Juro de Juros

O mito dos juros compostos e o Judiciário

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24 de julho de 2014, 8h47

Artigo produzido no âmbito das pesquisas desenvolvidas no Núcleo de Estudos Fiscais (NEF) da Escola de Direito de São Paulo (FGV Direito SP). As opiniões emitidas são de responsabilidade exclusiva de seus autores.

Juro composto (ou seus sinônimos juros compostos, juros capitalizados, anatocismo) é um incompreendido no civil e no religioso. Hoje em dia o termo juros substitui a palavra usura, a qual, desde tempos imemoriais, significava, sem juízo de valor, remuneração pelo uso do dinheiro alheio.

A palavra usura adquiriu conotação pejorativa quando a cobrança de quaisquer juros virou pecado mortal punível com danação e fogo perpétuo no inferno.[1] Juros também são repelidos pelas escrituras judaicas: “A teu irmão não emprestarás com juros” (Deuteronômio 23:19). O livro sagrado islâmico igualmente condena a usura: "Os que vivem de juros não se levantarão de seus túmulos, senão como aqueles que o demônio esmaga" (Corão II:275).

Nos países orientais, fora da influência judaico-cristã, a atitude em relação ao juro era menos repressiva, se bem que não livre de controles. Por exemplo, na antiquidade indiana, o juro de mútuo entre pessoas estava limitado a 15% a.a. e o financiamento de negócios tinha o juro limitado a 60% a.a., ou o dobro se a transação envolvesse viagem através de florestas e o quádruplo (240% a.a.) se a viagem envolvesse transporte marítimo.[2] Explícito reconhecimento do risco como um dos elementos formadores da taxa de juro.

Com a crescente internacionalização das relações econômicas, a Reforma protestante e o advento do liberalismo político e econômico essas posições foram reinterpretadas. Vista com olhar moderno, o viés antijuro da antiguidade (que ainda não desapareceu completamente) pode parecer preconceituosa. Mas é preciso considerar que durante quase toda a história humana a sociedade e a economia pouco mudavam, justificando uma visão de mundo estacionário.[3] Aristóteles se opunha ao juro porque via o dinheiro como incapaz de gerar riqueza; sendo improdutivo, não devia ser remunerado.

A ideia de progresso continuado, de crescimento geométrico da riqueza material, de horizontes novos continuamente surgindo na espécie humana, data de pouco mais de 500 anos, segundo Nisbet.[4] As navegações de longo curso em mar aberto, a invenção da imprensa, a rápida sucessão de descobertas científicas, o desenvolvimento de mercados de mercadorias e de capitais, os projetos com maturação além do ciclo anual, tornaram obsoletas as concepções antigas sobre juros.

Juro remuneratório é distinto de juro moratório
Em matéria de juros, há muitos conceitos redundantes e confusos. Não se pode dizer isso da classificação de juros, pela doutrina e jurisprudência pátrias, em remuneratórios e moratório. Por juro remuneratório se entende aquele acordado ab initio entre credor e devedor. Já o juro moratório surge do inadimplemento da obrigação de pagar; sua taxa pode diferir substancialmente do juro remuneratório do mesmo contrato. A distinção é importante para a figura da capitalização de juros.

O juro remuneratório é estipulado no momento de contratar; durante a implementação do contrato, não faz sentido alterar a taxa de juros avençada. O juro moratório é muito mais regulado e codificado. Em todo o que se segue, discutem-se apenas juros do tipo remuneratórios.

Juro simples não é preferível ao juro composto
Um dos mitos que perduram envolve a existência de um juro bonzinho (o juro simples) e um juro perverso (o juro composto). A fórmula de juros simples é linear,

         M = C × (1+in)

em que C é o capital aplicado, i a taxa de juros de uma unidade de capital em um período, n o número de períodos e M o montante final que inclui capital e juros. Assim, um capital de 100 aplicado à taxa mensal de 0,5% (isto é, i=0,005) durante doze meses resulta um valor de 106. Se os juros de nossa caderneta de poupança fossem calculados dessa forma, R$100 aplicados em 24 de julho de 2014 se tornariam R$106 em 24 de julho de 2015 (mais ajuste monetário, aqui ignorado). 

