Autoridade sem supremacia

Cortes não têm papel central no sistema político-constitucional

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21 de julho de 2014, 8h48

Hoje, para todos os efeitos, a Constituição está nas mãos da corte. Aceita-se com naturalidade que a palavra final pertence aos juízes. Os outros poderes também interpretam a Constituição em suas ações do dia a dia. Mas, quando o conflito se estabelece, presumimos que a corte seja responsável pela resolução final. De modo geral, a comunidade não possui autoridade formal para interpretar a Constituição. Resistir aos entendimentos populares frequentemente é visto como uma virtude judicial. É a corte quem dita o significado da Constituição.

Em linhas gerais, este é o diagnóstico de Larry Kramer para definir o contexto de supremacia judicial da sociedade norte-americana, o que em alguma medida reflete a experiência constitucional brasileira dos últimos anos. Contra essa tradição de supremacia judicial, nasce uma corrente que recusa a premissa de que o Judiciário é — ou deve ser — a autoridade interpretativa final sobre o sentido da Constituição. E faz isso a partir de argumentos os mais variados. Partem do pressuposto comum de que há vida constitucional fora das cortes, e que o discurso de supremacia tem comprometido essa percepção.

Kramer (2004) fez uma releitura histórica das origens do constitucionalismo norte-americano e verificou que, no período dos Pais Fundadores (Founding Fathers), pensava-se, o poder de interpretar o sentido da Constituição era do povo. Não em um sentido puramente teórico ou abstrato, mas em um sentido prático e permanente. Era a comunidade em geral, e não o Judiciário ou qualquer ramo do governo, que decidia sobre a Constituição. Esta é a noção que ele chama de constitucionalismo popular, que difere do atual modelo de supremacia por não presumir que a interpretação jurídica possa acontecer apenas nos tribunais. Ao contrário, um processo interpretativo igualmente válido pode ser empreendido pelos ramos políticos do governo e pela comunidade em geral.

No Brasil, teve muita influência o trabalho de Peter Häberle (1997), que defende que todos aqueles que vivem a Constituição são responsáveis por interpretá-la. É preciso que nossa experiência constitucional esteja atenta a isso. Alguns podem ver essa ideia com desconfiança, mas não há nada que exija que a interpretação jurídica sobre a Constituição seja feita apenas por juízes e tribunais.

Dito isso, o constitucionalismo popular precisa dar conta de explicar como os desacordos constitucionais podem ser resolvidos. Sabemos como funciona o modelo de controle judicial: as partes divergem, há uma decisão que, em recurso, pode chegar ao Supremo Tribunal Federal, que se manifesta. Mas como seria o processo em um sistema de constitucionalismo popular? O que significa dizer que os desacordos constitucionais serão resolvidos pela própria comunidade? Uma teoria sobre o constitucionalismo popular precisa dar conta de como essa ideia poderia funcionar. Existe uma variedade de arranjos institucionais que procuram responder como o controle popular pode se tornar efetivo. Mas o principal mérito do constitucionalismo popular talvez esteja em recuperar um sentido ativo de comunidade que se havia esquecido.

Uma grande questão de pesquisa em Direito e política hoje talvez seja: qual é o valor da interpretação constitucional extrajudicial? Em outra medida: qual é, e qual deve ser, o papel dos atores não-judiciais na construção do significado constitucional? Atores não-judiciais podem levar a Constituição a sério? Faz sentido falar em revisão judicial sem supremacia judicial?

Há aqui um problema anterior. Cass Sunstein (1993) sugere que a tendência de identificar os significados da Constituição com as decisões da corte é um problema a ser resolvido. A Constituição serve a todo o país e não traduz apenas o que os juízes dizem que ela significa. A ênfase no Judiciário pode em alguma medida comprometer, em vez de promover, a mobilização e o sentimento de cidadania. Se o Judiciário se torna o espaço privilegiado de discussões e disputas, algo parece estar errado com a capacidade de mobilização e manifestação popular. Nessa linha, Sunstein sustenta que muito possivelmente Martin Luther King foi uma fonte muito mais importante de mudanças constitucionais do que qualquer uma ou até mesmo do que todas as decisões sobre questões raciais da Suprema Corte do Justice Warren (Sunstein, 1993: 145), que costuma ser descrita como um dos períodos de maior ativismo daquela corte na garantia dos direitos e liberdades civis.

