Constituição e Poder

O juiz entre a bondade e a justiça

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7 de julho de 2014, 7h57

“Ser bom é fácil, o difícil é ser justo”
Victor Hugo

Spacca
Escrevo este artigo em consideração à seguinte dificuldade hoje enfrentada pelos juízes brasileiros: deve o magistrado conceder prestações concretas de direitos sociais, como saúde e educação, mesmo quando sua decisão exija desconsiderar as escolhas feitas pelos outros Poderes, especialmente, pelo Poder Legislativo?

Em passagem muito conhecida de Victor Hugo, no seu insuperável romance Os Miseráveis, o inspetor Javert, levando ao extremo o seu senso de justiça, contestou a incapacidade do Maire (prefeito) Madeleine — na verdade, disfarce do herói Jean Valjean — de tomar uma decisão difícil com o famoso lamento crítico: “Meu Deus! Ser bom é fácil, difícil é ser justo” (Mon Dieu ! c’est bien facile d’être bon, le malaisé, c’est d’être juste). O mais impressionante no caso, como se sabe, é que a decisão cobrada por Javert era, nada mais nada menos, do que a sua própria demissão do cargo de inspetor de polícia por ter levantado suspeita contra uma autoridade superior, no caso, de que o próprio prefeito seria, de fato, um criminoso — desconfiança, aliás, depois comprovada verdadeira.

Não obstante seja outro o lugar e o tempo, nada parece ter diminuído essa dificuldade aparentemente atávica do ser humano de preferir tomar decisões simpáticas e amistosas, geralmente casuísticas, em detrimento de decisões antipáticas e desagradáveis, ainda que, do ponto de vista da generalidade do direito e da isonomia com outros casos, sejam mais adequadas e, por isso mesmo, mais legítimas.

Não quero mascarar a dificuldade que qualquer juiz enfrenta quanto se vê na condição de tomar uma decisão antipática — como, por exemplo, negar um tratamento de alto custo que, não obstante a inexistência de qualquer prova de suas qualidades terapêuticas, muitas vezes, é a única esperança que resta a um doente terminal.

Em qualquer situação, é sempre difícil tomar decisões que possam trazer sofrimento aos nossos semelhantes. Por isso, quem quer que considere a questão com um mínimo de honestidade de propósito terá que reconhecer que nem sempre é fácil ser magistrado, pois, ao cumprir os seus deveres, obviamente, muitas vezes a decisão judicial legítima — em conformidade com o Direito — revelar-se-á desagradável às nossas convicções pessoais, muitas vezes causando sofrimento a alguém e quase sempre implicando custos a serem suportados por indivíduos ou pela comunidade. Em síntese, nem sempre uma decisão judicial, para ser justa, poderá ser agradável.

Não é sem razão que se fala hoje, com alguma regularidade, em “covardia institucional” para descrever situações em que as instituições, autoridades de todos os níveis, inclusive do Poder Judiciário, se negam a tomar decisões impopulares, especialmente aquelas decisões que, inevitavelmente, trarão sério sofrimento às pessoas concretas, não obstante estejam em conformidade com as escolhas feitas pelo legislador.

O espaço de avaliação do juiz
Além da postergação de decisões, que vai se tornando bastante comum, não raramente, como se sabe, decisões judiciais se refugiam atrás de princípios constitucionais para negar vigência às escolhas legitimamente feitas pelo legislador, nomeadamente, quando tais escolhas possam revelar incontornáveis incômodos com o senso de justiça do órgão jurisdicional. Ocorre que, segundo o que até então se sabia, a partir da teoria da separação de Poderes, compete ao Poder Legislativo, em primeiro lugar, concretizar os princípios da Constituição, e não ao Poder Executivo e muito menos ao Poder Judiciário.

Para melhor compreensão do problema, talvez fosse necessário considerá-lo à luz de questões mais específicas, a saber: até que ponto deve o Poder Judiciário ter a prerrogativa de conferir prestações concretas ao cidadão à revelia das escolhas do legislador e da Administração? Temos nós, os magistrados, sempre e de forma ilimitada, o poder de realizar diretamente a Constituição, a despeito das escolhas feitas pelos demais Poderes? É a Constituição um texto que se coloca — e sempre — à disposição e à possibilidade de execução direta dos juízes? Ainda esta outra: qual papel remanesceria aos representantes do povo num quadro em que suas decisões não seriam mais obrigatórias, mas apenas uma alternativa às escolhas políticas dos magistrados, essas sim, tornadas preponderantes?

