Princípios constitucionais

É preciso rever o neoconstitucionalismo pois defendê-lo seria uma contradição

Autor

  • Ruy Samuel Espíndola

    é advogado militante com atuação nos tribunais superiores - Mestre em Direito Público pela UFSC - Professor de Direito Constitucional e de Processo Constitucional de Pós-Graduação – Membro Consultor da Comissão Nacional Estudos Constitucionais da OAB-Federal e da Comissão de Direito Constitucional da OAB-SC – Conferencista internacional - www.espindolaevalgas.com.br

13 de julho de 2014, 9h24

Em meados da década de 90 surgiram no Brasil as primeiras obras sobre a nova normatividade dos princípios constitucionais[1]. Princípios até então indiferenciado das regras, e tratados como de pouco ou nenhuma operância prática na vida do Direito. Raramente se invocava um princípio como fundamento normativo de uma pretensão jurídica. Passados quase cinco lustros, chegamos ao lado oposto do problema. Se antes quase não havia princípios constitucionais na cena jurídica, hoje não há princípio que baste para justificar decisões judiciais ou administrativas muitas vezes dadas sem critério metódico de aplicação. Fizemos “prática” dos princípios, sem digestão da séria e adequada teoria para compreendê-los e aplicá-los, ou melhor, sem adequada “metódica de concretização constitucional”, como diria Gomes Canotilho.

Passamos da parcimônia à banalização, sem o devido acompanhamento teórico, dogmático e normativo, ou melhor, sem métodos aplicativos ou interpretativos adequados. Estamos vivendo num mundo que reclama justiça – a dada pelos princípios – e que está a esquecer da segurança jurídica – somente assegurada pelas regras. Esse fenômeno é destacado pelo “moralismo” crescente no Direito, ou seja, a tendência de, no ato aplicativo/interpretativo, sobrevalorizar os princípios em detrimento das regras; de sobrevalorizar análises morais do direito, com correção, muitas vezes, no ato aplicativo, daquilo que o intérprete entende como falha ou excesso do legislador ordinário ou mesmo do legislador constituinte.

Essa tendência tem procurado deslocar o protagonismo de produção do direito do Legislativo e do Executivo para o Judiciário; tem valorizado mais a justiça do caso concreto do que a justiça estabelecida pela norma legal, em termos gerais; tem acentuado o uso da ponderação de bens[2], especialmente entre princípios, toldando o valioso processo de subsunção mais próprio às regras e sua relação norma-fato; tem provido a aceitação de conexões entre o direito e a moral, para que a segunda seja critério de correção hermenêutica ou de validade do primeiro.

Essa tendência, no Direito Constitucional, tanto pelos seus defensores (Eduardo Ribeiro Moreira[3], Ecio Duarte e Susanna Pozzolo[4]) quanto por seus críticos (Humberto Ávila[5], André Rufino[6], Daniel Sarmento[7], Dimitri Dimoulis[8] e, por todos, Lênio Streck) tem sido chamada de neoconstitucionalismo.

Para Daniel Sarmento seu pendor judicialista seria antidemocrático. A preferência por princípios e ponderação, em detrimento de regras e subsunção, seria perigosa, sobretudo em razão da peculiaridade de nossa cultura jurídica e política. Ela poderá gerar uma panconstitucionalização do direito em prejuízo da autonomia pública do cidadão e da autonomia privada do indivíduo. Isso retiraria o espaço do legislador, em detrimento da democracia. Isso constituiria excesso antidemocrático, e poderíamos chegar a um totalitarismo constitucional mediado pelos juízes.[9]

Essa ênfase excessiva no espaço judicial pode olvidar que outras arenas são importantes à concretização da Constituição e realização dos Direitos Fundamentais. Isso obscurece o papel do Legislativo e do Executivo nesta tarefa. Precisamos cuidar para que a toga não assuma uma posição paternalista diante de uma sociedade infantilizada (Sarmento). Como está a ocorrer com a justiça eleitoral e o moralismo contra os direitos políticos fundamentais, no tema “ficha limpa”: agride-se a vontade popular ao argumento de sua salvaguarda.

