais das vezes, com o modo que as decisões vêm sendo formadas e aplicadas.[3]

Chega-se ao requinte de após a edição da Portaria 138 de 22 de julho de 2009, pela presidência do Supremo Tribunal Federal (que delega a admissibilidade do Recurso Extraordinário para um servidor, sem se passar próximo de um ministro ou assessor), se promover uma (pseudo) análise dos recursos extraordinários com um simples carimbo no qual, sem verificação adequada, se reenvia a impugnação ao tribunal de origem com a aposição do número de um tema já analisado; gerando comumente a situação de nem mesmo se colocar o número ou se indicar tema diverso ao do objeto do recurso.[4]

Essa situação é gravíssima e se agrava a cada dia quando a própria doutrina passa a se contentar em apenas comentar superficialmente os julgados proferidos.

Diante dessa circunstância, faz-se indispensável o resgate do papel da doutrina na construção do Direito e, mais especificamente, na formação dos precedentes.

Assim, é importante apresentar e repensar o que se entende por doutrina e sua atual posição no sistema jurídico brasileiro, uma vez que além de não cumprir as suas funções, a mesma se limita a justificar a “jurisprudência instável”, de forma a legitimar e fortalecer a atuação desta, como se fosse a principal fonte argumentativa para os operadores do Direito.

A preocupação é urgente, uma vez que a aprovação do novo Código de Processo Civil e a introdução de uma normatização do precedente judicial faz com que a participação da literatura jurídica se torne essencial na construção do processo democrático e da fixação de bases fortes de aplicação para as novas normas.

Não há como admitir a jurisprudência como um sistema fechado e auto-referencial e não perceber as vantagens que as teorias podem trazer para a solução dos conflitos levados à jurisdição.

Ao se acomodar a uma simples posição de comentadora de julgados, a doutrina desvaloriza-se, intimida-se na sua função de interpretar. E a exigência de sua participação é de fundamental importância, especialmente em um momento no qual se destaca não a qualidade dos julgados, mas, ao contrário, o aspecto quantitativo de resolução de demandas, sob o enfoque do neoliberalismo processual.[5]

O Direito precisa ser compreendido a partir de uma visão participativa e integradora, que não se restrinja a discursos oficiais e discricionários, fechados em si mesmos, comumente adotados em Estados que, apenas aparentemente, se dizem democráticos. Não há dúvida que à doutrina incumbe contribuir qualitativamente para as decisões.

Nesse cenário, mais preocupante ainda, é a técnica que os órgãos julgadores adotam, ao proferirem as suas decisões, essencialmente apoiadas em excertos de julgados anteriores ou, apenas, em ementas e dispositivos que fundamentam, tourt court, as decisões.[6]

Parece que a doutrina não se apercebeu de suas novas atribuições democráticas, cujos fundamentos não podem desconsiderar o Estado Democrático de Direito e o processo constitucional. Os tempos são outros e os ventos empurram a literatura jurídica para uma nova postura, que exige dela mais atuação. A doutrina não pode subjugar-se ao ativismo judicial seletivo.[7]

Quando a mesma recusa seu papel institucional descerra um espaço a ser ocupado por uma função estatal, que naturalmente pode se tornar (seletivamente) discricionária e arbitrária. O déficit na atuação do cientista do Direito tem contribuído eficazmente para a sua própria desmoralização.[8] Ao invés de construir teorias aderentes ao espaço democrático e se valorizar, as construções doutrinárias se propõe a apenas comentar e a estudar o “trabalho” dos tribunais superiores. Ao se ocupar, somente, em justificar e citar a “jurisprudência”, explicando-a, a doutrina em nada contribui para a construção do Direito democrático, tornando-se, na verdade, um apêndice servil.

A doutrina, assim, não tem contribuído, como deveria, na aplicação do Direito. Para confirmar esta situação deficitária apresentam-se duas hipóteses: a) a mesma não está cumprindo a sua função em criar teorias, conceitos, entendimentos sobre as normas e institutos jurídicos e não serve de auxílio aos sujeitos processuais no suporte argumentativo do caso concreto; b) os juízes, de forma consciente ou inconsciente, não estão utilizando a doutrina como contribuição para a formação das decisões, por entenderem que esta colaboração é inexpressiva e de pouca valia e nada acrescenta na solução dos casos concretos.

A valorização exacerbada da discurso jurisprudencial em contraposição ao “descrédito” da doutrina sobreleva a prevalência da discricionariedade do órgão julgador, do dogma da supremacia do interesse público sobre o interesse privado, e assenta a interpretação judicial como eixo principal da hermenêutica jurídica.

É sintomático no Brasil, há alguns anos, a sensível redução da influência desta literatura jurídica sobre a atividade jurisdicional, principalmente na ausência de contribuição para a formação das decisões e reflexamente na jurisprudência.

Em assim sendo, nos cabe provocar a doutrina e os doutrinadores a analisarem o sistema processual e todas as técnicas do Novo Código de processo civil em consonância com suas normas fundamentais.

É nessa perspectiva que a doutrina é (e será) essencial para a construção e aplicação do Direito no Estado Democrático do Direito. Este é o desafio! Encaremos ele com responsabilidade.


[1] O tema é explorado de modo mais denso em: NUNES, Dierle; REZENDE, Marcos; ALMEIDA, Helen. A contribuição da doutrina na (con)formação do direito jurisprudencial: uma provocação essencial. Revista de Processo. São Paulo, n. 232, jun. 2014.

[2] NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre. Enunciados de súmulas: Falta aos tribunais formulação robusta sobre precedents. Revista Conjur. Disponível em:

[3] NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre. Formação e aplicação do direito jursiprudencial: alguns dilemas. Revista do TST. Brasília. Vol. 79. Abr. Jun/2013, p. 118-143.

[4] Cf. http://www.conjur.com.br/2014-mai-16/recurso-extraordinario-previsto-cpc-exige-reforma-norma-stf

[5] NUNES, Dierle. Processo jurisdicional democrático: uma análise crítica das reformas processuais. Curitiba: Juruá, 2008..

[6] Neste sentido, Lenio Streck: “Aliás, é prática recorrente – afinal, não há sentença ou acórdão que assim não proceda – a mera menção de ementas de acórdãos, utilizados como pautas gerais nas decisões. Tal circunstância acarreta um enfraquecimento da força persuasiva da doutrina, deixando-se a tarefa de atribuição do sentido das leis aos tribunais, fenômeno que é retroalimentado por uma verdadeira indústria de manuais jurídicos, que colacionam ementários para servirem de ‘pautas gerais’, verbetes, enunciados. Tentativas de conceptualizações. Nada mais, nada menos do que a velha metafísica, recheada de conceitos sem coisas.” STRECK, Lenio. Entrevista à Carta Forense sobre súmulas no nosso sistema jurídico. Disponível em: . Acesso em 10.10.2013.

[7]Delineia-se claramente um ativismo judicial seletivo, incentivado em alguns casos e reprimido em outros”. Cf. as críticas em: NUNES, Dierle; TEIXEIRA, Ludmila. Acesso à justiça democrático. Brasília: Gazeta Jurídica, 2013.

[8]Não deixa de ser sintomático que a doutrina, ao identificar complexidades no sistema, proponha resolvê-las com “mais do mesmo”, ou seja, com outros modelos pré-concebidos de interpretação”. STRECK, Lenio. Entrevista à Carta Forense sobre súmulas no nosso sistema jurídico. Disponível em: . Acesso em 10.10.2013.

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