Constituição e Poder

A transmodernidade como horizonte de afirmação da Constituição brasileira

Autor

  • Marco Aurélio Marrafon

    é advogado professor de Direito e Pensamento Político na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) doutor e mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) com estudos doutorais na Università degli Studi Roma Tre (Itália). É membro da Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst).

28 de julho de 2014, 14h07

A construção de referenciais epistemológicos que possam orientar soluções teóricas para a questão da efetividade da Constituição é tarefa que deve considerar as características próprias do contexto político-social brasileiro, evitando o mal da importação acrítica ou doutrinas mal-adaptadas que possam gerar verdadeiros ornitorrincos doutrinários.  

Nesse mister, se de um lado é preciso ir além da modernidade, já que não mais é possível defender a supremacia racionalista do sujeito individual ou mesmo de um macrossujeito estatal — especialmente porque, como já tratado em colunas anteriores, a complexidade é uma característica central no paradoxal tempo presente — de outro, não se justifica a adesão a teses irracionalistas, ditas pós-modernas, que acabam por gerar apatia política e descrença nas possibilidades emancipatórias do sujeito humano e mesmo da Constituição normativa.

Fixados os pontos de partida, na presente coluna o enfrentamento dessa problemática e a reflexão sobre as possibilidades de atuação judicial na concretização da Constituição serão realizadas com base na contribuição de Enrique Dussel, para quem é preciso considerar o horizonte da transmodernidade como uma articulação entre o potencial emancipatório da modernidade (leitura europeia) com a critica a suas práticas irracionais e violentas nos países periféricos, de modo a adequar o pensamento epistêmico ao contexto de países em desenvolvimento, como o Brasil.

Além do moderno e pós-moderno
Dussel propõe que a modernidade se inicia quando a cultura européia utiliza sua superioridade econômica, tecnológica e ideológica para tornar-se centro do sistema-mundo e expandir suas idéias (e ideais) com pretensões de universalidade.

Tal foi possível porque, com o descobrimento e colonização da Ameríndia, a partir de 1492, a Europa auferiu grande vantagem econômica, em detrimento da China e da Índia, fazendo com que a Espanha iniciasse o período de dominação europeia do sistema-mundo, inaugurando o que o filósofo argentino chama de primeira modernidade hispânica[1].

Isso se explica porque, segundo essa leitura, com o advento do cartesianismo a partir do século XVII, Amsterdã torna-se o centro do sistema-mundo e o racionalismo do homem branco europeu retira qualquer questionamento ético acerca da dominação do Sul, passando a produzir um pensamento ideológico que legitima os horrores da colonização.

A adoção da tese cartesiana acerca do dualismo corpo-alma fez com que o racionalismo moderno, ao fechar-se na certeza da existência somente no Cogito (razão eurocêntrica), promovesse uma compreensão do mundo através do parmenidiano código binário ‘ser’ X ‘não ser’.

Tal maniqueísmo levou a um processo totalitário de dominação do mundo, onde era considerado ‘ser’ apenas o sujeito racional que, inserido nessa totalidade, reproduzisse o modo de viver e de pensar da Europa iluminista, de modo a encobrir o ‘outro’ (visto como irracional e, portanto, ‘não ser’ em razão de suas diferenças: adota outro modo de vida, p. ex. rejeita o culto ao dinheiro ou admite civilizações matriarcais).

Assim são eliminadas as diferenças no sistema-mundo, com base no eurocentrismo (superideologia que legitimava a Europa como centro). Não é difícil imaginar em quais bases argumentativas apoiou-se tal legitimação, à medida que, se a partir de Descartes a existência do corpo, para ser vivo, deveria estar unido à alma (entendida como a razão típica do homem branco europeu), não haveria mal algum em destruir corpos e almas dotadas de uma racionalidade diversa da européia, consideradas ‘não-ser’ porque distintas.

Nessa perspectiva, sob a ótica dos dominados, a modernidade deixa de ser ideal de progresso e civilização para se tornar uma práxis violenta e inescrupulosa de dominação.

Daí porque, para não recair em reducionismos, as duas visões de mundo devem ser articuladas na perspectiva que Dussel chama de transmodernidade, a qual implica na leitura da modernidade em dois paradigmas. O primeiro, sob o prisma exclusivamente europeu, compreende a modernidade enquanto projeto iluminista de progresso científico e emancipação racional do homem. O segundo, a partir da crítica dos países colonizados do Sul do mundo, revela-a como uma práxis irracional e violenta de dominação[2].