Em resumo, quem tem a primazia na concretização do texto constitucional, o juiz ou o legislador?

É certo que o Poder Judiciário tem a precípua função de guardar a Constituição, mas pode e deve tomar essa atitude mesmo quando o legislador fez uma escolha compatível com a Constituição, apenas com a finalidade de privilegiar uma opção, a do próprio Judiciário, e apenas por considerá-la mais eficiente?

Todas essas são questões que há muito constrangem a teoria e o Direito constitucional, sobretudo quando se sabe que, ao contrário do magistrado, que tem ao seu favor o fato de se preocupar — como regra — com casos isolados, no caso especial do legislador, suas decisões devem abranger a abstração dos casos e a generalidade dos cidadãos a que se destina a norma então editada.

Valho-me do grande jurista colombiano Rodolfo Arango, a partir de sua tese intitulada “O conceito de direitos fundamentais sociais” (Der Begriff der sozialen Grundrechte), para resumir de forma didática o problema da concretização dos direitos sociais inseridos em textos constitucionais, distinguindo, de um lado, direitos que emergem das disposições constitucionais de tal modo que podem ser concretizados consoante uma única opção, numa relação de um-para-um (Die eins-zu-eins Relation), ou seja, situações em que a disposição constitucional só permite uma alternativa para a concretização do direito; de outro, disposições constitucionais que permitiriam mais de uma opção ao órgão encarregado de concretizar os direitos delas emergentes, numa relação em que uma disposição constitucional oferece várias formas de concretização do direito, ou seja numa relação de um-para-um + n (Die eins-zu-eins+n Relation)[1].

Não é difícil perceber que os direitos sociais normalmente se presdispõem a mais de uma opção para sua concretização (Die eins-zu-eins+n Relation), de tal forma que, por exemplo, ao estabelecer a saúde ou a educação como direitos fundamentais, o constituinte não impôs ao Poder Legislativo ou ao Executivo uma fórmula única, definitiva e exclusiva, para concretizá-los.

Entretanto, não se pode negar: quando o Poder Judiciário permite-se interferir na escolha feita pelo legislador, o que de regra estará a afirmar é que o direito social previsto na Constituição só poderia ser realizado segundo uma única possibilidade de concretização — aquela intuída pela interpretação do próprio órgão jurisdicional, numa relação de um-para-um (Die eins-zu-eins Relation) —, o que, convenhamos, no caso de prestações positivas, por exemplo, dos direitos sociais, será sempre uma tese muito difícil de se argumentar racionalmente.

O espaço de avaliação do legislador
Não obstante esteja cada vez mais popular entre nós a possibilidade de intervenção do Poder Judiciário no âmbito das políticas públicas, especialmente no que tange ao direito de saúde (entrega de medicamentos, procedimentos cirúrgicos e internações hospitalares de alto custo) e de educação (matrículas em disciplina e cursos sem requisitos necessários), se o princípio da separação e harmonia entre os Poderes, insculpido no artigo 2º da Constituição, guarda ainda algum significado em nossa ordem jurídica, só excepcionalmente, com fundamento na própria Constituição, é que o magistrado poderia substituir-se às escolhas feitas pelo legislador.

Em primeiro lugar, normativamente, o legislador, como representante do povo, no exercício do poder constitucional que dele emana, conforme o artigo 1º, parágrafo único da própria Constituição, deve ter a primazia na concretização de políticas públicas. Mas não é só.

Além disso, numa análise factual, enquanto o magistrado não precisa e, por isso, não tem o hábito de se confrontar com as consequências difusas de suas decisões, já que a lei o obriga a concentrar sua atenção e julgamento no caso concreto, o legislador, observado e periodicamente censurado pelos contribuintes e eleitores, deve considerar uma série de fatores (orçamentários, administrativos, econômicos e políticos) que ultrapassam em muito as circunstâncias restritas do caso concreto.

