Passado a Limpo

Parecer de 1913 tratou do caso da reforma de capitão de Brigada Policial

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da USP doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP professor e pesquisador visitante na Universidade da California (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

10 de julho de 2014, 8h01

Spacca
A Consultoria-Geral da República opinava sobre matérias de altíssimo relevo para o Estado, bem como se manifestava a propósito de assuntos funcionais, de muita particularidade, e não menos interessantes. É o que se comprova com parecer redigido em 1913, e que tratou da reforma de um capitão de Brigada Policial que havia, inclusive, levado a questão ao Supremo Tribunal Federal.

Como se lê em algum ponto do parecer, Rodrigo Octávio invoca a doutrina do sibi imputet, que consiste na constatação de circunstância de que alguém deva imputar culpa de algo a si próprio. Especialmente, neste inusitado caso, o interessado teria apresentado requerimento mal instruído, com pedido inadequado, cujo deferimento o teria prejudicado.

O interessado pretendia ser reformado no posto de capitão, e não no de alferes, buscando, por isso, o recebimento de valores mais expressivos. Em 1894 fora reformado como alferes. A reforma foi anulada e o interessado retornou ao serviço militar, ainda no posto de alferes.

Em seguida, judicialmente, o interessado requereu que fosse reincorporado no posto de capitão, e não no de alfares, com o objetivo de seguir para a reforma naquela condição, de capitão. Buscava, assim, que o Judiciário o reformasse como capitão.

Concomitantemente, requereu administrativamente a mesma pretensão que havia deduzido em juízo. Foi informado que deveria desistir da ação, para que seu pleito fosse atendido. Desistiu. A desistência foi homologada.

Em seguida, foi reformado, administrativamente, como capitão. Era o que pretendia. Porém, invocou que deveria ser reformado como capitão desde a data da primeira reforma, e não da segunda, quando efetivamente fora reformado como capitão.

Verificou-se que o pedido fora no sentido de ser reformado a partir da segunda reforma, e não da primeira, pelo que, apenas um eventual juízo de equidade poderia se sobrepor à literalidade da interpretação do problema. Segue o parecer.

Gabinete do Consultor-Geral da República – Rio de Janeiro, 25 de novembro de 1913.

Exmo. Senhor Ministro de Estado da Justiça e Negócios Interiores – Com o Aviso nº 1.829, de 11 do corrente, me remeteu V. Ex. o processo referente à reforma do capitão da Brigada Policial Manoel de Assumpção e Silva a fim de que desse parecer sobre suas reclamações.

Havendo estudado convenientemente o caso passo a dar a V. Ex. meu modo de ver.

O requerente tendo sido em 1894 reformado no posto de alferes promoveu a nulidade judicial de sua reforma o que conseguiu por sentença confirmada pelo Supremo Tribunal Federal. Tendo em consequência sido mandado agregar ao seu corpo, foi o reclamante posteriormente, por haver julgado incapaz para o serviço, reformado de novo em 1909 ainda no posto de alferes. Não se conformando ainda com sua reforma, o requerente intentou novo processo judicial. Mas, enquanto esse processo estava pendente de solução, o alferes Assumpção dirigiu ao Ministério da Justiça e Negócios Interiores o requerimento de 31 de agosto de 1911 no qual, fazendo ver que a nova reforma que lhe fora imposta devia ser no posto de capitão, pois ele deveria ter sido promovido por antiguidade até esse posto no estado de agregação em que se achava, pedia que “revendo-se o respectivo processo, se lhe concedesse a reforma no posto de capitão, desistindo de qualquer indenização pecuniária anterior à data do reconhecimento pelo Governo desse direito que ora solicitava (reforma no posto de capitão) bem como de qualquer ação judiciária para o mesmo fim”.

Informado esse requerimento, foi exigido que o peticionário fizesse previamente desistência do pleito que iniciara, o que foi regularmente feito, julgando-se a desistência por sentença, conforme informação do doutor 2º Procurador da República.

Em vista disso, por decreto fundamentado, de 10 de junho de 1912, foi o requerimento deferido para o efeito de considerar a reforma, que lhe havia sido dada no posto de alferes, como tendo sido feito no posto de capitão.

