Diário de Classe

Última lição de João Ubaldo Ribeiro e a sátira de Ariano Suassuna sobre a Justiça

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26 de julho de 2014, 8h00

Spacca
Neste mês de julho, a literatura brasileira perdeu dois de seus gigantes: primeiro, o baiano João Ubaldo Ribeiro, aos 73 anos; e, logo em seguida, o paraibano Ariano Suassuna, com 87 anos. Assim como muitos outros escritores, ambos estudaram Direito e felizmente o abandonaram para se dedicar às letras. Isto não significa, entretanto, que eles não tenham abordado, em suas valiosas obras, inúmeras questões fundamentais para a crítica ao Direito.

Em Viva o povo brasileiro, um de seus romances históricos mais conhecidos, publicado em 1984, João Ubaldo resgata temas ainda pouco explorados na história colonial brasileira, desvelando a violência praticada contra os escravos, sobretudo a cultura do estupro sistemático — e, aqui me lembro do infame caso da escravinha Honorata (espécie de Dred Scott brasileiro) —, que contriubiu para a miscigenação e, via transversa, para a construção da própria identidade nacional.

Na última coluna que escreveu, intitulada O correto uso do papel higiênico (publicada aqui na ConJur e que seria publicada no dia 20 de julho no jornal O Globo), João Ubaldo criticou a excessiva judicialização de uma série de temas no país, como a lei da palmada e a liberdade de expressão, e atacou o avanço do império do politicamente correto, ironizando a patrulha à literatura:

Temos que ser protegidos até da leitura desavisada de livros. Cada livro será acompanhado de um texto especial, uma espécie de bula, que dirá do que devemos gostar e do que devemos discordar e como o livro deverá ser comentado na perspectiva adequada, para não mencionar as ocasiões em que precisará ser reescrito, a fim de garantir o indispensável acesso de pessoas de vocabulário neandertaloide.

Embora não diga expressamente, João Ubaldo está se referindo à censura que vem sendo feita nos últimos anos à literatura de Monteiro Lobato, cujas obras infantis são objeto de mandado de segurança que tramita no Supremo Tribunal Federal. Mas sobre esta infame ação constitucional (?) já escrevi outra coluna (clique aqui para ler).

Na verdade, o que importa, aqui, é a advertência de João Ubaldo para o simples fato de que é impossível o Direito prever e regular todas as condutas e comportamentos humanos. Tal pretensão é ingênua e, acima de tudo, absolutamente descabida. Isto porque, como se sabe, o sistema jurídico é apenas mais um sistema normativo ao lado da moral e da religião, para ficar apenas com estes, cada qual com suas normas. E, justamente por sua institucionalização, as normas jurídicas não devem ingressar em determinadas esferas, de caráter eminentemente privado, tais quais, por exemplo, o modo como devemos usar o papel higiênico, os alimentos que devemos ingerir, os textos que devemos ler e, até mesmo, os tipos de relações sexuais que devemos manter. É sobre isto o texto de João Ubaldo. Precisamos estar atentos à excessiva e ilegítima expansão do Direito — que ainda é um instrumento do Estado —, especialmente ao patrulhamento ideológico que vem sendo promovido no âmbito do ordenamento jurídico sob o álibi do politicamente correto. Esta foi sua última lição aos juristas.

Já Ariano Suassuna é o célebre autor de Auto da Compadecida, considerado pelo crítico teatral Sábato Magaldi “o texto mais popular do moderno teatro brasileiro”. A conhecida peça, que combina os clássicos elementos dos autos vicentinos com a literatura de cordel, o imaginário popular e personagens retirados da tradição nordestina, fez imenso sucesso também no cinema e na televisão.

Na peça A pena e a lei, publicada em 1959, o dramaturgo apresenta uma sátira de costumes sobre a justiça humana, denunciando a corrupção das autoridades, a parcialidade dos julgamentos, o descuido com os processos, etc. A título ilustrativo, merecem destaque as palavras com as quais Cheiroso anuncia a abertura do segundo ato:

Muito bem, com alguns dos autores já vistos, mostraremos: letra “a”: que os homens têm que viver com medo da polícia e do inferno; letra “b”: eu, se não houvesse a justiça, os homens se despedaçariam entre si; letra “c”: que existem casos em que a justiça acerta seus julgamentos.

Como se pode perceber, mesmo que sumariamente, o legado destes dois intelectuais é inestimável para a cultura brasileira e não se limita ao mundo da literatura, da poesia, do teatro e do jornalismo, mas também se estende aos campos da política e, igualmente, do direito. Ambos enxergavam longe. E muito! Eram “juristas orgânicos”, atentos à dimensão social.

Resta saber, agora, como um país em que o culto aos mortos se limita a homenagear militares e políticos irá registrar a passagem de João Ubaldo Ribeiro e Ariano Suassuna. Menos mal que a tal “imortalidade” já foi alcançada quando assumiram suas respectivas cadeiras na Academia Brasileira de Letras, pois Machado de Assis aguarda até hoje que a Câmara dos Deputados aprove o projeto de lei que indica a inscrição de seu nome nos Livros de Aço do Panteão da Pátria, em Brasília.

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