Sunstein desconfia da capacidade das decisões judiciais de promoverem mudanças sociais. Para ele, de modo geral, a corte é muito mais eficiente como freio para mudanças políticas do que fazer surgir mudanças por sua própria conta. Nesse sentido é o trabalho de Gerald Rosenberg (1991), que observa que a visão de que o Judiciário ajuda a mobilizar atores políticos e protestos tem pouca sustentação empírica. Para este autor, nem sequer casos como Brown v. Board of Education, frequentemente descrita como uma decisão fundamental para a luta contra a discriminação racial nos Estados Unidos, tiveram a importância e a efetividade que lhe atribuem. Em sua visão, o caso Brown não produziu efeitos significativos em relação à discriminação, de modo que a mudança social somente se tornou possível quando os poderes Executivo e Legislativo atuaram de maneira conjunta com os tribunais (Rosenberg, 1991: 71).

Além disso, existe sempre o risco de o jogo virar. Se hoje a postura ativista do Supremo Tribunal Federal tem sido bem aceita por referendar importantes mudanças políticas, o modelo de supremacia judicial poderia comportar um eventual ativismo conservador da corte no futuro. Foi o que aconteceu com a Suprema Corte norte-americana nas últimas décadas, fazendo com que um notável grupo de juristas se reunisse em torno do constitucionalismo popular. Entre eles: Larry Kramer (2004), Mark Tushnet (1999) e Jack Balkin (2011). Em comum: a desconfiança quanto à excessiva atenção que a reflexão jurídica tem dado ao poder judicial. De diferentes formas, estão comprometidos em desafiar a supremacia judicial e uma certa sensibilidade anti-popular.

Mark Tushnet, por exemplo, é um teórico que está engajado numa tentativa de fazer com que os estudiosos “pensem para além da moldura”, no sentido de imaginar um modelo no qual a tarefa de responder com autoridade sobre a Constituição esteja melhor distribuída do que agora (Tushnet, 1999). A visão centrada nas cortes, ao contrário, define um direito constitucional em que as respostas apresentadas em outras arenas só terão validade na medida em que a própria corte as reconhecer.

Nessa discussão, diversas teorias dialógicas têm tentado oferecer um modelo deliberativo que resolva as tensões entre os poderes de uma forma mais produtiva. Nessa visão, a relação entre os poderes, antes de um embate adversarial, poderia ser vista como um diálogo cooperativo, em busca do melhor argumento. Alguns autores, como Luc Tremblay (2005), apresentam uma postura cética em relação às capacidades descritiva e prescritiva das teorias dos diálogos institucionais. Para Tremblay, não haveria propriamente um “diálogo” entre os poderes, mas um conjunto de atos unilaterais, que exerceria efetivamente pouca influência sobre a decisão final de cada uma das instituições (Tremblay, 2005: 617).

Numa outra perspectiva, é importante observar a contribuição recente de Jack Balkin em seu Living Originalism(2011). Ainda que inserido num debate muito particular da sociedade norte-americana — entre “originalismo” e “constituição viva”, o projeto de Balkin dialoga fortemente com as ideias aqui colocadas. Sua proposta sugere que a política se põe em movimento para dar conteúdo à via constitucional ao longo do tempo, e através de um processo de construção coletiva. E nesse processo coletivo intervém tanto políticos e juízes como movimentos sociais (Balkin, 2011: 01-06).

O pensamento constitucional centrado excessivamente na figura das cortes é um problema que precisa ser observado com cuidado. Mas pensar a Constituição fora das cortes não significa sugerir um papel desimportante do Judiciário nos processos de concretização constitucional. Ao contrário, as cortes são atores importantes, mas não centrais, ao funcionamento do sistema político-constitucional.

O Judiciário não precisa do discurso de supremacia judicial. Larry Kramer sugere, numa crítica do constitucionalismo popular ao discurso de supremacia judicial, que a ideia de supremacia judicial é desnecessária. E que ela diminui o alcance do envolvimento popular (Kramer, 2004: 249-253). Vale dizer, o discurso de supremacia reflete uma postura paternalista que compromete justamente aquilo que se quer proteger: a cidadania (Rosenfeld, 2003: 11-12).