A fórmula de juros compostos é exponencial, ou geométrica,

M = C × (1+i)n

em que as letras têm o mesmo significado que na fórmula anterior. Em sua simplicidade, essa é a fórmula fundamental da matemática financeira. Um exemplo de aplicação: R$100 aplicados em 24 de julho de 2014 sob as regras atuais em caderneta de poupança tornar-se-iam R$106,17 em 24 de julho de 2015.[5]

Ou seja, em cada ano, por cada 100 reais depositados, a poupança paga 17 centavos a mais do que pagaria sem capitalizar os juros. E se com a mesma taxa de juros a capitalização fosse diária? Nesse caso pagaria um pouquinho mais. E se a capitalização se fizesse em cada minuto, em cada segundo, em cada milionésimo de segundo? Se a capitalização fosse instantânea, em intervalo de tempo infinitamente pequeno, R$100 aplicados na poupança resultariam, no fim do ano, no montante máximo de R$106,48! Capitalização de juros não faz explodir a soma de capital e juros.

Se a poupança pagasse juros mensais de 0,58%, sem capitalização, renderia 7 reais no ano, portanto mais do que os 0,5% mensais que paga, capitalizados 12 vezes ao ano. Do exposto resulta que é irracional o temor dos juros compostos (o “juro dos juros” no linguajar dos detratores); o que importa é a taxa mesma de juros.

Juros simples (isto é, sem capitalização) são usados apenas em transações simples, de período curto e sem pagamentos ou desembolsos intermediários. O juro composto é muito mais versátil e prático, e é por isso que a poupança, que recebe pagamentos e saques o tempo todo, utiliza juros compostos.

E não é só a poupança que utiliza juros compostos, mas a imensa maioria das operações financeiras. No dizer de renomado matemático financeiro, “Caso, por absurdo, fosse proibido pela Justiça brasileira [o uso de juros compostos], colocaríamos na marginalidade todos os planos de aplicação de recursos em cadernetas de poupança, fundos de investimentos em renda fixa, fundos de previdência, títulos de capitalização, fundo de garantia por tempo de serviço (FGTS), e também, todos os contratos de empréstimos ou financiamentos em prestações iguais ou diferentes.”[6]

Quase sempre os juros compostos estão a serviço do consumidor
O poupador se beneficia da capitalização de juros
. As cadernetas de poupança, o FGTS, o Tesouro Direto e outras formas de acumulação de poupanças capitalizam os juros e assim aumentam o cabedal de recursos dos beneficiários. Os juros obtidos em um período se agregam ao principal, e o montante assim acrescido constitui base maior para produção de rendimentos no período seguinte. A capitalização ajuda a prosperar as economias de longo prazo.

Quando recebe financiamento de longo prazo não paga juros compostos. A pessoa que toma emprestado para aquisição por exemplo de residência ou de veículo, para pagamento em prestações ao longo do contrato, desembolsa, normalmente em cada mês, prestação (calculada por tabela Price ou outro método) que satisfaz os juros incorridos no período e amortiza uma parcela do principal. Se a prestação paga mensalmente não cobrisse os juros, a dívida cresceria indefinidamente e nunca se extinguiria. Portanto, nesses casos os juros mensais são pagos na sua totalidade à medida que são contados e nenhum juro sobra para somar à dívida. É, portanto, impossível a capitalização de juros nesses casos.

Onde os juros compostos atormentam o consumidor?
Nos cartões de crédito e no “cheque especial”. No caso do cartão de crédito, a instituição financeira adianta fundos que, se não pagos integralmente na data de vencimento da fatura, passam a contar juros em geral desde a data da compra. Os juros passam a integrar o principal e contam juros para o período seguinte. Portanto, o portador de cartão que paga apenas a porcentagem mínima requerida, vê sua dívida crescer rapidamente.

