Contas à Vista

O que o governo deve fazer depois do vexame da seleção

Autor

  • Fernando Facury Scaff

    é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Mello Bentes Lobato & Scaff Advogados.

15 de julho de 2014, 8h00

Spacca
A Copa foi um sucesso de público e de crítica. Belos estádios, organização acima da média, tal como a segurança, limpeza, acessibilidade, alimentação e a excepcional participação da galera, dentro e fora dos estádios. A população brasileira fez um show a parte, a tal ponto que o sisudo jornal britânico Financial Times afirmou ser “uma sensação desconcertante visitar um país onde quase todo mundo é agradável”.

A seleção brasileira foi um vexame. Não apenas pela derrota de 7 x 1 para a Alemanha, que se constituiu no ápice da vergonha, mas pelo todo. Os números absolutos, esgrimados pelo técnico Felipão, não traduzem a realidade de quem assistiu os jogos. Suamos para vencer todas as partidas e, em alguns casos, para empatar com seleções bastante lutadoras, mas sem nenhuma tradição mundial, tais como as do Chile e do México. E tivemos bastante dificuldade para vencer a da Colômbia.

Conheço o bordão futebolístico de que “em Copa do Mundo não tem jogo fácil”, o qual deve ser reescrito, pois a Alemanha teve um jogo facílimo contra nosso selecionado e teria marcado mais de 7 se tivesse “apertado o pé”. O mesmo pode ser dito do jogo contra a Holanda, no qual perdemos de 3 x 0. Se fossemos somar os dois placares teríamos perdido de 10 x 1, e mesmo assim ficamos em 4º lugar no certame mundial — melhor do que merecia.

O Brasil é maior do que a seleção da CBF, que usa o nome e as cores do Brasil, sem pagar um tostão por isso.

Em 1950, quando o Brasil perdeu a final daquele campeonato mundial para o Uruguai por 2 x 1, o futebol nem era ainda o principal esporte nacional. Curiosamente a paixão nacional pelo futebol ainda não estava em seu auge, pois dividia atenções com o turfe (corridas de cavalo) e o remo — tanto que grandes clubes de futebol têm sua origem justamente neste esporte. Basta ver seus nomes: no Rio de Janeiro o Botafogo de Futebol e Regatas nasce do Club de Regatas Botafogo, fundado em 1894; o Club de Regatas do Flamengo também foi fundado para esta atividade em 1895, só após se dedicando ao futebol, que nem consta em seu nome de batismo; o mesmo ocorreu com o Clube de Regatas Vasco da Gama, fundado por um grupo de remadores em 1898. Em Belém, no Pará, o Clube do Remo também possui origem nas regatas, como indica seu nome, fundado em 1905.

O futebol foi introduzido no Brasil por Charles Miller, escocês de mãe brasileira, funcionário da São Paulo Railway Company, que organizou a primeira partida de futebol no Brasil, em que seu time, o São Paulo Railway Company (que depois foi incorporado pelo São Paulo Athletic Club, que ainda existe, mas sem futebol profissional) venceu por 4 x 2 o time da Gas Company of São Paulo, em 14 de abril de 1895. A seleção brasileira de futebol só foi formada em 1914, há exatos 100 anos.

Só após o “trauma” da derrota de 1950 é que o futebol tornou-se realmente a paixão nacional, fazendo com que ganhássemos os campeonatos mundiais de 1958, 1962, 1970, 1994 e 2002.

Todavia, esta é uma coluna sobre Direito Financeiro, e não sobre futebol. A análise sobre o custo da Copa e dos estádios vem sendo abordada em outras colunas por José Maurício Conti neste ConJur. Aqui o enfoque será outro: o que pode fazer o governo brasileiro para organizar o futebol após o histórico vexame dos 7×1 para a Alemanha — se é que pode fazer alguma coisa.

Aldo Rebelo, Ministro dos Esportes do atual governo, falou dias atrás sobre uma “intervenção indireta” na CBF, órgão que gerencia o futebol no Brasil. Há um projeto de lei, que aparentemente conta com o apoio do governo, para fazer uma espécie de Refis do Futebol (PL 5201/13, batizado de Proforte) a fim de conceder descontos e parcelar em 25 anos o astronômico débito de R$ 4 bilhões (em valores de 2012) que 300 times de futebol têm com a Receita Federal. A contrapartida desse parcelamento seria o afastamento dos torneios oficiais daqueles times que o descumprissem ou que atrasassem os salários dos atletas — prática bastante habitual em nosso país. O fato é que a FIFA, entidade privada que organiza os campeonatos internacionais de futebol não aceita a ingerência de governos nas regras dos campeonatos organizados por suas entidades associadas, das quais uma é a CBF. Veja-se, por exemplo, que a FIFA acabou de descredenciar a Nigéria de seus campeonatos justamente por causa de “ingerências governamentais”. Logo, este tipo de regra de exclusão de clubes para obrigá-los a pagar o parcelamento de débitos fiscais certamente não funcionaria, causando mais traumas.

