Processo Eletrônico

Transparência foi ignorada na implantação do processo eletrônico

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22 de julho de 2014, 7h28

Com a Lei 11.419/2006 entrando em vigor em 19 de dezembro do mesmo ano, o Processo Judicial Eletrônico (PJe) foi instituído no âmbito dos órgãos do Poder Judiciário do país. Quase oito anos depois, os jurisdicionados, que deveriam ser os principais favorecidos pela novidade, sentem todos os dias — na pele e no bolso — as sequelas do parto à fórceps com que a ferramenta veio à luz nas cortes brasileiras.

Segundo o Conselho Nacional de Justiça, no final de 2013, as ações eletrônicas que tramitam no Judiciário via PJe já ultrapassavam um milhão. Lamentavelmente, o número expressivo também quantifica a má qualidade da metodologia.

O CNJ impôs o PJe mediante a Resolução 185/2013, que determinou às cortes sua implementação em pelo menos 10% dos órgãos jurisdicionais até o final de 2014. A urgência de se adaptar a determinação aos anseios da sociedade — especialmente no quesito “transparência das informações” — foi esquecida. Talvez ignorada.

Se é espantoso um processo eletrônico instituído pelo martelo da lei com tantas roupagens e ferramentas, o que se seguiu foi uma calamidade. Sob as vendas do CNJ e dos Tribunais de Contas, cada tribunal contratou um sistema de Processo Judicial Eletrônico "exclusivo": linguagens diferentes; servidores de internet variados e e por vezes avariados; programas e procedimentos dotados de injustificável complexidade. Assim, cada tribunal isolou e deformou o que deveria constituir uma unidade. O ato simples e corriqueiro de protocolar uma petição inicial para ajuizar uma ação judicial se tornou uma via crucis, algo sem precedentes na História do nosso Direito Processual. Como se o Judiciário não tivesse problemas suficientes, o banal foi aperfeiçoado ao contrário, para pior.

Hoje, a conclusão do curso de Direito e a aprovação do Exame da Ordem não são mais as condições sine qua non para a atuação advocatícia: é necessário um conhecimento de informática muito acima dos cursos básicos da área. Entre Códigos e mais de 13 mil leis, o advogado precisa se entender com os protocolos variados dos servidores web, dirimir as diferenças entre Internet Explorer e Firefox, interpretar os mistérios da linguagem Java e todas as ferramentas disponíveis do programa Adobe, tão somente para que sua uma petição chegue ao juiz.

Vencidos os obstáculos de acesso, entra-se no estágio de conviver com as falhas constantes do PJe, que já não surpreendem advogados e magistrados. O direito à prova da indisponibilidade do sistema — efetivado com a oferta de uma prosaica certidão eletrônica que assegura a prorrogação dos prazos processuais — está longe de ser acatado de forma automática e imediata e, sob os olhos de todos, a garantia constitucional de livre acesso ao Judiciário se torna flagrantemente comprometida.

A implantação ineficiente do PJe prossegue enquanto o acesso à Justiça rasteja.

Ciente das dificuldades alardeadas e atestadas pela advocacia militante, em 20 de maio deste ano o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil encaminhou um Ofício [1] ao CNJ, solicitando cópias de diversos documentos e uma série de esclarecimentos a respeito do PJe. Entre os pedidos, questões de ordem técnica do sistema, como a cópia do código-fonte, e outras de natureza administrativa, como a apresentação do custo total de implantação do projeto até o momento.

Ante o ofício de 26 pleitos, o presidente do CNJ, ministro Joaquim Barbosa negou in totum o pedido do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, afirmando que o Processo Judicial Eletrônico se insere dentre as exceções previstas na Lei de Acesso à Informação [2]. Sim, é alarmante: para o ministro, o direito de acesso à informação sobre o Processo Judicial Eletrônico restaria prejudicado porque conduziria ao conhecimento relativo sobre projetos cujo sigilo é imprescindível à segurança da sociedade, pondo em risco sistemas de interesse estratégico nacional [3].