No caso do cheque especial, os juros são sempre contados da data do saque mesmo que o saldo (saques mais juros) seja liquidado integralmente no vencimento. A capitalização de juros sobre o saldo não pago também acelera o valor da dívida, ainda que não tão rapidamente quanto no caso de cartão de crédito. Isso é devido a que a taxa de juros sobre cheque especial, embora elevada, não chega aos níveis elevadíssimos das taxas aplicadas aos cartões de crédito.

Juros compostos na lei e na jurisprudência
Em 1933, o Governo Provisório, de Vargas, anulou a liberalização de mútuos introduzida pelo Código Civil de 1916 e revigorou a o regime do Código Comercial de 1850, que proibia “contar juros sobre juros” exceto sobre saldos em conta corrente “de ano a ano”.[7] Em 1963, o Supremo Tribunal Federal vai mais além ao adotar a Súmula 121, in verbis: “É vedada a capitalização de juros, ainda que expressamente convencionada.”

Com a rápida expansão do setor bancário e dos mercados de capitais na segunda metade do Século XX, tanto a norma do Decreto 22.616 quando a súmula da suprema corte, por sua irrazoabilidade, acabaram tornando-se letra morta. A situação voltou a ter um certo equilíbrio quando o STF adotou, em 1976, a Súmula 596 estabelecendo que o Decreto 22.616 não se aplica a operações realizadas por instituições financeiras.[8]

É verdade que a Súmula 596 introduz discriminação indesejável (a empresas não financeiras é vedado, contrario sensu, realizar operações envolvendo capitalização de juros), mas ela logra regular a grande maioria das transações na economia. Em agosto de 2001, a Medida Provisória 2.170-36, em seu artigo 5º, endossou esse critério e permitiu a capitalização em períodos inferiores a um ano nas operações de instituições financeiras.[9]

O Código Civil de 2002,[10] ainda prenhe de ojeriza ao “juro sobre juros”, permite a capitalização de juros no mútuo de fim econômico desde que com periodicidade anual (art. 591). Os tribunais têm aceitado a tese de que o CC, normal geral, não tenha derrogado a MP, normal especial.[11] Em decorrência, as instituições financeiras continuam com liberdade de incluir a capitalização nos seus contratos (o que é correto) enquanto que as pessoas e as empresas que não fazem parte do sistema financeiro nacional estão impedidas de fazê-lo (o que não é razoável).

Interessante observar que o Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/1990) não objeta a capitalização de juros. Inteligentemente, exige que os contratos de financiamento informem a taxa de juros efetiva anual.[12] Por sinal, a Súmula 297 do Superior Tribunal de Justiça esclareceu que o CDC aplica-se às instituições financeiras.

Um efeito pernicioso das restrições à capitalização de juros é o excesso de litigância, fenômeno a que o desembargador Fonseca Passos chama de demandismo.[13] Embora os planos de amortização em parcelas fixas afastem a possibilidade de capitalização de juros,[14] o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro emitiu a Súmula 301, afirmando exatamente o contrário.

Pior, a súmula remete a demonstração da “eventual abusividade” à prova pericial. Adicionando-se a isso a disponibilidade de Justiça gratuita, cobrindo inclusive os laudos periciais, a possível suspensão de pagamentos ao financiador até decisão final do processo, a relutância dos juízes em utilizar o instituto da litigância de má-fé e a morosidade dos processos judiciais forma-se o ambiente perfeito para o desenvolvimento do demandismo e o atravancamento da Justiça. Como colocado em lúcida análise pelos juízes Joana Côrtes e Leonardo Gomes, “o Poder Judiciário, ao final das contas, acaba exercendo, sem necessidade, papel de mero órgão de consulta para fixação do montante devido pelo consumidor inadimplente.”[15]

À guisa de conclusão
Este estudo não tratou do nível dos juros. Apenas procurou lançar luzes sobre o mal compreendido tema da capitalização de juros. Não está nos juros compostos a ameaça ao consumidor. As restrições ao crédito não o tornam mais barato ou acessível, mas, ao contrário, dificultam e encarecem as transações, ofuscam o que devia ser transparente, criam uma pletora de ações judiciais em grande medida inteiramente desnecessárias.

