Senso Incomum

Um sintoma do atraso de nosso Direito: acreditar que basta estar na lei

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17 de julho de 2014, 8h00

Spacca
Um novo produto: o usucapião antiepistêmico
No Direito de terrae brasilis velhas teses se encalastram no imaginário social e jurídico e impedem o surgimento de novos saberes. Trata-se de algo que, pela passagem do tempo, já pode ser considerado como usucapião (anti)epistêmico, isto é, a sedimentação de algo errado e que passa a fazer parte do patrimônio do utente (e da comunidade jurídica). Usucapião antiepistêmico é uma variante do senso comum teórico dos juristas. Ou, como diria Warat, uma “constelação de representações, imagens, pré-conceitos, crenças, ficções, hábitos de censura enunciativa, metáforas, estereótipos e normas éticas que governam e disciplinam anonimamente os atos de decisão [judiciária] e de enunciação [do direito]”.[1]

Uma das teses equivocadamente usucapidas é a de que as leis “se bastam”, à revelia da Constituição. Com efeito, essa questão da relação “lei-Constituição” é algo que o Constitucionalismo Contemporâneo demorou muito para convencer os adeptos de positivismo clássico. Por exemplo, Ferrajoli passou por isso na Itália. Os juristas conservadores teimavam em continuar a aplicar os velhos códigos, ignorando a Constituição. Por isso, criou a sua teoria garantista. Por ela, uma lei tem dois âmbitos: vigência e validade. Ela pode ser vigente; mas a sua validade só será aferida na conformidade com a Constituição. Simples e ao mesmo tempo complexo. Até hoje tem gente que acredita que as leis podem valer mais do que a Constituição.

Em terrae brasilis isso é corriqueiro. Não fosse assim e já teríamos novos códigos. Não fosse assim e já teríamos feito uma filtragem hermenêutico-constitucional das velhas leis. Não fosse assim e a Lei das Contravenções Penais já não existiria no plano da validade. Não fosse assim e o sistema acusatório já teria sido aplicado pelo Poder Judiciário e Ministério Público.

Nesse sentido, basta observar algumas questões que, pelo seu valor simbólico, representam o modo pelo qual a instituição “positivismo” assegura a sua validade mesmo em face da emergência de um novo paradigma. É o caso de três dispositivos que funcionam como elementos de resistência no interior do sistema jurídico, como que para demonstrar a prevalência do velho em face do novo.

Três exemplos de usucapião antiepistêmico
Vejamos: mesmo com a vigência de um novo Código Civil desde 2003, foi aprovada a famosa lei como nome de chocolate, a LINDB (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro). Uma lei patética, que nada mais faz do que reproduzir o que dizia a velha LICC (Lei de Introdução ao Código Civil), de 1942. Segundo o artigo 4º, “quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais do direito”.

Ora, uma teoria do direito que quer ser séria não pode se quedar silente em face desse estado d’arte. Com efeito, ao se manter, nesta quadra da história, uma “lei de introdução ao Direito” (sic) pautada na interpretação do Código Civil e nos parâmetros para uma aplicação “geral” do direito, está-se contribuindo para uma resistência de um modelo (positivista) em relação ao novo constitucionalismo, que ingressa na história justamente para superar o antigo modelo. Desse modo, jamais se terá a constitucionalização do direito civil; no máximo, ter-se-á uma “codificação” da Constituição. A “Vontade de Constituição” (que nos remeteria ao fundamento do Estado Democrático de Direito) soçobra na “Vontade de Sistema” de uma malsinada “consciência legislativa”. É por isso que a LINDB apenas confirma a resistência positivista aqui denunciada. Trata-se, pois, de uma contradição: em pleno pós-positivismo, é mantido o principal ferramental do positivismo (na verdade, do positivismo mais primitivo e ingênuo). Mas o mais ridículo é a alusão que a LINDB faz aos princípios gerais do direito. Em Hermenêutica e(m) Crise trituro essa questão.

Já o artigo 335 do Código de Processo Civil, de 1973, acentua que, “em falta de normas jurídicas particulares, o juiz aplicará as regras de experiência comum subministradas pela observação do que ordinariamente acontece e ainda as regras da experiência técnica, ressalvado, quanto a esta, o exame pericial”. Consta que no projeto do novo CPC essa redação permanece, com pequenos ajustes gramaticais. A questão é: qual é a necessidade de um dispositivo desse jaez?

É flagrante a inconstitucionalidade e a incompatibilidade paradigmáticas ao se admitir a validade de dispositivo processual prevendo a aplicação de “regras de experiência comum subministradas pela observação…”, como se ao juiz fosse dado, em pleno Estado Democrático de Direito, o poder de suprir lacunas a partir de juízos particulares. Dizendo de outro modo, a questão, no fundo, é paradoxal: os princípios antes autorizadores do “fechamento do sistema” a partir do exercício da discricionariedade nos casos difíceis (omissão da lei, lacunas etc.), agora soçobram diante dos princípios constitucionais instituídos justamente para evitar essa “delegação” em direção ao protagonismo judicial.

Vale registrar: não raro tais institutos chegam a ser rechaçados até pelos que pretendem dar continuidade ao criticado paradigma positivista. É o caso do processualista e jusfilósofo Michele Taruffo, o qual, embora se auto-defina como “positivista crítico” e pregue a “discricionariedade utilizada racionalmente” na decisão judicial em termos de “livre-convencimento motivado”, mesmo assim critica o conceito de “máxima de experiência”, por julgá-lo:

“[…] mais desorientador do que útil: tende, de fato, a dar a impressão de que as máximas exprimam generalizações universais (ou pelo menos fundadas no id quod plerumque accidt), podendo, portanto, embasar inferências capazes de produzir conclusões dedutivamente certas (ou pelo menos próximas à certeza). Essa impressão é, entretanto, falaciosa, pois em muitos casos as noções formuladas nas máximas de experiência não exprimem qualquer generalização fundada em alguma base cognoscitiva; ao invés disso, exprimem nada mais do que lugares-comuns, preconceitos e estereótipos, consolidados em alguma medida no senso comum (que não correspondem, contudo, a qualquer conhecimento efetivo de algo)”[2].