A corte pode exercer sua autoridade sem supremacia judicial. A força ou fraqueza de um tribunal não depende de uma teoria projetada para lhe garantir a “última palavra”. Além disso, pensar a Constituição fora das cortes é expandir a possibilidade de reações políticas a decisões judiciais. Talvez a probabilidade de que uma decisão venha a ser revista seja muito pequena, mas a mera possibilidade de reações já mudaria a percepção da corte acerca de seus poderes. Isso pode tornar a corte mais sensível às opiniões do povo. Mais do que isso: favorece uma maior responsividade na dinâmica da tomada de decisão. O “povo” aqui é entendido não como uma entidade abstrata, que esteve presente num momento fundante e depois sumiu, mas como uma autoridade verdadeira. Kramer sugere que a percepção da Suprema Corte em relação ao povo seria como os tribunais inferiores em relação à Suprema Corte: interpretam a Constituição de forma independente, porém atenta à circunstância de existir uma autoridade superior que pode rever as suas decisões. A mera possibilidade de que isso ocorra já produz um sentido de responsabilidade e sensibilidade que frequentemente pode estar ausente num modelo de supremacia judicial (Kramer, 2004: 253).

De outro modo, essa visão sugere que a supremacia judicial não existe na prática. Os juízes frequentemente adotam o discurso de supremacia e reivindicam para si a “última palavra”, mas o próprio exercício de cidadania os impede. Além disso, Louis Fisher já se dedicava a demonstrar que o que ocorre, efetivamente, é uma convergência de interpretações, a partir de um diálogo constitucional entre os três poderes, em que importantes contribuições são também oferecidas pelo público em geral (Fisher, 1988).

Como se pode perceber a partir dos autores citados, o debate o modelo de supremacia judicial e suas alternativas é muito mais intenso na literatura estrangeira, sobretudo norte-americana, em que essa discussão é mais antiga, e por isso mesmo possui um amadurecimento teórico bastante grande. Diversos autores de diversas correntes têm apresentado críticas ao modelo de supremacia judicial norte-americano. As teorias dos diálogos institucionais têm ganho espaço nos últimos anos, mas vale citar ainda a proposta minimalista de Sunstein (2001), o departamentalismo de Keith Whittington (2002), a democracia deliberativa de Carlos Santiago Nino (1996), a democracia de direitos de Stephen Griffin (2005), o constitucionalismo democrático de Robert Post e Reva Siegel (2007), o controle-fraco de Mark Tushnet(2008), a vigorosa defesa da dignidade do Parlamento de Jeremy Waldron (1999) e, o que aqui interessa particularmente, as respostas do constitucionalismo popular.

As diversas teorias e perspectivas são importantes para a crítica, mas também para o exercício de imaginação institucional. A doutrina tem valorizado experiências renovadoras por que passaram países como Israel, Índia e África do Sul, por exemplo, mas parece desconsiderar a significativa contribuição latino-americana dos últimos anos. A Colômbia, por exemplo, desenvolveu um sistema que permite ao povo, em alguma medida, a defesa da constituição: é a chamada Ação Pública de Inconstitucionalidade. Um estudo empírico feito por Helena Alviar mostra como esse tipo de ação oferece uma maior atenção e garantia aos direitos fundamentais do povo (Alviar, 2004).

Ademais, é preciso ir além do debate tradicional, que ainda reflete antigas dicotomias e ainda muito restrito à discussão sobre a “dificuldade contramajoritária”. Respostas mais criativas têm surgido, e o constitucionalismo popular é particularmente inspirador para a experiência constitucional brasileira dos últimos anos.

Uma ressalva importante deve ser feita. O constitucionalismo popular chama atenção para o fato de que a Constituição não é apenas aquilo que fazem os tribunais. Muitas vezes, os críticos do Poder Judiciário avançam suas críticas reivindicando um retorno a um modelo de política parlamentar, tal como estabelecido hoje. É o que faz Waldron, de uma maneira bastante sofisticada, ao tentar pintar um retrato róseo do Parlamento como a doutrina majoritária costuma fazer em relação à corte. E também é o que fazem muitos dos teóricos do constitucionalismo popular, como Mark Tushnet. No entanto, é preciso pensar uma alternativa mais criativa. O que interessa promover, ao menos nesse texto, ao falar de constitucionalismo popular, é o poder popular, a maior intervenção da cidadania nos assuntos públicos e um constitucionalismo mais inclusivo.  

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