Não será tratando o consumidor como incapaz ou hipossuficiente que estaremos mais bem defendendo seus interesses. Um olhar ao redor do mundo vai revelar que são nos países em que há menos interferência nas regras de financiamento (afora a necessária regulação das instituições), naquelas em que impera o caveat emptor (aprecate-se o comprador), que é maior o acesso ao crédito e mais baixa a taxa de juros.

O poder público pode, sim, contribuir para o benefício de mutuantes e mutuários: por meio da educação financeira de jovens e adultos (alguém nos ensinou como gerir nossas finanças pessoais?) e da transparência plena dos termos e consequências dos contratos de investimento e financiamento.

 


[1] Marcos de Santa Teresa, Compendio Moral Salmaticense según la mente del Angélico Doctor, Imprenta de José de Rada, Pamplona 1805.

[2] Kautilya, The Arthashastra, VIII.vii. New Delhi: Penguin Books India, 1992. Note que as taxas de juro citadas são reais (em termos de ouro) já que à época a moeda fiduciária ainda não havia sido inventada.

[3] “Os antigos não tinham nenhuma concepção de progresso; não é que repudiassem a idéia; eles nem sequer a concebiam” (Walter Bagehot, Physics and politics, 1872).

[4] Robert Nisbet, História da Idéia de Progresso, Brasilia: Universidade de Brasilia, 1985.

[5] Aqui faz-se abstração do ajuste monetário, outro componente da remuneração da poupança, por ser irrelevante para a discussão.

[6] José Dutra Vieira Sobrinho, A Capitalização dos Juros e o Conceito de Anatocismo, Sindicato dos Economistas do Estado de São Paulo – Sindecon-SP, 2 de setembro de 2004.

[7] Decreto 22.626 de 7 de abril de 1933, conhecido como Lei de Usura, art. 4º. Este decreto foi incluído, quiçá por ato impensado, na limpeza feita por decreto de 25 de abril de 1994 e assim revogado; mas ressuscitou-o decreto de 29 de novembro do mesmo ano.

[8] A Súmula 596 apoia-se na Lei de Reforma Bancária (nº 4.595/1964).

[9] A constitucionalidade do art. 5º da MP 2.170-36 está sendo questionada através da ADI 2.316, a qual aguarda julgamento pelo STF.

[10] Lei 10.406 de 10 de janeiro de 2002.

[11] Ver discussão em Débora Maria Barbosa Sarmento, Juros – Aspectos Econômicos e Jurídicos, Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, 2014, disponível em http://goo.gl/eZBLA9.

[12] Lamentavelmente o Banco Central, órgão regulador do setor financeiro, não obriga as instituições financeiras a revelar a taxa efetiva anual de suas operações nas operações com cartão de crédito e cheque especial, cujos juros devem ser expressados para período mensal, não anual (Resolução Bacen 3.919 de 25/11/2010). Nos cartões de crédito é comum a cobrança de juros de 15,99% ao mês, que equivale à elevada taxa anual de 493%. Para saques no cartão, uma taxa de 19,99% a.m. corresponde a taxa anual de 790%!

[13] Carlos Eduardo da Fonseca Passos, Acesso à Justiça, Celeridade Processual e Demandismo Crescente”, GEDICON-Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, s/d, disponível em http://goo.gl/RGj6tk.

[14] Essa impossibilidade está mencionada acima. Uma ilustração numérica é oferecida em Carlos Ferreira da Silva, Não há cobrança de juros sobre juros (anatocismo) nas parcelas prefixadas (prestações) dos contratos de financiamento, 12 de abril de 2014, disponível em http://goo.gl/RGj6tk.

[15] Joana Cardia Jardim Côrtes e Leonardo de Castro Gomes, Anatocismo no Mútuo Bancário com Parcelas Fixas – Uma Crítica ao Enunciado 301 da Súmula do TJRJ, abril de 2014, disponível em http://goo.gl/RGj6tk.

 

Autores

  • Brave

    é especialista em política tributária, é doutor em Economia pela University of Rochester e pesquisador sênior do Núcleo de Estudos Fiscais (NEF) da Escola de Direito de São Paulo (Direito GV).

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