As circunstâncias de nossa realidade político-institucional apenas complicam as dificuldades dos atores políticos quando têm que concretizar as políticas públicas. A Constituição brasileira de 1988, como tantas outras que tiveram origem na segunda metade do século passado, como sabemos, foi pródiga em promessas. Não foram poucos os juristas que se viram obrigados a advertir contra os perigos de um texto constitucional que, de forma expressa, pretende salvaguardar os seres humanos contra praticamente toda espécie de infortúnio que a natureza, a sociedade, ou próprio indivíduo pudessem dar origem.

Se como querem alguns, os direitos sociais exigem do Estado uma concretização em níveis absolutos, devendo oferecê-los sempre em seu nível ótimo, o artigo 6º da Constituição, apenas para ficar num exemplo, praticamente imporia ao Estado a instauração do paraíso na terra. Cito: “Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”. Ora, trabalho, saúde, lazer, moradia e segurança em níveis ótimos: o que poderia faltar ao nosso imponderável destino humano?

De fato, se, como pretendem algumas ilustradas vozes, os direitos sociais só admitem a eficácia máxima de seu âmbito de proteção, então, basicamente, o Estado estaria condenado a constitucionalmente converter-se num garantidor universal contra qualquer espécie de desventura que o homem, seja por viver em sociedade, seja por motivos naturais ou, o que é o mais frequente, até mesmo por suas próprias trágicas escolhas, acaba por ter que confrontar.

Infelizmente, como bem demonstrado por Marius Raabe[2], para os que padecem desse excessivo otimismo constitucional, que pretendem converter a Constituição em um código total dos afazeres estatais, o que na verdade existe normativamente nas democracias, como também disposto no próprio texto constitucional, é um modelo de separação de Poderes em que prepondera sempre uma margem de avaliação e de conformação do legislador. Nesse modelo, para julgar a adequação da atividade legislativa quando se cuida de concretizar direitos fundamentais, deve-se sempre considerar um adequado sopesamento entre um princípio material e um princípio formal[3]. Enquanto o princípio formal se afirma favorecendo a liberdade de conformação do legislador, deferindo-lhe competência para interferir num direito fundamental, o princípio material contrasta com ele, protegendo o direito fundamental eventualmente atingido pela ação do legislador[4].

É certo que a liberdade de conformação (espaço de avaliação do legislador) não pode implicar, de forma absoluta, uma vinculação do aplicador do direito (por exemplo, o magistrado) à escolha de premissas empíricas, como a promovida pelo legislador no momento de criação da lei, de tal ordem que aquele que aplica o direito estivesse, sempre e sempre, totalmente vinculado às premissas de fato adjudicadas pelo legislador. Uma tal opinião, que afasta completamente o controle jurídico-constitucional sobre os fatos legislativamente impostos como premissas de julgamento, obviamente, é inaceitável, uma vez que uma hipotética competência assim conferida ao legislador acabaria por aniquilar completamente a sua vinculação à Constituição[5].

Em outras palavras, não se pode desconsiderar a hipótese em que a própria Constituição tenha imposto limites positivos estritos às escolhas políticas e econômicas do legislador no momento em que deva concretizar normas constitucionais, como no caso dos direitos sociais. Em tais situações, o Poder Judiciário, é certo, poderia exercer controle sobre a vinculação positiva no legislador. Mas insisto que não é comum que o poder constituinte vincule o legislador de forma estrita e fechada quanto às escolhas e caminhos que possa tomar ao concretizar direitos fundamentais, especialmente, direitos fundamentais sociais.

De fato, se para além de estabelecer os direitos fundamentais, o Constituição estipulasse uma forma específica e, mais do que isso, exclusiva de concretizá-los, à moda de um código, isso significaria que todas as relações jurídicas (conflituosas) dos cidadãos poderiam ser sempre reconduzidas e observadas, de igual modo, sob o ponto de vista constitucional, fazendo a ordem jurídica prescindir de legislação ordinária, isto é, de qualquer outra lei, pois para todas as situações surgidas nas relações sociais bastaria aplicar diretamente a Constituição.