Será este o caminho a ser trilhado? Propor uma transação fiscal através de um parcelamento incentivado como o Refis é o melhor caminho? Penso que não.

No sentido fiscal penso que os clubes, de futebol ou não, devem ser tratados pelo Estado brasileiro como são tratadas as pessoas jurídicas que não têm finalidades lucrativas, tais como as fundações ou associações civis, como verdadeiras entidades do terceiro setor que são. Devem ser fiscalizados pelo Ministério Público e ter curadorias especializadas. Devem ser obrigados a pagar os tributos e assumir outras responsabilidades tal como ocorre com estas entidades, inclusive quanto à responsabilidade pessoal de seus dirigentes — que devem ser remunerados por essa atividade, destronando o reino da cartolagem hoje existente. Sempre achei estranha essa “dedicação desinteressada” de cartolas pelo futebol profissional — como podem se dedicar tanto, e por tanto tempo, a uma atividade para a qual não são remunerados?

Por outro lado, os clubes de futebol se caracterizam por desenvolver uma atividade econômica muito peculiar, mesmo que sem fins lucrativos. A “mercadoria” que vendem não tem concorrência no mercado, pois seus torcedores são um público cativo, que só vai “comprar” os produtos de seu time. Afinal, quem vai vender uma bandeira do Corinthians para um torcedor do São Paulo?

Quem sabe se estas medidas fiscalizatórias e moralizadoras, se realmente forem efetivas e não “para inglês ver”, acabem algumas das artimanhas usuais que ocorrem quotidianamente no futebol e que hoje ficam circunscritas às páginas esportivas, tais como na contratação, venda e empréstimo de jogadores. Conheço histórias sem fim, em clubes da segunda e terceira divisão, de jogadores perna de pau que são contratados por verdadeiras fortunas, não jogam 10 minutos, têm seus contratos rescindidos e reclamam o pagamento de indenizações milionárias na Justiça do Trabalho, que lhes reconhece direitos e afundam os clubes na mais completa penúria. Terão sido legítimas estas contratações? Não haverá aí um “rateio disfarçado de benefícios” com alguns dirigentes? Nem vou falar da história muito estranha da venda do Neymar pelo Santos ao Barcelona, que levou o clube catalão a pagar “espontaneamente” uma montanha de impostos ao Fisco espanhol quando foram revelados os reais valores da transação.

Os clubes têm que pagar as dívidas que contraíram, sejam as tributárias, sejam as creditícias para a construção dos estádios, dentre outras. Reportagem do jornal Folha de S.Paulo relata que clubes como o Corinthians, Internacional e Atlético Paranaense fizeram empréstimos para a construção dos seus estádios. A dívida do Corinthians tem valor estimado de R$ 4,8 milhões e a primeira parcela vencerá em junho de 2015, devendo ser quitada em 155 parcelas. É certo que existem estados muito mais endividados, como o do Amazonas, que tomou de empréstimo R$ 400 milhões e deverá pagar nas primeiras 12 parcelas o equivalente a R$ 60 milhões.

Enfim, sendo o futebol uma atividade essencialmente privada, deve-se descartar a criação de uma Futebolbrás e deixar que as agremiações privadas cuidem dos campeonatos. Porém o Estado brasileiro não pode deixar de se fazer presente, fiscalizando e cobrando o respeito às leis, tal como faz com toda e qualquer pessoa, física ou jurídica, que tenha ou não finalidade lucrativa.

A CBF e os jogadores serão penalizados pelo mercado, esse ente implacável. Qual será o cachê do jogador Fred, após a Copa, para fazer propaganda? E o cachê do Felipão? Será que os jogos caça-níqueis patrocinados pela CBF mundo afora, tal como o alardeado Brasil x Argentina, em Pequim, ainda este ano, terão o mesmo valor de patrocínio? A rede Globo pagará o mesmo valor a título de direito de arena para a transmissão desses jogos? O mercado se encarregará de atribuir a esses personagens o valor que merecem. Talvez um dia a CBF atente para o fato de que a DFB (que é a Federação Alemã de Futebol) construiu 1.387 gramados de futebol naquele país em 10 anos, em contraponto à brasileira, que só construiu 3, e mesmo assim no campo de treino da Granja Comari, onde estava concentrada a seleção.

Acabemos o paternalismo e o compadrio que caracterizam a relação público x privada no futebol brasileiro. Tratando os clubes como são tratadas as demais pessoas jurídicas, mesmo as sem fins lucrativos, o governo brasileiro dará um primeiro passo para a normalização e o incentivo ao futebol, que tanta alegria nos traz — e muitas tristezas também, como nos dias que correm. Este me parece que deva ser o primeiro passo de uma longa jornada.

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    é advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados; é professor da Universidade de São Paulo e livre docente em Direito pela mesma Universidade.

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