Por outro lado, esse movimento pressupõe a idealização da figura do juiz, e essa “idealização” não se compatibiliza com as notórias deficiências estruturais do Judiciário e da formação jurídica de seus membros; pois a valoração da ponderação e dos princípios não tem sido acompanhada do necessário cuidado com as justificações das decisões judiciais.

Passamos da água para o vinho na matéria e chegamos ao extremo indesejável. Mesmo quando desnecessário, os princípios da dignidade da pessoa humana e da razoabilidade são utilizados para menoscabar regras constitucionais ou regras legais. A dignidade é usada, muitas vezes, para dar pomposidade ao discurso e salientar o politicamente correto – e a razoabilidade, para que os juízes substituam livremente as valorações de outros agentes públicos pelas suas próprias.

Há um custo elevado para isso tudo, pela incerteza e insegurança que se gera ao se desprezar o papel das regras com a sobrevalorização desmedida dos princípios.

É preciso um retorno do pêndulo[10]. Sem descartar princípios e ponderação, é necessário resgatar regras e subsunção. O ônus argumentativo deve ser sério e bem fundado, quando a decisão for mediada por princípios. E esses devem ser estritamente necessários à decisão e para casos realmente difíceis.

No Brasil o neoconstitucionalismo é impulsionado por outro fenômeno social: descrença geral da população em relação à política majoritária, e, sobretudo, no descrédito do Poder Legislativo e dos partidos políticos, e na esperança crescente que se nutre no Judiciário.

Humberto Ávila afirma que as mudanças mais importantes preconizadas pelo neoconstitucionalismo não encontram suporte na ordem jurídica brasileira, pois a Constituição vigente seria antes regulatória, regrística, do que principiológica. Para Ávila nada seria mais premente do que rever o movimento que se convencionou chamar de neoconstitucionalismo no Brasil. Defendê-lo seria uma contradição performática: se defenderia a primazia da Constituição, violando-a; haveria um “não-constitucionalismo”, um movimento “barulhento” que proclama a supervalorização da constituição, enquanto silenciosamente promoveria a sua desvalorização.

As críticas de Sarmento e Ávila merecem a nossa atenção e reflexão. Assim como as de George Marmelstein[11] e Marcelo Neves[12].

Lenio Streck, um dos mais argutos críticos da discricionariedade judicial sem limites e do uso abusivo da teoria dos princípios para qualquer fim, em seu Verdade e Consenso, afirma que o chamado neoconstitucionalismo “acabou por incentivar/institucionalizar uma recepção acrítica da Jurisprudência dos Valores, da teoria da argumentação de Robert Alexy (que cunhou o procedimento da ponderação como instrumento pretensamente racionalizador da decisão judicial) e do ativismo judicial norte-americano (…).” Para ele, “passadas duas décadas da Constituição de 1988, e levando em conta as especificidades do direito brasileiro, é necessário reconhecer que as características desse ´neoconstitucionalismo´ acabaram por provocar condições patológicas que, em nosso contexto atual” contribuem “para a corrupção do próprio texto da Constituição”[13].

É necessária reflexão séria e fundada sobre os pontos acima expostos. O campo de indagação, interpretação/aplicação/concretização dos princípios e das regras exige maior cuidado do jurista e do operador do direito em geral.

Esse breve e modesto texto, inspirado nos grandes autores citados, procura dar sua contribuição ao debate crítico em torno do tema.


[1] De nossa autoria destacamos os livros Conceito de Princípios Constitucionais: elementos teóricos para uma formulação dogmática constitucionalmente adequada. 2º ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. 288 p., que teve sua primeira edição em janeiro de 1999 e Princípios constitucionais e atividade jurídico-administrativa: anotações em torno de questões contemporâneas. In: LEITE, George Salomão (org.) Dos Princípios Constitucionais: considerações em torno das normas principiológicas da Constituição. São Paulo: Malheiros, 2003. 429 p. p. 254-293; A Constituição como Garantia da Democracia: o papel dos Princípios Constitucionais. Revista de Direito Constitucional e Internacional. Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política. São Paulo: Revista dos Tribunais/Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, ano 11, abr./jun. 2003, n. 44, p 75/86.

