Equilíbrio constitucional

O Estado democrático de deveres

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9 de julho de 2014, 10h54

Pode soar estranho o título deste artigo, mas não deveria. Afinal, está lá na Constituição Federal, no mesmo capítulo dos direitos individuais e coletivos, a previsão de “deveres”. Ou talvez fosse melhor o título: “Por uma Sociedade de Deveres”. De todo modo, seja este ou seja aquele título, com tanto clima de desordem que tem vivido este país, talvez tenha passado da hora de a sociedade começar a falar um pouco, pelo menos um pouco, de deveres.

Não é só com direitos que se constrói uma “sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social” (Preâmbulo, CF/88), isto é, justa, civilizada e desenvolvida.

O país vive uma onda de bagunça cívica, pública e privada, de impressionar até os mais desatentos. Desde as transgressões mais sutis, até a onda de criminalidade com práticas as mais cruéis, passando pelos escândalos de desvios públicos, o que se vê é que está faltando ordem no Brasil. Logo a “Ordem” aclamada em nossa bandeira. E sem ordem não há progresso. Há o atraso, o conflito, o caos.

Talvez tenha passado da hora de os indivíduos, grupos sociais, empresas, instituições, governos, autoridades, todos, absolutamente todos, começarem a cumprir um pouco mais seus deveres.

Não há legítimo e pleno exercício de direitos sem que se observem também os deveres. A paz no convívio social não se alcança com todos podendo tudo, mas sim com todos sabendo que não podem tudo, pois os outros também têm direitos e que limitam nossos direitos, nossos anseios e desejos. Se todos apenas puderem tudo, não haverá direitos a se realizar pois sempre haverá um déficit dos próprios direitos. Embora muitos pensem o contrário, os direitos não são, e nem podem ser, ilimitados. E por não se poder tudo, não se poder ter direito a tudo, inclusive não se poder pensar ou realizar escolhas pelo outro, só se evita o conflito interpessoal, o conflito social, a tirania do Estado sobre o indivíduo, e também a tirania do “eu” sobre o “nós”, com a observância ao dever de, pelo menos, respeitar o outro, não violando a integridade física, moral e material de quem quer que seja.

No exercício de direitos é que pulsa a existência humana. Mas é na prática dos deveres que se estabelece o equilíbrio nas relações sociais a permitir a harmonia daquele mesmo exercício de direitos. É no plano dos deveres que se legitima a realização dos direitos.

Em tempos atuais, parece que falar em dever é o mesmo que transmitir a idéia de algo rude, brutal, agressivo, autoritário, antipático, repulsivo. “Dever”, “dever”, “dever”!!!. Talvez até fosse mais ameno, aceitável, dizer que o equilíbrio e harmonia na convivência social se firmam, em realidade, com o respeito ao próximo. Mas o que é o respeito ao próximo senão um dever de saber dos limites frente aos outros. Até porque, se há limites, é porque há direitos. Antes dos limites, antes dos deveres, os direitos já estavam lá. Somos seres dotados naturalmente de direitos: o direito à vida, à integridade física e moral, às liberdades, à dignidade etc etc etc. Não precisa nenhuma lei, qualquer que seja, Constituição ou Tratado, para dizer de direitos que, naturalmente, já temos. Quando a lei diz desses direitos irrenunciáveis nada mais faz do que apenas enunciar algo já existente, mesmo sem lei.

E não é que não haja problema com os direitos. Há sim, e muitos, pois são violados a todo tempo. Por isso é preciso falar em direitos. Mas o que não se pode é deixar de falar também dos deveres, igualmente violados a todo tempo. Então é preciso, sim, falar em deveres. A lógica da violação de um direito está umbilicalmente relacionada à lógica da violação de um dever, embora, muitas vezes, seja difícil compreender essa intrínseca associação. Assim como não se pode transigir com a violação de direitos não se pode também permitir flexibilizar a violação de deveres.

Ao se acreditar que deveres são só para os outros, o que é um sentimento íntimo muito comum, nos enganamos em imaginar que a violação de deveres também só os outros cometem. Com isso, perdemos a percepção da realidade e passamos a vagar num mundo de mera ficção e que não permite perceber que as vítimas desse processo somos nós mesmos.

No dia a dia, são inúmeras as situações em que não cumprimos com nossos deveres, e nisso impedimos que os outros exerçam seus direitos. Deixamos de fazer nossa parte para melhoria das relações já tão deterioradas. Casos recentes e repetitivos como de interdição de via pública, depredação do patrimônio público, paralisação de serviços imprescindíveis ao cidadão, linchamentos, não bastassem revelar o triste desdém e alto desprezo pela vida alheia, nada mais traduzem do que um sentimento de profundo egoísmo e que não se enfrenta com o reconhecimento de direitos, mas sim com a imposição ao cumprimento de deveres.

Não é difícil perceber que cumprir com seus deveres implica ser honesto com os outros e também consigo mesmo, na medida em que só há lógica em cobrar dos outros quando se tem um comportamento igual consigo também. Cobrar dos outros sem nada exigir de si mesmo é, novamente, voltar-se ao universo só dos direitos sem deveres, ao mundo desonesto.

O valor de uma sociedade não se mede pelo tamanho de seu catálogo de direitos; mede-se, isso sim, pela capacidade de todos exercerem seus direitos, mas cumprindo seus deveres. É na consciência do dever, individual e coletivo, que se consegue avançar bastante na realização o máximo possível dos direitos: os meus, os seus, os nossos, o dos outros.

O ainda recente passado histórico de opressão e atentado às liberdades pelo qual passou a sociedade brasileira parece ter deixado o péssimo legado de que o exercício de direitos não pode conviver com deveres. Falar em deveres tornou-se algo reprovável, repugnante. Remete à falsa e incompleta idéia de força, intransigência, autoritarismo, obscurantismo, quando, em realidade, o exercício desmedido de direitos é que resulta naquelas nefastas conseqüências ao convívio social.

Não é com a perda de liberdades ou sua limitação que iremos sanear as mazelas desse país. Absolutamente, não. No terreno das liberdades, não se pode transigir com nenhum espaço. A ninguém é dado o direito de se apropriar das liberdades do outro. Por outro lado, não é com o descompromisso e desprezo a seus deveres que os cidadãos brasileiros conhecerão um país melhor. Muito ao contrário, pois é com o respeito aos deveres que se assenta solo firme para a efetiva e segura realização de direitos.

Uma sociedade de direitos, sem deveres, é a sociedade do caos. Pode ser o intelectual, o formador de opinião, o jurista, o político, o artista, o cientista social, o cidadão comum, qualquer um do povo, mas não admitir deveres é praticar mera demagogia, é jogar pra platéia. É discurso fácil e populista. E a se manter o país nesse rumo do apelo interminável a direitos, só a direitos, do culto à dimensão do eu em detrimento à dimensão do nós, com as pessoas e instituições fragilizadas em cumprir deveres, melhor até seria corrigir o título deste texto: ao invés de Estado Democrático de Deveres, quem sabe falar-se em Estado Demagógico de Direitos ou República Federativa da Demagogia.

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