Nas palavras do próprio ministro Barbosa [4], “a gênese do projeto PJe reside na posição estratégica que o desenvolvimento de um sistema próprio de processo judicial eletrônico detém no planejamento do Poder Judiciário nacional”. E acrescentou: “O PJe é o único sistema de processo judicial eletrônico capaz de contemplar todos os ramos da Justiça de forma indistinta, mantendo a base de dados e as regras de seu funcionamento (código-fonte) sob domínio constante da União e dos Tribunais que a ele aderem e auxiliam em seu desenvolvimento”.

De fato, o código-fonte é como a fórmula da Coca-Cola. Em uma descrição simples [5]: Código-fonte são as linhas de programação que formam um software em sua forma original. Inicialmente, um programador "escreve" o programa em uma certa linguagem —como C++ ou Visual Basic.

O programador precisa converter as linhas de programação em linguagem de máquina, a única que o computador é capaz de entender.

Quando você compra um programa, portanto, você compra a linguagem de máquina, e não o código-fonte. Com o código-fonte de um programa em mãos, um programador de sistema pode alterar a forma como esse soft funciona, adicionar recursos, remover outros — enfim, adaptar o soft às suas necessidades.

A definição esclarece que o fornecimento do código-fonte tornaria, de fato, a segurança do Programa vulnerável e, no Ofício encaminhado pela OAB podemos — de boa vontade — apontar no máximo outros dois ou três itens passíveis dos mesmos riscos [6]. Mas como pode o ofício ser negado in totum?

Afirmar que o PJe é propriedade intelectual da União em área de interesse estratégico, inserido na exceção à publicidade de informação prevista no parágrafo 1º do artigo 7º da Lei de Acesso à Informação (Lei 12.527/2011) não justifica a recusa completa e irrestrita do Ofício: restam 20 itens ao pleito. Data maxima venia, o entendimento do ministro é — no mínimo e de boa vontade também — distorcido e soberbamente protecionista.

Não há desculpa para a negativa de prestar as demais informações consubstanciadas no dever de transparência e publicidade dos órgãos públicos: como o dispêndio monetário total com o Projeto PJe; os valores repassados pelo CNJ aos tribunais; o fornecimento de cópia dos contratos firmados pelo CNJ com empresas privadas, que prestam, prestaram ou prestarão serviços na esfera do PJe; entre outras solicitações que visavam tão somente conhecer o custo efetivo do sistema para a sociedade brasileira [7].

A lamentável decisão do ministro engorda a lista de incontáveis manifestações jurisdicionais que comprometem o dever do Judiciário na defesa do Estado Democrático de Direito.

Segundo se extrai de sua própria página da internet, o Conselho Nacional de Justiça é uma instituição pública que visa aperfeiçoar o trabalho do sistema judiciário brasileiro, especialmente no que tange ao controle e à transparência administrativa e processual; cuja missão é contribuir para que a prestação jurisdicional seja realizada com moralidade, eficiência e efetividade em benefício da sociedade [8].

Ora, negando o deferimento de todos os pleitos formulados pela OAB sob o argumento de que o limite do direito à informação é a proteção dos interesses estratégicos da União — e equiparando o Processo Judicial Eletrônico a assuntos de Segurança Nacional — o CNJ desrespeita, desacata e nega seus próprios fundamentos e atribuições irrevogáveis.

Segundo o jurista José Afonso da Silva, cabe ao Conselho Nacional de Justiça trazer eficácia às funções judiciais, colaborar na formulação de uma política judicial e dar legitimidade democrática aos integrantes do Poder Judiciário, uma vez que estes não são eleitos pelo povo [9].

Nas palavras da ministra Eliana Calmon, “oficialmente, deposita-se no Conselho Nacional de Justiça a esperança de verem-se corrigidos, no âmbito do Ofício  070/2014-AJU, do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil:[10] Se o CNJ recusa o cumprimento de seu papel basilar, convém indagar se continuaremos a permitir que o Judiciário escolha e decida quem percorre e como percorre o caminho de acesso ao Judiciário". Repetindo: como pode o Conselho qualificar como interesse estratégico da nação a negativa contundente de prestar a tutela jurisdicional e conferir transparência e publicidade em suas ações?

O livre acesso ao Judiciário é um direito fundamental de todos os brasileiros e estrangeiros residentes no país, garantido pelo artigo 5º, inciso XXXV da Constituição Federal: "A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.