[2] Ver em norte crítico, sobre o uso ametódico da chamada “ponderação”, o excelente texto de Néviton Guedes, na coluna Constituição e Poder, “Da irracionalidade à hiper-racionalidade nas decisões”, Revista Consultor Jurídico, de 14 de janeiro de 2013, acesso em 19.02.13, 21:56 h.

[3] Eduardo Ribeiro Moreira, Neoconstitucionalismo – a invasão da Constituição, São Paulo, Editora Método, 2008.

[4] Ecio Duarte e Susanna Pozzolo, Neoconstitucionalismo e Positivismo Jurídico, 2 ed., São Paulo, Landy, 2010.

[5] Humberto Avila, Neoconstitucionalismo: entre a Ciência do Direito e o Direito da Ciência, Revista eletronica de Direito do Estado n. 17, jan/fev/mar/ 2009, Salvador.

[6] André Rufino do Vale, Aspectos do Neoconstitucionalismo, Revista Brasileira de Direito Constitucional, n. 9, jan./;jun 2007.

[7] Daniel Sarmento “O Neoconstitucionalismo no Brasil: riscos e possibilidades”, na obra coletiva que ele coordena Filosofia e Teoria Constitucional Contemporânea, Rio, Lumen Juris, 2009, p. 113/145.

[8] Dimitri Dimoulis “Neoconstitucionalismo e Moralismo Jurídico”, in Filosofia e Teoria Constitucional Contemporânea, Rio, Lumen Juris, 2009, p. 213/226.

[9] Vejamos o que nos diz Néviton Guedes em instigante artigo: “Descontado algum exagero retórico, o fato é que não parece difícil defrontarmos com teorias que sustentam, velada ou abertamente, que hoje tudo o que Estado, ou a sociedade, faz ou promove pode ser “corrigido” pelo Poder Judiciário. Assim, não haveria escolhas políticas, não haveria liberdade de avaliação, não haveria possibilidade de adaptação do Direito ou do Estado à realidade. Tudo já se encontraria predisposto na Constituição, em todas as suas peculiaridades e especificidades, não havendo espaço para decisões do administrador ou do legislador. Esse totalitarismo constitucional também abarcaria esferas de liberdade da sociedade, como é o caso da família, da igreja e dos relacionamentos interpessoais.” “Tomemos a sério o princípio da separação de Poderes”, Coluna Constituição e Poder, Revista Consultor Jurídico, 21 de janeiro de 2013, acesso em 19.02.13, 21:23h.

[10] Sarmento, fundado em expressão cunhada apor Ana Paula de Barcellos, adverte: “Penso que é chagada a hora de um retorno do pêndulo no Direito Brasileiro, que, sem descartar a importância dos princípios e da ponderação, volte a levar a sério também as regras e a subsunção.” Cf. seu O Neoconstitucionalismo no Brasil: riscos e possibilidades, obra citada, p. 140.

[11] “No fundo, a ideia de sopesamento/ balanceamento/ ponderação/ proporcionalidade não está sendo utilizada para reforçar a carga argumentativa da decisão, mas justamente para desobrigar o julgador de fundamentar. É como se a simples invocação do princípio da proporcionalidade fosse suficiente para tomar qualquer decisão que seja. O princípio da proporcionalidade é a katchanga real!