Esse decreto foi publicado a 12 de julho, e a 19 desse mês, em requerimento, corroborado pelo de 8 de setembro de 1913, o reclamante fez ver que, tendo-se apenas considerado sua reforma como melhorada, mas continuando-se a contá-la da data do segundo decreto que o reformará em alferes (21 de outubro de 1909), era-lhe ainda imposto um prejuízo pecuniário, por isso que, entre a data da reforma de 1909 e a sua melhoria no posto de capitão (10 de julho de 1912) fora promulgado o Decreto nº 2.290, de 13 de dezembro de 1910, que aumentará a tabela dos soldos. Parecia ao peticionário que, não vigorando mais, ao tempo em que sua reforma foi considerada como sendo no posto de capitão, as tabelas da Lei nº 258, de 19 de dezembro de 1894, devia caber-lhe o soldo que vigorava ao tempo desse novo decreto, e assim:

“por isso e por equidade, escreve ele, visto haver o peticionário desistido da diferença de vencimentos entre este e aquele posto, requeria que se mandasse retificar o aludido decreto de 10 de julho e 1912 para que sua reforma seja com o soldo da tabela A, da Lei nº 2.290, de 13 de dezembro de 1910, em vigor ao tempo do mesmo decreto”.

Evidentemente, e se a questão tivesse sido claramente definida desde o início, o hoje capitão Assumpção poderia razoavelmente pretender o que ora pede. “Realmente, na ação que propôs perante o Juízo da 2ª Vara Federal deste Distrito, e cujos autos requisitaram para estudo, ele pediu que se declarasse “insubsistente e ilegal” o ato de sua segunda reforma” (21 de outubro de 1909) sendo-lhe “assegurados todos os direitos ligados à atividade do posto de alferes”, o que importava na anulação da segunda reforma.

Ora, se foi isso que ele pediu em juízo, e se, para atender o requerimento em que ele, no correr dessa ação, solicitou a revisão de sua reforma, que devia ser no posto de capitão, o Governo exigiu que desistisse da ação, o que foi feito, parece que ele estava no direito de esperar que fosse pelo Governo atendido naquilo que ele pretendia na ação de que desistiu, e era mais do que realmente se lhe concedeu com o Decreto de 10 de julho.

Parece-me, entretanto, por outro lado que esse decreto é rigorosamente jurídico, pois que ele foi expedido nos precisos termos em que o peticionário o requereu. No requerimento inicial, de 31 de agosto de 1911, não se pede claramente que se anule a reforma anterior em alferes para ser feita nova reforma em capitão, com o soldo ora vigente. Não; o requerente diz textualmente “quando o Governo resolveu reformá-lo, devia fazê-lo no posto de capitão que por direito lhe assistia e não no de alferes, pelo que pedia que, revendo o respectivo processo, se lhe concedesse reforma no posto de capitão”.

Nesse requerimento nem havia mesmo referência positiva à ação judicial e menos ainda, portanto, declaração do que ele pedia em tal ação. Apenas, no final do requerimento, o requerente declara que desiste de indenização pecuniária anterior ao reconhecimento de seu direito, bem como de “qualquer ação judiciária para o mesmo fim intentado”. A referência não pode ser mais vaga, ficando-se mesmo na ignorância de que a ação já tenha sido proposta.

Em tais termos, é evidente que bem agiu o antecessor de V. Ex. que, tendo-se compenetrado da justiça da reclamação e verificado que, quando se fez a reforma no posto de alferes, o reclamante tinha direito a ser reformado no posto de capitão, mandou como ele pediu rever o respectivo processo e reformá-lo no posto de capitão.

Essa reforma melhorada não podia deixar de tomar a data do anterior decreto e ser regulada pelas leis vigentes ao tempo desse decreto. A reforma do peticionário data de 21 de outubro de 1909; a 10 de julho de 1913 apenas se reconheceu que a reforma era no posto de capitão e não no de alferes. Assim o regime legal da reforma do suplicante é regulado pelas leis vigentes em 21 de outubro de 1909.

Isso é o que foi deferido; isso é o que naturalmente se depreende dos termos do requerimento inicial.

Só por equidade poderia ser deferida a reclamação ora apresentada, para se considerar a reforma com o soldo vigente na data em que foi a melhoria decretada, o que, como disse teria sido de toda a justiça, se o antecessor de V. Ex., ao fazer o reclamante desistir da ação, estivesse instruído do que se podia nessa ação. Tal circunstância, porém, não se deu como do processo se evidencia, e por culpa do requerente que não o disse no seu requerimento. Se dali lhe decorre um prejuízo, sibi imputet. E, ainda, não se pode saber se o antecessor de V. Ex. teria deferido o requerimento, como o fez, se se tivesse apurado que o deferimento importava em dar ao requerente as vantagens da lei atual.

São estas, Senhor Ministro, as considerações que me sugere fazer a propósito da consulta constante do Aviso de V. Ex.

Devolvo os papéis que acompanharam o dito Aviso e tenho a honra de reiterar a V. Ex. os meus protestos da mais alta estima e distinta consideração. – Rodrigo Otávio.

Autores

  • é livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC- SP e advogado, consultor e parecerista em Brasília, ex-consultor-geral da União e ex-procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

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