Como ensina o jurista Alexandre de Moraes: “Importante, igualmente, salientar que o Poder Judiciário, desde que haja plausibilidade da ameaça ao direito, é obrigado a efetivar o pedido de prestação judicial requerido pela parte de forma regular, pois a indeclinabilidade da prestação judicial é principio básico que rege a jurisdição, uma vez que a toda violação de um direito responde um ação correlativa independentemente de lei especial que a outorgue.”

Em síntese, a recusa in totum do Ofício da OAB é intolerável. As garantias constitucionais devem ser perseguidas como fruto maior de uma sociedade democrática, livre, justa e solidária. É preciso criar mecanismos de urgência defensiva e inibitória contra atuações da mesma natureza disforme, que não têm qualquer amparo constitucional. As distorções e abusos do Poder Judiciário exigem uma atuação mais combativa e repreensiva. A ineficiência e o erro de um sistema que serve à sociedade degrada a democracia e mutila a Justiça.

Em princípio, os ganhos de celeridade e qualidade apontados pela adoção do Processo Judicial Eletrônico são estatísticas flutuando entre o nada e o imponderável. Não se sustentam na visibilidade do dia a dia, da nossa rotina jurídica, enquanto os prejuízos aos operadores de direito e aos cidadãos se acumulam — tangíveis, aferíveis, sistemáticos na velocidade de um clique.

Com a mesma agilidade, precisamos adotar medidas judiciais efetivas, impondo ao Poder Judiciário a restauração imediata das falhas do PJe — que afronta e tolhe reiteradamente os direitos processuais mínimos que deveria favorecer e otimizar.

A demasiada cordialidade no trato da questão somente gerou expedientes frágeis e paliativos. A homeopatia tem suas virtudes, mas não pode curar uma infecção grave. O dano sofrido, não há quem possa deletar.


1 Ofício n. 070/2014-AJU, do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil.

2 Lei 12.527/2011

3 Artigo 7º, parágrafo 1º , da Lei 12.527/2011 – “O acesso à informação previsto no caput não compreende as informações referentes a projetos de pesquisa e desenvolvimento científicos ou tecnológicos cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado.”

4 Vide Ofício 195/GP/2014, do Conselho Nacional de Justiça — página 3.

5 http://www1.folha.uol.com.br/folha/informatica/ult124u7618.shtml

6 Do Ofício 070/2014-AJU, do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil:  “2) Informações sobre a arquitetura de Sistema PJe, além daquelas já dispostas no link http://www.cnj.jus.br/wikipj, tais como documento de arquitetura tecnológica do aplicativo, descrevendo linguagens, servidores de aplicações e de banco de dados utilizados no projeto e operação do Sistema, bem como descrição da arquitetura de camadas utilizadas e demais componentes tecnológicos empregados no desenvolvimento do aplicativo;” “21) Apresentar gerenciamento de escopo (no desenvolvimento de Sistema deve haver o gerenciamento para futuras atualizações e correções); “ “24) Fornecer acesso ao JIRA e seu histórico;”

7 Do Ofício 070/2014-AJU, do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil: 6) Apresentar o custo total do Projeto PJe até os dias atuais, discriminando de forma ordenada e cronológica, incluindo os custos dos tribunais que já implantaram, bem como o orçamento e a projeção de custos dos tribunais que irão implantar o Sistema; 7) Relação dos valores repassados pelo CNJ aos tribunais, discriminando os valores para cada tribunal que já implantou e a projeção orçamentária para os que irão implantar; 9) Fornecimento de cópia dos contratos e demais documentos firmados pelo CNJ com as empresas privadas que prestaram ou estão prestando serviços ao CNJ e aos Tribunais que já implantaram ou irão implantar o PJe;”

8 Sobre o CNJ http://www.cnj.jus.br/sobre-o-cnj

9 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 33 edição. Editora Malheiros. São Paulo, p. 568, 2009.

10 ALVES, Eliana Calmon. A ética no Judiciário. Diálogo & Debates da Escola Paulista da Magistratura, São Paulo, ano 5, nº4, junho/2005, p. 16-17

11 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 17ª ed. São Paulo. Ed. Atlas. 2005. pag. 72.

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