Primado da lei

Decreto que mudou base do ITCMD em São Paulo é ilegal

Autor

  • Alan Brizola

    é advogado especialista em Direito Econômico e Negocial pela Escola Paulista da Magistratura e em Direito Tributário pela PUC/SP.

15 de julho de 2014, 11h59

Desde a expedição do Decreto Paulista 55.002/2009, que deu nova redação ao parágrafo único do artigo 16 do Decreto Estadual 46.655/2002, a base imponível do Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD), incidente sobre os imóveis urbanos, no estado de São Paulo, poderá ser o valor venal de referência do Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis (ITBI) eventualmente utilizado pelo município da situação do bem. Eis a redação atual do Decreto 46.655/2002:

Artigo 16. O valor da base de cálculo, no caso de bem imóvel ou direito a ele relativo será (Lei 10.705/00, art. 13):

I – em se tratando de:

a) urbano, não inferior ao fixado para o lançamento do Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana – IPTU;

(…)

Parágrafo único. Poderá ser adotado, em se tratando de imóvel:

(…)

2 – urbano, o valor venal de referência do Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis – ITBI divulgado ou utilizado pelo município, vigente à data da ocorrência do fato gerador, nos termos da respectiva legislação, desde que não inferior ao valor referido na alínea ‘a’ do inciso I, sem prejuízo da instauração de procedimento administrativo de arbitramento da base de cálculo, se for o caso.

Desde sempre, ensina-se, em Direito Administrativo, que os regulamentos devem ater-se ao conteúdo da lei. Não podem ir além dele. Não inovam a ordem normativa. Eis a lição de José Cretella Júnior (1999:265):

Não se confunde o regulamento com a lei, de modo algum podendo aquele ultrapassar os limites a esta conferidos. Se o regulamento se afasta da lei, é inconstitucional. Jamais podendo, portanto, ser exercido contra legem, desenvolve-se, isso sim, secundum legem, de acordo com os princípios legais, dentro da lei, porque a norma jurídica o limita e o condiciona.

Ora, o que fez o Decreto Estadual 55.002/2009? Cuidou do aspecto dimensional da hipótese de incidência do tributo, qual seja a base de cálculo, sem que a própria lei paulista instituidora do ITCMD (de 10.705/2000) tivesse cuidado. Com isso, o governador do estado ignorou os princípios constitucionais da reserva legal e da tipicidade em matéria tributária (artigos 150, inciso I da Constituição Federal e 163, inciso I da Constituição do estado de São Paulo), os quais impõem que somente a lei formal — e não o regulamento — pode desenhar o aspecto quantitativo da norma tributária (base de cálculo e alíquota).  

Tais princípios foram explicitados pelos incisos III e IV do artigo 97 do Código Tributário Nacional – CTN, nos seguintes termos:

Artigo 97. Somente a lei pode estabelecer:

(…)

III – a definição do fato gerador da obrigação tributária principal, ressalvado o disposto no inciso I do § 3º do artigo 52, e do seu sujeito passivo;

IV – a fixação de alíquota do tributo e da sua base de cálculo, ressalvado o disposto nos artigos 21, 26, 39, 57 e 65.

A Lei Estadual 10.705/2000 dispõe, no seu artigo 9º, que a base de cálculo do ITCMD será o valor venal do bem ou direito transmitido, entendendo-se por venal o seu valor de mercado. E, tratando-se da transmissão de imóvel urbano, a lei reza, apenas, que o valor da base imponível não será inferior àquele fixado para o lançamento do IPTU (artigo 13, inciso I).

Todavia, no texto da mesma lei não se encontra nenhum dispositivo vinculando a base de cálculo do ITCMD ao valor venal de referência do Imposto sobre a Transmissão de Bens Imóveis (ITBI) utilizado ou divulgado pelo município da situação do bem, como fez o Decreto Estadual 55.002/2009. Assim, resta evidente que tal Decreto inovou o sistema tributário estadual: criou nova base de cálculo para o ITCMD — a base de cálculo do ITBI, invadindo competência reservada à Assembleia Legislativa, conforme artigo 19, inciso I da Constituição do estado de São Paulo.

É bom repetir que a Lei Estadual 10.705/2000 dispõe que a base de cálculo do imposto será o valor venal. Não diz que será o valor venal de referência do ITBI. Isso foi obra do decreto, que avançou sobre matéria que não poderia avançar.

Note-se que tal decreto não cuida de mera atualização do valor monetário da base de cálculo. Não! Ele vai além: desenha nova base tributável — o valor venal de referência do ITBI utilizado ou divulgado pelo Município. Logo, não há que se falar aqui em aplicação do parágrafo 2º do artigo 97 do CTN.

Note-se ainda que, até a expedição do Decreto Estadual 55.002/2009, o lançamento do ITCMD relativamente às transmissões de imóveis urbanos era feito, na esmagadora maioria dos casos, pelo valor venal do imóvel para fins de lançamento do IPTU. A Fazenda Paulista, ao utilizar outra “perspectiva dimensível da hipótese de incidência” (Ataliba, 2004:150), tornou o tributo mais oneroso, uma vez que o valor da base imponível para efeito do ITBI (que vem sendo utilizado por alguns municípios) é consideravelmente superior àquele fixado para o IPTU. Assim, com mais razão convém aplicar o princípio da reserva legal, visto que somente a lei pode estabelecer a majoração de tributo (CTN, artigo 97, inciso II), e, segundo o parágrafo 1º do artigo 97 do CTN, “equipara-se à majoração do tributo a modificação de sua base de cálculo, que importe em torná-lo mais oneroso”.