 Não pretendo, com as críticas acima, atacar a teoria dos princípios em si, mas sim o uso distorcido que se faz dela aqui no Brasil. Como bem apontou o Daniel Sarmento: “muitos juízes, deslumbrados diante dos princípios e da possibilidade de, através deles, buscarem a justiça – ou o que entendem por justiça -, passaram a negligenciar do seu dever de fundamentar racionalmente os seus julgamentos. Esta ‘euforia’ com os princípios abriu um espaço muito maior para o decisionismo judicial. Um decisionismo travestido sob as vestes do politicamente correto, orgulhoso com os seus jargões grandiloqüentes e com a sua retórica inflamada, mas sempre um decisionismo. Os princípios constitucionais, neste quadro, converteram-se em verdadeiras ‘varinhas de condão’: com eles, o julgador de plantão consegue fazer quase tudo o que quiser” (SARMENTO, Daniel. Livres e Iguais: Estudos de Direito Constitucional. São Paulo: Lúmen Juris, 2006, p. 200). Sarmento tem razão. Esse oba-oba constitucional existe mesmo. E não é só entre os juízes de primeiro grau, mas em todas as instâncias, inclusive no Supremo Tribunal Federal. Isso não significa dizer que se deve abrir mão do sopesamento. Aliás, não dá pra abrir mão do sopesamento, já que ele é inevitável quando se está diante de um ordenamento jurídico como o brasileiro que aceita a força normativa dos direitos fundamentais. O que deve ser feito é tentar melhorar a argumentação jurídica, buscando dar mais racionalidade ao processo de justificação do julgamento, através de uma fundamentação mais consistente, baseada, sobretudo, em dados empíricos e objetivos que reforcem o acerto da decisão tomada. Abaixo a katchangada!” in LIMA, George Marmelstein. Alexy à brasileira ou a Teoria da Katchanga. Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3222, 27 abr. 2012 . Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/21646>. Acesso em: 28 abr. 2012.

[12] “Crítica: Alguns segmentos da comunidade jurídica brasileira têm adotado como ponto central da discussão constitucional hoje a distinção entre princípios e regras. Esses grupos se auto-intitulam como neoconstitucionais ou paradigma do “novo constitucionalismo contemporâneo”, sob a imagem de progresso, de avanço ao futuro. Qual a sua opinião sobre essas formulações teóricas?

Marcelo Neves: Eu acho que o neoconstitucionalismo é mais uma retórica jurídica para afirmar espaço no ambiente acadêmico e judicial. Mas é pouco consistente. Porque as afirmações do neoconstitucionalismo, com a de que não há um direito constitucional no passado e que o direito constitucional que foi construído no Brasil só foi concebido recentemente por uma teoria constitucional é um tanto ingênuo. Se você pega autores como o Alexy na Alemanha, eu me lembro que um colega, o Virgílio, havia comentado comigo que Robert Alexy passava aos alunos leituras obrigatórias de Savigny. Savigny não tem nada a ver com a gente, mas a gente só pode compreender, principalmente na ciência jurídica alemã, a partir de certas tradições e refletir criticamente, tentando supera-las. Afirmar que não há nada anteriormente, isto é simplificação. É uma retórica pois você tem argumentos constitucionais complexos, como em autores como Rui Barbosa, Pimenta Bueno, em textos diversos. Pontes de Miranda é um jurista imbatível na sua argumentação constitucional, que apenas é de outra época. Mas o neoconstitucionalismo tem prejudicado, de certa maneira, o debate centralizado em um certo principialismo. Principialismo que toma-se como pompa, para facilitar a aprovação de teses das mais contraditórias. Então, nesse sentido, me parece que esse principialismo típico do neoconstitucionalismo, esse fascínio doutrinário do neoconstitucionalismo também prejudica a prática jurisdicional e torna essa prática confusa. E é claro, tem efeitos práticos para aqueles que estão no jogo da prática jurídica, porque facilita enormemente o potencial persuasivo da pompa principialista. Ele tem um aspecto que empolga, e portanto, eu acho que deveria ser repensado. Devemos esquecer esses “neos” e “novos”, e pensar que a gente tem mais que refletir do que criar rótulos. Fazer reflexões profundas.” Conforme http://www.osconstitucionalistas.com.br/marcelo-neves-entre-hidra-e-hercules, entrevista de Marcelo Neves, sobre seu livro ”Entre Hidra e Hercules”. Acesso em 09.09.13.

[13] Cf. Lenio Luiz Streck, Verdade e Consenso – Constituição, Hermenêutica e Teorias Discursivas, 4 ed., São Paulo, Saraiva, 2011. p. 36.

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