Conforme bem anota Celso Ludwig, essa postura “permite a crítica ao projeto da modernidade sem eliminar suas potencialidades, com a finalidade de afirmar o sujeito, principalmente o sujeito que emerge como comunidade anti-hegemônica e que luta por seus novos direitos. Portanto, crítica que não se pretende antimoderna e, pelas razões mencionadas, também não é meramente pós-moderna[3].

Para os juristas brasileiros, a superação do complexo de vira-latas na importação de doutrinas e propostas legislativas e o potencial crítico dessa leitura mostram-se evidentes.

A crítica propiciada pela ideia da transmodernidade, para além do debate moderno x pós-moderno, intenso no horizonte da totalidade, visa a resgatar a afirmação do potencial progressista do sujeito (agora visto como uma comunidade intersubjetiva de vítimas que demandam a proteção de seus direitos fundamentais), observando os pressupostos epistemológicos atuais, sem recair no irracionalismo desencantado e apático, trazendo consigo a exigência de uma postura ético-material também para os atores que se propõem a realizar o Direito.

Papel do Estado e da Constituição em contexto transmoderno
A modernidade europeia expressa pautas muito importantes para o desenvolvimento do processo civilizatório humano, garantindo relevantes conquistas no campo dos direitos e sua realização. 

Tal conclusão se justifica porque antes da consolidação do Estado, no Medievo europeu, vivia-se no período entendido, grosso modo, como pré-modernidade, marcado pelas seguintes características: i) fragmentação e descentralização do poder, ii) pluralidade de ordens jurídicas coexistentes e sem delimitação clara de competências e confusão de fontes normativas, gerando grande insegurança; iii) predominância do direito baseado em relações servis e desigualdade entre pessoas e classes sociais, iv) autoritarismo expresso na dominação senhorial típica do feudalismo; v) ausência de políticas de implementação de direitos humanos básicos e vi) ausência de Estado como agente regulador das políticas sociais.

Esse quadro se altera com o advento do Estado Moderno, especialmente a partir da superação do modelo absolutista e a implantação do modelo liberal de Estado de Direito, já comprometido com os direitos fundamentais, ainda que de índole estritamente individual e baseado na garantia de liberdades e na proteção da sociedade civil em face do Estado.

De qualquer modo, o projeto iluminista de progresso científico e emancipação racional do homem expande-se também no âmbito do agir político e jurídico, com a crescente extensão e defesa dos direitos da pessoa humana, primeiro os inerentes à vida, liberdade e igualdade, depois os sociais presentes nas políticas do Estado de Bem-Estar, como o direito à educação, saúde, trabalho e lazer. Atualmente, avançam na proteção dos direitos transindividuais (difusos, coletivos e individuais homogêneos) e já temos novos âmbitos de proteção, como o direito ao patrimônio genético e a dados no campo da informática.

Ora, não se pode perder de vista que essa matriz de desenvolvimento humano, político e jurídico da modernidade europeia teve como impulso fundamental os projetos constitucionais típicos de Estado de Bem-Estar que se consolidaram  na Europa após a após a Segunda Guerra Mundial, perdurando até o início dos anos de 1980 (o marco reformista é o New Public Management de Thatcher, em 1978).

Daí porque, nesse campo, não se deve desconsiderar a importância da epistemologia moderna como matriz do desenvolvimento político e social pela qual passou os Estados da Europa ocidental.

Todavia, os anos de 1990 foram dominados pela ideia de pós-modernidade vendida juntamente com o neoliberalismo, impondo o desmonte do Estado de Bem-Estar e conseqüente desprezo pela sua ordem constitucional. No campo judicial, os reflexos dessa proposta acabam levando ao Judiciário a proposta de uma postura passiva de garantia dos direitos inerentes ao processo democrático, negando ações substanciais que possam ser consideradas intervenções indevidas pela lógica de mercado, ainda que humanitárias e fundadas normativamente.   

Tal postura justifica-se teoricamente a partir da concepção de que a própria sociedade civil é responsável por suas decisões políticas, não carecendo de um agente protetor externo (o Estado) nem uma ordem jurídica abrangente na regulação das relações políticas. Tal pensamento é indissociável da exigência de enfraquecimento da ação estatal e vem atrelada à noção de que a própria sociedade deve gerir o interesse coletivo, agora dissociado do público/estatal. A fórmula de reforma do Estado a partir das organizações não-governamentais de interesse social é reflexo próprio dessa visão.

Esse modelo demanda uma classe de cidadãos conscientes, politizados, educados, com saúde, emprego e demais necessidades mínimas atendidas para que bem possam lutar pelo bem comum. Exige cidadãos que tenham saído da pré-modernidade, passado pela modernidade e tenham condições de participar das deliberações públicas em condições simétricas, isonômicas e sem dominação, cabendo ao Direito apenas garantir as regras do jogo democrático e promover a defesa do procedimento.