Finalmente, o raciocínio segundo o qual o valor venal de referência do ITBI espelharia o valor de mercado do bem (portanto, se trataria de mera explicitação do artigo 9º da lei paulista), não convence. E por uma razão muito simples: o artigo 9º não disse que o valor de mercado seria representado pelo valor venal de referência do ITBI. Aliás, se o legislador estadual quisesse que eventual base de cálculo do ITBI servisse ao ITCMD, não perderia tempo definindo a expressão valor venal ou mandando aplicar, à hipótese, o valor da base imponível do IPTU, como fez nos artigos 9º, parágrafo 1º, e 13, inciso I da Lei Estadual 10.705/2000; enunciaria desde logo que, nas hipóteses de transmissões de imóveis urbanos, a base de cálculo seria o próprio valor venal [do imóvel] para fins de lançamento do ITBI. Como o legislador assim não agiu, resta evidente que tal Decreto não se restringe ao conteúdo da lei tributária: vai além dele. É decreto praeter legem. Portanto, ilegal.

A posição do Tribunal de Justiça de São Paulo
Há vários julgados do tribunal paulista rejeitando a aplicação do Decreto Estadual 55.002/2009 por ferir o princípio da reserva legal em matéria tributária.

Por exemplo: a 6ª Câmara de Direito Público, na Apelação/Reexame Necessário 1007151-84.2013.8.26.0053, da Comarca de São Paulo e Relatoria de Leme Campos, j. 9 de junho de 2014, v.u., decidiu o seguinte:

MANDADO DE SEGURANÇA. ITCMD. Adoção do valor de referência do ITBI como base de cálculo. Descabimento. A base de cálculo do imposto é o valor venal utilizado para a cobrança do IPTU. Impossibilidade de aplicação do Decreto nº 55.002/09 que alterou a forma de cobrança do tributo, extrapolando os limites da Lei nº Estadual nº 10.705/00 (RITCMD, Decreto nº 46.655/02). Precedentes. Ação julgada procedente na 1ª Instância. Sentença mantida. Recurso não provido.

A 4ª Câmara de Direito Público, na Apelação 0036179-56.2009.8.26.0053, da Comarca de São Paulo e Relatoria de Paulo Barcellos Gatti, j. 9 de junho de 2014, v.u., igualmente decidiu que o Decreto em questão padece do vício da ilegalidade. Eis um trecho do acórdão:

… destaque-se que, de fato, o Decreto nº 50.002/2009, a partir do momento em que estabeleceu a base de cálculo do ITCMD – valor venal de referência considerado para lançamento do ITBI –, acabou por indiretamente majorar o tributo em questão, onerando o contribuinte (fl. 173), o que o fez em reprovável invasão à esfera de competência normativa relegada exclusivamente à Lei Ordinária (princípio da reserva legal art. 150, I, da CF/88 e art. 97, incisos II e IV cc. § 1º, do CTN), configurando verdadeira hipótese de ilegalidade (art. 99 do CTN).

No mesmo sentido, a 7ª Câmara de Direito Público, na Apelação/Reexame Necessário 0025151-52.2013.8.26.0053, da Comarca de São Paulo e Relatoria de Moacir Peres, j. 19 de maio de 2014, v.u., decidiu que:

MANDADO DE SEGURANÇA. Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doação de Quaisquer Bens ou Direitos – ITCMD. Pretensão de recolhimento nos termos do Decreto Estadual nº 55.002/2009. Inadmissibilidade. Referido decreto, ao estabelecer que a base de cálculo será o valor venal de referência do ITBI, extrapolou o limite regulamentador e ofendeu o princípio da legalidade. Inteligência do artigo 146, III da Constituição Federal e do artigo 97, inciso II e § 1º do Código Tributário Nacional. Remessa necessária e recurso da Fazenda Estadual improvidos.

Conclusão
O poder regulamentar em matéria fiscal permite à Administração Pública apenas explicitar a base imponível do tributo criada pela lei, mas não lhe permite estabelecer (para o ITCMD) a base de cálculo de outro imposto (o ITBI), de sorte a criar, à socapa, outra base não prevista na lei. Obviamente, o Chefe do Executivo Estadual, ao expedir o Decreto 55.002/2009, ignorou esses limites do poder regulamentar.

Em O Futuro da Democracia, Norberto Bobbio lembra que o "primado da lei se baseia no pressuposto de que os governantes sejam maus, no sentido de que tendem a usar o poder em benefício próprio" (2011:168). No Brasil, os governantes não apenas são maus porque tendem a usar o poder em benefício próprio, mas, sobretudo, porque nem sequer respeitam o primado da lei.


Referências bibliográficas
ATALIBA, Geraldo. Hipótese de incidência tributária. 6. ed., 5ª tiragem. São Paulo: Malheiros, 2004. 

BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. Trad.: Marco Aurélio Nogueira. 12ª Reimpressão. São Paulo: Paz e Terra, 2011.

CRETELLA JÚNIOR, José. Direito administrativo brasileiro. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999.

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