Aqui, a consequência denuncia o absurdo da premissa, fazendo legítima a suspeita de Claus Schmitz, traduzindo a preocupação de muitos, quando se questiona se, nesse contexto, "a Constituição não se transformaria num superdireito, no qual a parte dos direitos fundamentais é apresentada ou preconcebida já como solução para todas as relações jurídicas[6]".

Legitimamente também se poderia questionar sobre qual margem é que, nesse quadro, remanesceria ao legislador ordinário. De fato, deve-se perguntar se, num contexto assim tão amplo de vinculação do legislador, onde lhe incumbiria, como querem alguns, apenas relatar o que na Constituição está declaradamente preestabelecido, insisto, é de se perguntar se, para além de assegurar um amplo e rígido controle de constitucionalidade, esse raciocínio não transformaria as cortes constitucionais em superlegisladores[7].

Se essas questões assim formuladas, em termos absolutos, parecem merecer respostas negativas, deve-se então tomar a sério, no âmbito de nossa democracia, a discussão da margem de apreciação do legislador no que tange à restrição e conformação de direitos fundamentais, tendo já como certo que, se a ampliação de sua competência de intervenção pode ameaçar as garantias dos direitos fundamentais, por outro lado, um grau muito elevado de redução dessa competência, tendente à eliminação, pode, em todo o caso, estimular a insegurança, uma vez que a falta de clareza, indeterminação e mesmo ausência de pressupostos (premissas) de fato, na avaliação dos casos que suportam a aplicação de normas de direitos fundamentais, deixada ao puro arbítrio do aplicador do direito, acaba por vir em prejuízo desses mesmos direitos fundamentais [8].

Naturalmente, respostas adequadas a essas questões transbordaram necessariamente a discussão sobre a margem de avaliação e de vinculação do legislador, ou sobre a correta solução para o conflito entre a necessidade de uma intervenção legislativa e a proteção adequada e otimizada de um direito fundamental[9] e dizem respeito diretamente ao modelo de democracia que efetivamente queremos construir em nosso país: de um lado, o modelo de democracia representativa clássica, que designaremos de tipo 1, que, malgrado suas dificuldades, coloca o cidadão em primeiro lugar, além de propiciar permanentemente o controle e a substituição de seus representantes; de outro lado, haveria um sistema diverso de democracia, aqui designado de tipo 2, segundo alguns, já em gestação, consistente num modelo de características mais aristocráticas, em que ao Judiciário, de regra imune ao voto e ao controle popular, seria confirmado o poder não apenas de intervenção negativa, mas de formulação positiva das políticas públicas.

Quem espera e exige que o Poder Judiciário tenha a prerrogativa e primazia na promoção positiva de políticas públicas deve, logicamente, preparar-se para esse novo modelo, de tipo 2. De minha parte, ao contrário do que muitos acreditam, mas com base no que ficou acima sugerido, suspeito que esse modelo de tipo 2, a longo prazo pelo menos, nos remeterá a um quadro de conformação institucional em que a cidadania tem muito a perder, e a Justiça muito pouco a ganhar.


[1] Rodolfo Arango. Der Begriff der sozialen Grundrechte. Baden-Baden: Nomos Verlagsgesellschaft, 2000, p. 105 e seguintes.

[2] M. Raabe, Grundrechte und Erkenntnis: Der Einschätzungsspielraum des Gesetzgebers. Baden-Baden: Nomos Verl. Ges., 1998, p. 207.

[3] M. Raabe, Grundrechte und Erkenntnis: Der Einschätzungsspielraum des Gesetzgebers, p. 207.

[4] M. Raabe, Grundrechte und Erkenntnis, ibidem.

[5] M. Raabe, Grundrechte und Erkenntnis, p. 208.

[6] C. Schmitz, Grundrechtskollisionen zwischen politischen Partein und Bürgern, p. 21.

[7] C. Schmitz, Grundrechtskollisionen zwischen politischen Partein und Bürgern, p. 21-22.

[8] M. Raabe, Grundrechte und Erkenntnis: Der Einschätzungsspielraum des Gesetzgebers, p. 208.

[9] Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 1238-1240.

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