É justamente aí que a ideia de transmodernidade procura superar as tendências eurocêntricas no campo da atividade estatal e do papel da Constituição e auxiliar a compreender melhor o problema da assimetria (entre países, entre cidadãos) como pressuposto para a ação pública.

Seu diagnóstico aponta para a coexistência, no mesmo espaço e tempo, de situações típicas do poderia ser chamado de pré-modernidade (favelas, onde a lei do Estado não tem eficácia normativa e nem há atendimento das necessidades mínimas de sobrevivência, como segurança, saúde, educação etc), modernidade (classe média, com nível de inclusão social satisfatório – suprimento de necessidades básicas de bem-viver) e pós-modernidade  (alto grau de inclusão econômica, política e social), fazendo com que não se deva desprezar o ainda importante papel do Estado e da Constituição na superação desse quadro.

Essa visão se revela próxima à leitura de Lenio Streck, para quem a Modernidade brasileira é tardia ou não realizada, já que não houve o cumprimento das promessas de inclusão social e redução das desigualdades, de modo que “a minimização do Estado em países que passaram pela etapa do Estado Providência ou welfare state tem consequências absolutamente diversas da minimização do Estado em países como o Brasil, onde não houve o Estado Social[4].

Sobre bases transmodernas, a realização das promessas da modernidade passa pela rejeição do irracionaslimo e pelo resgate — a partir de outra epistemologia — do potencial emancipatório do sujeito-cidadão, que não renuncia à participação pública, nem abre mão das instituições fundamentais à realização dos seus direitos.  Instaura-se, assim, um regime de coexistência-dialética entre os modos de realização da Constituição que se mantém como projeto dotado de pretensão de eficácia, com força vinculante pro futuro.

Essa dialética demanda maior imbricação na relação jurisdição constitucional e democracia que, de certo modo, já vem sendo realizado no Brasil, p.ex. com a ampliação dos instrumentos processuais de abertura do Judiciário às manifestações da sociedade (audiências públicas, amicus curiae). Outro exemplo privilegiado dessa relação encontra-se nos conselhos comunitários, tais como os Conselhos Tutelares do Menor, presente em inúmeros municípios brasileiros e formado pela sociedade civil, que tem atuado junto com o Ministério Público na provocação do Judiciário através de ações coletivas de defesa da Constituição nos casos em que a demanda por eles formulada em prol da criança e do adolescente não é atendida pelo poder político e há condições normativas e materiais para tal. Nesses casos, a atuação substancial nitidamente favorece a democracia, não o contrário.

De outro lado, também a jurisdição constitucional deve admitir critérios de autocontenção judicial, cujos parâmetros podem ser graduados de acordo com a índole da matéria levada à apreciação judicial, como argutamente propõem Claudio Pereira de Souza Neto e Daniel Sarmento[5].

Sem ignorar o potencial democrático das deliberações coletivas e a importância da crescente participação dos cidadãos na realização da Constituição, é nesse horizonte que o Poder Judiciário brasileiro está legitimado a atuar substancialmente na concretização das determinações constitucionais, desde que não se torne um novo déspota-soberano que atua para além ou contrariamente à Constituição e sem recair em ativismo ou ações arbitrárias. 

 


[1] DUSSEL, Enrique. 1492- O encobrimento do outro: a origem do ‘mito da modernidade’ – conferências de Frankfurt.  Trad. Jaime A. Clasen. Petrópolis: Vozes, 1993.
[2] Cf. DUSSEL, Enrique. Ética da Libertação na idade da globalização e da exclusão. Petrópolis: Vozes, 2000, p.  63-65.
[3] LUDWIG, Celso. Da Ética à Filosofia Política Crítica na Transmodernidade: Reflexões desde a Filosofia de Enrique Dussel.  In: FONSECA, Ricardo Marcelo da (org.). Repensando a teoria do estado. Belo Horizonte: Forum, 2004, p. 288.
[4] STRECK, Lenio. Hermenêutica jurídica e (m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito.  10 ed. Porto Alegre, 2011, p. 27.
[5] Conferir: SOUZA NETO, Claudio Pereira de; SARMENTO, Daniel. Notas sobre jurisdição constitucional e democracia: A questão da “última palavra” e alguns parâmetros de autocontenção judicial. In: FELLET, André; NOVELINO, Marcelo (org.). Constitucionalismo e democracia. Salvador: JusPodivm, 2013, p. 265-328.

Autores

  • Brave

    é presidente da Academia Brasileira de Direito Constitucional – ABDConst, Professor de Direito e Pensamento Político na Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ e Advogado.

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