Bingo. Neste ponto, Taruffo está certo. É esse o imaginário que prospera; são posicionamentos como estes que impedem efetivas e substanciais alterações nos códigos. Máximas de experiência, presunções, induções, preenchimento de lacuna, omissões, princípios gerais do direito etc. Tudo isso só releva a prevalência do velho. Sim, o velho que não morre e que não deixa o novo nascer.

Em linha similar, tem-se o artigo 3º do Código de Processo Penal, também da década de 40 do século passado, segundo o qual “a lei processual penal admitirá interpretação extensiva e aplicação analógica, bem como o suplemento dos princípios gerais do direito”. Esse dispositivo repete alusão ao apelo que o juiz deve fazer aos princípios gerais do Direito (sic), tal qual o aludido artigo 4º da LINDB, incluindo, entre eles, a equidade. Ainda há pouco o Supremo Tribunal Federal (HC 103.525) deixou de aplicar o artigo 212 do CPP em um caso em que o juiz elaborou toda a prova (não esqueçamos que o artigo 212 diz que o juiz somente fará perguntas complementares…). Argumento do STF: o réu, condenado a 8 anos de reclusão, não teria provado o prejuízo. Fundamento do Pretório Excelso: o princípio geral do direito “não há nulidade sem prejuízo”.

Observe-se que o problema não é só de nomenclatura, não valendo, portanto, a assertiva, por vezes vista em parte da literatura nacional, de que os princípios gerais do direito foram “positivados” na Constituição. Isso é inaceitável.

Insisto: trata-se de uma análise equivocada da função dos princípios constitucionais. Ou seja, enquanto os princípios gerais do Direito se constituíam em uma “autorização” para a discricionariedade, um fator que justificava a “saída” do juiz do sistema codificado para solucionar o caso que lhe era apresentado e que não encontrava resposta no Código (foi para isso que dispositivos desse jaez foram colocados nos Códigos), os princípios constitucionais apresentam-se, contemporaneamente, como um contraponto a essa discricionariedade.

Numa palavra final
A força simbólica desses dispositivos que fincam os marcos do positivismo no interior do (novo) constitucionalismo enfraquece sobremodo o valor da doutrina na construção do conhecimento jurídico, com o consequente fortalecimento do papel do aplicador da lei. Cada vez mais, os juristas ficam à mercê de decisões tribunalícias, como a dar razão ou a repristinar as velhas teses do realismo jurídico, pelas quais o direito se realiza na decisão, forma acabada de um positivismo que, buscando superar o normativismo exegético, abriu, historicamente, o caminho para discricionariedades e decisionismos. Do mesmo modo, não há como compatibilizar o (novo) constitucionalismo e positivismo jurídico, porque mesmo o primeiro constitucionalismo era contrário ao positivismo.

Trata-se, pois, de entender que, se o primeiro problema metodológico — como se interpreta — tem uma resposta que está fundamentada na superação do paradigma representacional, em que não mais cindimos interpretação de aplicação, o segundo — como se aplica — parece bem mais difícil de resolver, isto é, aqui se trata de dar uma resposta talvez ao maior desafio do Direito nestes tempos de pós-positivismo: como evitar decisionismos, ativismos etc. e alcançar uma resposta correta (adequada constitucionalmente) em cada caso. Ou seja, como transformar a Constituição — e a sua interpretação — em um direito fundamental do cidadão, no sentido de que o resultado dessa interpretação não seja fruto de um sujeito solipsista ou dependente de métodos igualmente elaborados a partir do (velho) paradigma representacional.

Enfim, a questão é: como fazer com que a comunidade jurídica acredite que não basta que algo esteja na lei? Não basta que o CPC fale em regras de experiência; não basta que que o CPP fale em “princípios gerais do direito”; não basta que a Lei Complementar 64 fale em presunções e induções; não basta que a lei-com-nome-de-chocolate (LINDB) apresente um monte de sandices… A questão é: tais dispositivos podem se manter diante da Constituição e do que representa o novo Constitucionalismo em termos paradigmáticos? Eis um antigo dilema: o novo e o velho, o velho e novo…

Post Scriptum: por que os leitores acham que um juiz pode aplicar a tese da insignificância para o valor de R$ 20 mil em caso de descaminho? E, ao mesmo tempo, centenas de juízes estão negando a aplicação desse mesmo princípio para ladrões de sabonete e whisky barato? Por que os leitores acham que o artigo 212 do CPP foi tornado ineficaz? Por que ninguém se impressiona com o dispositivo da LC 64, que no artigo 23 diz que o juiz pode julgar por presunções? A resposta é simples: o texto acima é um dos sintomas da crise do direito. Uma crise paradigmática — de cariz filosófico — que venho denunciado há mais de vinte anos. Até quando isso será assim?


[1] Warat, Luiz Alberto. Tomo I. Interpretação da lei: temas para reformulação. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1994. p.13.

[2] Taruffo, Michele. Uma simples verdade: o juiz e a construção dos fatos. Trad. Vitor de Paula Ramos. Madri: Marcial Pons, 2012. p. 81.

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